O que a ‘PEC das Praias’ tem a ver com o destino do terreno do Edifício São Pedro em Fortaleza

O caso envolvendo a icônica edificação demolida pela Prefeitura em Fortaleza é um exemplo de como funciona o uso dos terrenos de marinha e do que está em jogo na polêmica PEC

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@svm.com.br
Legenda: Segundo a Superintendência do Patrimônio da União no Ceará, o Edifício São Pedro, em Fortaleza, está em uma área de marinha
Foto: Thiago Gadelha

Nas últimas semanas, a chamada “PEC das Praias” tem gerado debates e repercussões nas redes sociais e no legislativo brasileiro. A PEC em questão é uma Proposta de Emenda à Constituição (3/2022) que tramita no Senado e autoriza o Governo Federal a vender os chamados terrenos de marinha. Hoje, a Constituição não permite essa possibilidade, e a União pode até conceder o uso dessas áreas a estados, municípios e a particulares, mas segue como proprietária dos terrenos. Em Fortaleza, essa dinâmica afeta diversos imóveis e um deles é justamente a área do antigo Edifício São Pedro, na Praia de Iracema. 

O 1º ponto é que, segundo a Superintendência do Patrimônio da União no Ceará (SPU/CE), órgão do Governo Federal que registra os ocupantes de terrenos de marinha, o Edifício São Pedro, em Fortaleza, ou agora mais precisamente o terreno esvaziado após a demolição do mesmo, está em uma área de marinha, logo pertence à União. É exatamente essa condição específica que conecta a polêmica “PEC das Praias” e o destino do local que, por décadas, abrigou a emblemática edificação, hoje completamente demolida. 

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Conforme permite a legislação brasileira, durante décadas, o uso do terreno de marinha no qual o São Pedro estava em Fortaleza foi concedido a proprietários particulares, mediante um regime de pagamento de tributos que é previsto legalmente. Em termos práticos, o pagamento é uma espécie de “aluguel” pago pelos ocupantes. Portanto, o caso envolvendo a icônica edificação demolida pela Prefeitura em Fortaleza é um exemplo de como funciona o uso dos terrenos de marinha e do que está em jogo na discussão da PEC das Praias.  

Vale destacar que as áreas de marinha não são terrenos pertencentes à Marinha do Brasil, instituição das forças armadas. Na realidade, o termo “terreno de marinha” tem relação com porções de terra localizadas próximos ao mar e teve origem no Brasil Colonial devido à necessidade, à época, de proteção do território de invasões estrangeiras. Os terrenos de marinha estão localizados na costa marítima e também nas margens dos rios e lagoas. 

Na legislação atual, os terrenos de marinha são definidos como sendo aqueles situados em uma faixa de 33 metros contados a partir da linha do preamar-médio (uma faixa imaginária traçada tendo como referência a maré mais alta do ano de 1831) em direção ao continente. O ano usado como base é aquele no qual alguns tributos foram incluídos no orçamento federal e é o marco utilizado pelos Decreto-Lei 9760/1946 e 3438/1941 que tratam, dentre outros pontos, sobre os bens imóveis da União.

Proposta da PEC e repercussão no São Pedro

A PEC das Praias é uma proposta de 2011 e já foi aprovada em dois turnos na Câmara Federal. Desde 2022 tramita no Senado e tem como relator o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). Ela prevê, dentre outros pontos, a transferência da posse integral dos terrenos de marinha aos ocupantes, sejam eles estados e municípios ou particulares.

Se aprovada, as áreas definidas como terrenos de marinha, ficam da seguinte forma: 

  • Continuam sob o domínio da União as áreas ocupadas pelo serviço público federal e as áreas não ocupadas;
  • São transferidos de forma gratuita para estados e municípios as áreas afetadas pelo serviço público estadual e municipal;
  • São transferidas de forma paga para foreiros e ocupantes particulares regularmente inscritos na SPU até a publicação da Emenda Constitucional.
  • ​São transferidos de forma gratuitas nas áreas de habitação de interesse social 

Desse modo, a PEC propõe diretamente a abolição do pagamento das taxas de foro, ocupação e laudêmio e, em paralelo, que essas áreas possam ser transferidas para estados e municípios ou para particulares que já ocupam os locais. Mas, no caso dos entes privados, que não estão em área de habitação de interesse social, essa transferência terá um custo, que não é definido explicitamente na PEC. 

Se a PEC já estivesse aprovada, por exemplo, os proprietários do São Pedro, caso desejassem, teriam o direito de tentar adquirir o terreno e com isso, ele deixaria de ser da União passando para os entes privados mediante pagamento. Logo, a UFC não poderia se instalar no local. 

SPU pode então requerer o terreno?

Em Fortaleza, na reviravolta mais recente sobre o destino do terreno do Edifício São Pedro, a SPU/CE comunicou, na semana passada, que retomará o uso do terreno, ocupado há décadas por proprietários particulares.

No caso dessa ocupação, por estar em terreno de marinha, ela está sujeita ao pagamento de tributos à União, ou seja, os proprietários particulares que têm interesse de usar esses imóveis precisam pagar taxas ao Governo Federal. E na “PEC das Praias”, já aprovada na Câmara Federal e que tramita no Senado, um dos pontos centrais é justamente a abolição total da obrigatoriedade desse pagamento por entes privados. 

Legenda: De acordo com a Superintendência do Patrimônio da União (SPU), em matéria publicada no último dia 13 deste mês no Diário do Nordeste, o terreno que abrigou o Edifício São Pedro está em uma área de marinha, pertencente à União
Foto: Thiago Gadelha

No atual regime, os ocupantes de terrenos de marinha, devem pagar ao Governo Federal: 

  • Taxa de aforamento: (0,6% do valor total do terreno): valor cobrado anualmente pela SPU pelo uso do imóvel sob regime de aforamento (uma espécie de contrato estabelecido com a União);
  • Taxa de ocupação (2% do valor do terreno): valor cobrado anualmente pela SPU pela ocupação do imóvel da União. 
  • Taxa de laudêmio: (5% do valor do imóvel à época em que for realizada a transação imobiliária) deve ser pago sempre que houver  transferência do domínio útil do imóvel. 

No caso das taxas anuais, os ocupantes ou pagam o aforamento ou a ocupação. De acordo com a SPU, no caso do Edifício São Pedro, dos 141 proprietários apenas 20 estão com as taxas de aforamento em dia, ou seja, o pagamento anual dos 0,6%. Cada uma das 141 salas que formavam o Edifício tem, junto à SPU, um número de Registro de Imóvel Patrimonial (RIP) e o controle do pagamento é feito a partir dele. 

O superintendente da SPU no Ceará, Fábio Galvão, a legislação vigente determina que, caso haja atraso de pagamento por três anos seguidos ou quatro anos intercalados, é feita a caducidade do aforamento, ou seja, a extinção dessa permissão de uso. A legislação mencionada é o Decreto-Lei 3438/1941. 

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"Estamos notificando as pessoas que estão adimplentes, que são as poucas pessoas. Notificando para dizer que foi necessário caminhar para a instalação de um equipamento público", explica Fábio. No caso, o terreno, conforme projetado pela SPU, deve ser destinado à implantação de um equipamento da Universidade Federal do Ceará (UFC). No lugar, a universidade pretende erguer uma das instalações do campus Iracema, com a implantação de um Centro de Eventos. 

Flávio reforça que em uma situação dessas, em que a demanda de uma instituição pública por um espaço e há uma terreno de marinha nesse radar, caso a maioria dos ocupantes estivesse inadimplente, seria difícil que a União retomasse o terreno.  “Mas como lá é o contrário, a grande maioria estava inadimplente, não vimos outra solução do que atender um pedido da UFC. O que contribuiu muito foi a minoria está adimplente”, completa. 

Foto: Thiago Gadelha

“Se você não pagar essas taxas, você fica sujeito às mesmas consequência de não pagar uma taxa municipal, um IPTU, por exemplo, pode ir para dívida ativa, a União pode entrar com ação para a cobrança desses valores”, explica o advogado especialista em Direito Imobiliário e vice-presidente da Comissão de Direito Imobiliário da Ordem dos Advogados do Brasil secção Ceará (OAB-CE), Welvio Cavalcante.

O advogado explica ainda que as pessoas que ocupam esses terrenos o fazem com a autorização da União mas não possuem domínio pleno e sim o domínio útil. Com a aprovação da PEC, esses ocupantes passariam a ter o domínio pleno. 

“Quando o terreno é de marinha, mesmo ele sendo aforado (como o São Pedro), quando existe um interesse público para ocupar aquele imóvel, há o cancelamento do aforamento e uma indenização das pessoas que estão regulares. A União está cancelando o aforamento do São Pedro para fins de retomada da posse. Hoje, a União federal não tem a posse, ela tem a propriedade. A posse estava com as pessoas que ocupavam lá pelo regime de aforamento. Mas como há o interesse público, a União faz o cancelamento do aforamento para a retomada da posse pela União, que é a dona do imóvel”.
Welvio Cavalcante
Advogado especialista em Direito Imobiliário e vice-presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB-CE

Relação da PEC com as praias

Vale ressaltar que a proposta não faz menção explícita à privatização das praias. Mas críticos à proposição temem e alegam que ela pode favorecer o limite de acesso ao litoral porque permitirá que particulares sejam donos de empreendimentos muito próximos ao mar. 

“A praia é prevista em uma lei específica 7661/1988, definida como a área que é coberta e descoberta periodicamente pela água. A praia jamais poderá ser privativa pois essa lei tem um dispositivo que diz que as praias são bens de uso comum do povo sendo assegurada sempre livre e franco acesso a elas e ao mar em qualquer direção e sentido, ressalvado os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica”, destaca o vice-presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB-CE, Welvio Cavalcante. 

Ele reitera que o que se pretende com a PEC é extinguir o aforamento das áreas de marinha e apontar como se dará essa transferência dos bens que hoje são da União para as pessoas físicas e jurídicas que já ocupam eles. 

O Governo Federal tem se posicionado contrário à PEC. Em audiência realizada no Senado no final de maio, a secretária adjunta do Patrimônio da União, Carolina Stuchi, argumentou que a demarcação e administração desses terrenos de marinha são fundamentais para garantir a segurança jurídica e a gestão adequada dos bens da União. 

A aprovação da PEC, segundo ele, traria diversos riscos, como especulação imobiliária, impactos ambientais descontrolados, perda de receitas para a União e insegurança jurídica. Além disso, o Governo considera que a mudança pode gerar efeitos negativos para as comunidades locais e desigualdades na implementação da proposta. 

Carolina, na ocasião, apontou também que a PEC extingue o conceito da faixa de segurança e permite a alienação, a transferência do domínio pleno nessas áreas relevantes ao Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro. 















 

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