Bar de Fortaleza leva roda de choro para a calçada, com direito a cortejo musical no meio da rua
Projeto Choro de Varanda acontece no Barvioli, localizado no bairro Benfica, às quintas-feiras; com criatividade, músicos conquistam público enquanto passeiam pelo melhor da música instrumental
De longe, mesas e cadeiras na rua. Mais perto, clima de fim de semana em plena quinta-feira. Há uma magia rara na altura do número 1961 da rua Princesa Isabel, no Benfica. É onde fica o Barvioli, casa que há dois anos mantém na programação o Choro de Varanda.
O projeto tem por vocação disseminar o melhor da música instrumental ao público fortalezense. E faz isso com toda a qualidade e criatividade possíveis. Um bom exemplo é a forma como os músicos participantes da iniciativa chamam as pessoas para perto. Muito além do repertório inspirado – voltado para as gafieiras, com temas de samba e baião, e espaço para improvisação e criação – a ação convoca todo mundo a ocupar o asfalto com arte.
Isso porque, no fim de cada apresentação, o time de instrumentistas promove um cortejo na rua ao som de “Carinhoso”, clássico absoluto de Pixinguinha. Funciona assim: no meio da canção, eles desligam os instrumentos, levantam-se das cadeiras e começam a ir para fora do bar, motivando os clientes – já totalmente embalados – a fazer o mesmo. É lindo.
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“É uma singularidade incrível que difere das outras rodas de choro. Quem vai, ama e volta outras vezes, com amigos e amantes da boa música”, partilha Samuel Rocha, violonista de sete cordas e produtor cultural. Ele é um dos responsáveis por disseminar o gênero musical choro no Ceará há duas décadas e pela própria criação do Choro de Varanda.
Além do Barvioli, o projeto ocupa outros lugares da Capital – a exemplo do Belch Bar, às segundas, e do Bomtequim Bar, às terças. A equipe do Verso visitou a apresentação de quinta, e atestou a magia conjunta que acontece quando lugar e grupo estão totalmente alinhados.
De um lado, a estrutura aconchegante e cultural do Barvioli, com até mesas personalizadas em homenagem a grandes nomes da música brasileira; do outro, artistas em estado de graça bailando com instrumentos que vão do clarinete ao violão, passando pelo pandeiro e o cavaco. “Criamos um clima intimista para que o público assista como se estivesse no teatro”.
Como tudo começou
Foi a paixão pela música e por esse gênero específico que motivou a criação do Choro de Varanda – cujo nome faz referência a uma composição homônima de Jacó do Bandolim. Desde o começo, a ideia é ocupar espaços em Fortaleza, sobretudo bares e eventos particulares, nos quais Samuel Rocha possa vivenciar com outros músicos essa dinâmica de reverência a um som capaz de quebrar barreiras e chegar a distintos estratos.
Uma particularidade interessante é que não há formação fixa de músicos justamente porque, nos diferentes lugares em que Samuel toca, ele convida outros artistas a chegar junto. Segundo o violonista, é oportunidade de se conectar com outros representantes da cena sem necessidade ou obrigação de ter algo fechado – algo já presente, por exemplo, em outros projetos dele, a exemplo do Murmurando e do Samuel Rocha Bordando o Sete.
“O Choro de Varanda, em especial, não tem o caráter de roda de choro. Tem caráter de show. Nos preocupamos da concepção à iluminação, e já fizemos tributos a Paulinho da Viola, Paulo Moura, Caximbinho, entre outros”, diz, celebrando a inclusão de instrumentos pouco comuns em rodas de samba, como a guitarra, além da própria parceria de dois anos ininterruptos com o Barvioli. A união gera muitos frutos.
Proprietário da casa, Marcus Vinicius de Oliveira, o Marvioli, atesta a ventura. Pouco tempo depois de abrir o bar, em 2023, ele recebeu a visita de Ray Douglas e Samuel Rocha propondo música ao vivo às quintas-feiras, quando os músicos estavam com agenda livre. “Naquela época ainda não tinha música ao vivo aqui, então pensei em testar. A cada semana, tudo ia ficando e continua a estar cada vez mais interessante e melhor”, divide o empresário.
“A recepção do público é muito boa, até porque as músicas e os artistas são muito bons. Tem muita gente que curte música instrumental, algo que está no DNA da programação do bar – sobretudo porque é difícil encontrar canções desse tipo com facilidade na cidade, contemplando jazz, blues e choro. A perspectiva é de continuar porque está dando certo”.
Mesma perspectiva tem Samuel. Para ele, a conexão com Marvioli foi instantânea, principalmente pelo clima de Rio de Janeiro do bar. “Desde que fomos lá acertar a roda de choro, pensei em como ele tem a atmosfera do bar Bip Bip, no Rio. Nesse mesmo dia, fui para outra roda de choro e, por coincidência, encontrei o violonista que comanda as rodas no Bip Bip, o Pratinha. Não tive dúvidas: o projeto ia dar certo antes mesmo de começar”.
Origem e ressonâncias do choro
Igualmente estudioso da cena, Samuel Rocha também contextualiza a origem do gênero que o consagrou como artista. Conforme explica, o choro nasce da fusão da música europeia – advinda sobretudo de Portugal e Espanha – com a música africana.
Apesar das raízes estrangeiras, é um som genuinamente brasileiro – reconhecido como patrimônio imaterial do país no ano passado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Surgido por volta de 1870, quando Joaquim Callado lançou a música “Flor Amorosa”, no Rio de Janeiro, o choro consagrou-se a partir de composições de Chiquinha Gonzaga e Pixinguinha, conquistando rapidamente todo o Brasil.
Não à toa, Samuel torce para que a abrangência do som em nosso meio seja maior. “É preciso que o choro faça parte da programação dos equipamentos públicos. Isso é algo básico para fortalecermos nossa cena. Por que não ter todo mês uma apresentação de choro num centro cultural, num teatro, ou com caráter de show temático ou de rodas de choro?”, questiona.
Ao mesmo tempo, conclama: “Não podemos esquecer de nossos mestres – Tarcísio Sardinha, Macaúba do Bandolim, Saraiva do Bandolim, entre tantos outros que fazem parte de nossa história. Graças a eles estamos aqui, levantando essa bandeira. E a nova geração está aí, firme e forte, defendendo para que os novos cheguem e continuem essa evolução”.
Clarinetista natural de Viçosa do Ceará, interior do Estado, Paulo Maurício integra esse panorama. Desde os 12 anos ele se dedica a tocar o instrumento, mas teve o primeiro contato com o choro aos 18 anos a partir do festival Mel, Chorinho e Cachaça, outrora realizado na cidade natal. Desde a data, não parou mais.
“Nem sabia o nome do gênero, mas aquela música me pegou de um jeito tão forte que eu quis saber o que era aquilo. Me encanta até hoje, e é uma emoção muito grande descobrir mais do choro”, conta. Além de participar do Choro de Varanda, o artista também toca em outros espaços da Capital, além de ser professor de clarinete.
A impressão é que quem ouve ou toca choro pela primeira vez sente a real energia e beleza da música. “O choro pra mim é fantástico, salva em todas as horas. E integrar o Choro de Varanda é ótimo porque é um laboratório de repertório. Toda quinta a gente se reúne com novas músicas e propostas para estudar. Além de se divertir, a gente se aprofunda”.
Com décadas de guitarra na carreira, Rogério Gomes pensa o mesmo. Testemunhar a adesão de tanta gente à música instrumental representa “muita satisfação”. E tem algo ainda mais importante: saber que um instrumento a priori pouco afeito ao choro pode, sim, também compor a roda, gera um gosto a mais.
“A guitarra é usada no jazz, no samba – e, como antes do Choro de Varanda, eu já tinha outro projeto de música brasileira unindo bossa e guitarra – conversando com o Samuel Rocha, pensamos: ‘Por que não incluí-la no choro também?’”, conta. “Fortaleza é um dos lugares mais pujantes para o choro. As pessoas dançam, cantam e trazem até instrumentos para participar. Sempre precisaremos de incentivo, claro, mas vejo tudo isso com bons olhos”.
Serviço
Projeto Choro de Varanda
Todas as quintas-feiras, a partir das 19h, no Barvioli (Rua Princesa Isabel, 1961 - Benfica). Apresentações também em outros locais da cidade. Mais informações por meio das redes sociais do projeto