Dívidas, identidade, moradia: o que são Direitos Humanos e como eles são aplicados na prática no CE

Atacados em discussões sobre o sistema penitenciário, princípios são válidos para a proteção de toda e qualquer pessoa, explicam especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste

Escrito por Nícolas Paulino , nicolas.paulino@svm.com.br
Legenda: Bases estabelecem que Direitos Humanos são universais e independem de raça, credo ou condição socioeconômica
Foto: Silvana Tarelho

Viver com dignidade é ser respeitado e tratado de forma igualitária, independente de condições sociais ou econômicas. Esse é o princípio dos Direitos Humanos, celebrados nacionalmente neste dia 12 de agosto. Embora o conceito seja estrutural para o convívio coletivo, ele ainda é alvo de muitos ataques em discursos e ações práticas. Mas, afinal, como esses direitos se mostram na realidade?

A Constituição Federal de 1988 coloca o cidadão à frente do Estado, descrevendo nos primeiros artigos as garantias e os direitos fundamentais de homens e mulheres - uma resposta a situações de injustiça ou de agressão enfrentadas pela própria humanidade.

Considerada um dos mais completos ordenamentos jurídicos em relação aos Direitos Humanos no mundo, ela traz preceitos e proteções como:

As normas são um marco para orientar as condutas não só dos Estados, mas também dos indivíduos, em sua aplicação e fiscalização contra arbitrariedades. No Ceará, por exemplo, os Direitos Humanos ajudam a conceber políticas públicas e a nortear decisões na esfera judicial.

Para o juiz Jorge Cruz de Carvalho, titular da 1ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Maracanaú e tesoureiro da Associação Cearense de Magistrados (ACM), o conceito precisa ser amplo porque reflete a própria essência humana.

“Quando nossa Constituição acolhe os direitos fundamentais, ela nada mais fez do que positivar direitos humanos que já são reconhecidos em tratados internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Quando esses direitos passam a ser previstos no ordenamento de determinado país, eles passam a ser direitos fundamentais”, explica. 

Segundo o magistrado, os Direitos Humanos são aplicados em matérias como execução de dívida alimentícia, divórcio e reconhecimento de maternidade e paternidade socioafetiva - quando se reconhece juridicamente o vínculo de filiação não biológica, mas afetiva, respeitando inclusive os direitos sucessórios.

“Se voltarmos 30 anos no tempo, isso era impensável, mas é um tema que toca a realização plena do indivíduo a partir da família. Não a do conceito antigo, tanto é que hoje alguns falam não de direito ‘de família’, mas ‘das famílias’, pela multiplicidade de formas que elas podem assumir”, descreve.

Mariana Lobo, supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC) da Defensoria Pública do Ceará, ressalta que os Direitos Humanos não devem ser estigmatizados como restritos ao sistema prisional ou tratados como “direitos de bandidos”, já que estão ligados a toda e qualquer pessoa.

“Mais do que isso: eles são a base da construção do conceito de cidadania porque envolvem acesso à educação, à saúde, à liberdade de expressão. Assegurar direitos humanos é construir uma sociedade mais justa e digna”, destaca.

Entre as principais decisões judiciais que favorecem assistidos pela Defensoria cearense, conforme Mariana, estão:

  • retificações de nome e gênero;
  • medidas protetivas em casos de violência contra a mulher;
  • garantia do reconhecimento da etnia indígena na identidade;
  • manutenção de posse de terra de comunidades tradicionais;
  • acesso integral à educação a pessoas com autismo;
  • reconhecimento de união homoafetiva;
  • reparação de danos a vítimas de discriminação racial

Apesar dos avanços, a supervisora pondera que o Brasil vive “um estado constante de violação de direitos humanos” bastante seletivo, afetando a garantia de direitos de grupos vulneráveis: mulheres, pessoas LGBTQIAPN+, negras, moradores de periferias ou em privação de liberdade.

Legenda: Indígenas cearenses demandam diversos direitos básicos, como terra, educação e saúde
Foto: Thiago Gadelha

Para que servem?

Nessa dinâmica, o Judiciário do interior do país, representado pelas pequenas comarcas de 1º grau, também precisa estar atento à defesa dos Direitos Humanos, como pondera o juiz Ricardo de Araújo Barreto, titular da 5ª Vara da Fazenda Pública de Fortaleza. 

O magistrado foi um dos três finalistas do Concurso Nacional de Decisões Judiciais e Acórdãos em Direitos Humanos 2022, na categoria “Direito da Mulher”, por uma sentença dada em dezembro de 2021, quando atuava na Comarca de Horizonte.

Na ocasião, ele concedeu um mandado de segurança para garantir o adicional de insalubridade a uma profissional que trabalhou para a gestão municipal daquela localidade, mas que, por uma decisão administrativa, perdeu o benefício durante a licença-gestante. 

“Isso contrariava posições do próprio STF (Supremo Tribunal Federal). Com minha decisão, devolvi a ela, no sentido da proteção à maternidade, o direito a esse adicional”, complementa o juiz.

Nesse sentido, Barreto também compreende os Direitos Humanos como garantias jurídicas universais contra a atuação “desmesurada” de Estados, Municípios ou instituições contra os cidadãos comuns. “É muito importante que o Judiciário se movimente no sentido de garantir a aplicação desses direitos: vida, liberdade, saúde, segurança, defesa e justo julgamento”, avalia. 

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Atualização constante

Como o juiz Jorge Cruz salientou, o Direito acompanha movimentações da própria sociedade. Ele cita o exemplo da união homoafeiva, que ainda não está prevista no texto expresso de uma lei, mas teve uma interpretação da Constituição reconhecendo o casamento de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.

Assim, defende o magistrado, há uma maior sensibilidade do Poder Judiciário em aprimorar o entendimento e a aplicação dos Direitos Humanos, com a promoção de cursos e treinamentos específicos, “porque uma coisa é conscientizar, outra é sensibilizar”.

Ricardo Barreto concorda e lembra que a temática já é cobrada, inclusive, em concursos para novos juízes, exigindo maior dedicação. Para o juiz, a celeridade processual também ganha relevância para garantir os direitos individuais com mais rapidez e qualidade.

Direitos Humanos não podem estar só na Declaração Universal que você manda imprimir ou colocar na parede. Você tem que trazer e aplicar na realidade, no dia a dia do Judiciário.
Ricardo Barreto
Juiz de Direito

Legenda: Idosos são grupo vulnerável que exige atenção à garantia de direitos
Foto: José Leomar

Políticas públicas

A defensora Mariana Lobo também percebe que não adianta haver ordenamento jurídico se não forem utilizadas, em paralelo, ações reais que mitiguem as desigualdades sociais e discriminações que marcam a sociedade brasileira.

“Temos uma pequena parte da sociedade que não consegue compreender a real magnitude do que são Direitos Humanos porque nunca sofreu a ausência de um direito básico. Apesar de o Brasil ter uma Constituição e previsões legais, a aplicação e as condições materiais para a efetividade desses direitos é quase inexistente, por isso, muitas vezes, temos que recorrer ao Poder Judiciário para garanti-los”, destaca.

Mesmo com esses desafios, a nível de Estado, o Ceará vem aplicando uma série de políticas públicas de proteção social baseadas nos Direitos Humanos, como:

  • Mais Infância Ceará: envolve obras e ações para combater a desigualdade e promover o desenvolvimento integral da criança;
  • Vale Gás Social: recarrega gratuitamente o botijão de gás à população cearense em situação de vulnerabilidade;
  • Ceará Sem Fome: desenvolve e realiza ações para alimentar a população mais carente do Estado;
  • Programas de Proteção: fornecem medidas protetivas a pessoas em situação de risco, ameaça ou que sofreram grave violação de direitos;
  • Casa da Mulher Cearense: atua como rede de proteção e atendimento humanizado às mulheres em situação de violência.

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