Celular na sala de aula: o que dizem especialistas sobre proibir totalmente o uso do aparelho
Orientação do MPCE desta semana cita lei estadual de 2008 e evoca o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A medida permite o uso para fins pedagógicos e durante o recreio
A recomendação do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) de que as redes pública e privada impeçam estudantes de usarem celulares nas aulas trouxe, novamente, destaque ao assunto que vem sendo debatido mundo afora e ainda é bastante complexo. Entre a restrição total e a liberação sem filtro, há muitos pontos relevantes.
Um deles é a autonomia e a proatividade das escolas na definição do que adotar. E isso, afirmam especialistas, requer que discussões sejam amadurecidas nas próprias unidades com a área pedagógica e os demais campos da Ciência. Além disso, incluir pais e responsáveis no processo é essencial.
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Na quarta-feira (7), o MPCE divulgou uma recomendação para que a Secretaria da Educação do Estado do Ceará (Seduc), a Secretaria Municipal da Educação de Fortaleza (SME) e representantes de escolas particulares orientem os diretores das instituições para restringir o uso de celulares e outros equipamentos nas salas de aula a práticas pedagógicas. Fora isso, a utilização deve ser permitida apenas durante o recreio.
“Porém, caso seja constatado que o uso da tecnologia, mesmo durante o intervalo, esteja prejudicando a formação ou o ensino dos(as) alunos(as), as autoridades escolares poderão determinar o desligamento imediato do aparelho e os pais ou responsável deverão ser chamados para tomar conhecimento dos fatos para que tomem as providências necessárias”, continua o Ministério Público estadual, em nota à imprensa.
Medida no mesmo sentido já foi adotada em outros locais do Brasil. No Rio de Janeiro, por exemplo, um decreto publicado no Diário Oficial do município no dia 2 de fevereiro regulamenta o uso de celulares e outros dispositivos por estudantes das escolas da rede pública. A restrição inclui períodos de intervalo e recreio. Em janeiro, a prefeitura havia feito uma consulta pública com mais de 10 mil contribuições e 83% das respostas foram a favor da proibição.
Já na Bahia, no último 6 de fevereiro, o Ministério Público estadual recomendou à cidade de Pilão Arcado que proíba o uso de aparelhos celulares nas salas de aula dos estabelecimentos de ensino públicos e particulares, com exceção para casos com prévia autorização para aplicações pedagógicas. Confira o relatório publicado pela Organização das Nações Unidas para Educacação, Ciência e Cutlura (Unesco),
“A premissa básica deste relatório é que a tecnologia deve servir às pessoas e que a tecnologia na educação deve colocar os estudantes e professores no centro. (...) Como grande parte da tecnologia não foi elaborada para a educação, sua adequação e seu valor precisam ser comprovados em relação a uma visão da educação centrada no ser humano”, aponta o documento.
Na recomendação do MPCE, o órgão usa como referência a Lei Estadual 14.146 de 2008. Aprovada há 16 anos no território cearense, a norma foi proposta em um contexto de destaque dos discursos que apontavam os notáveis prejuízos socioeducacionais provocados pelo uso excessivo dos celulares e, em paralelo, também na dispersão e no isolamento social dos estudantes.
No atual cenário pós-pandemia de Covid-19, no qual as tecnologias foram incorporadas de modo quase obrigatório, por necessidade, na relação professor-aluno e estudante-escola, várias outras dimensões desse uso precisam ser consideradas no debate.
Há pedagogos que reconhecem que o telefone pode ser um instrumento de apoio ao ensino e proibi-lo totalmente não é o caminho. Por outro lado, a escola é um lugar de potencial interação, e há argumentos de que a exposição a telas é um fator que atrapalha a socialização, a concentração e até a estabilidade emocional dos estudantes.
A recomendação do MP no Ceará não encerra o assunto. Pelo contrário, dada a relevância desse tipo de decisão, gera ainda mais discussões e pode resultar em resoluções sobre o tema. O Diário do Nordeste ouviu especialistas da área da educação que debateram: a proibição total é a melhor estratégia? E não sendo desse modo, o que pode ser feito?
DIFERENTES VISÕES SOBRE A QUESTÃO
Para Alex Sant'Ana, professor da Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal do Ceará (UFC) que trabalha com tecnologia educacional, os professores e diretores de escolas “não devem temer” a recomendação. Isso porque, de acordo com ele, o Ministério Público estadual segue o que é orientado em cursos de formação de professores: que toda tecnologia pode ser usada na escola, desde que tenha uma função pedagógica.
Se não é uma função pedagógica, realmente não cabe a utilização, isso não é adequado, porque a escola tem uma atividade fim, que é formar para a cidadania e formar para o mundo do trabalho. Isso está na Lei Federal 9.394, de 1996, que trata da Educação Nacional.
O docente também destaca a referência do MPCE ao Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) e aponta os riscos aos quais os alunos podem ser expostos com o uso dos aparelhos.
“Se subentende que o ECA busca a proteção da criança e do adolescente. Se eles (estudantes) ficam na escola usando o celular sem orientação, acessando redes sociais e outros conteúdos, eles estão sujeitos, às vezes, a situações de criminalidade, eles podem ser aliciados, podem estar sendo vítimas de alguma coisa e a escola não está acompanhando esse processo”, alerta.
Apesar de a recomendação do MPCE prever o uso pedagógico dos equipamentos, Sant’Ana aponta que a lei estadual citada pelo órgão não segue essa linha. Por isso, ele entende que a norma está desatualizada. “Ela proíbe totalmente o uso do celular, não menciona que pode usar em certas circunstâncias. Então, esse foi o grande problema que eu vi”, comenta.
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A psicóloga Tatiana Ribeiro, doutora em educação e docente do curso de Pedagogia da Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos (FAFIDAM) da Universidade Estadual do Ceará (UECE) em Limoeiro do Norte, chama atenção para o fato de que crianças estão em pleno desenvolvimento neuropsicológico. Portanto, reforça, as discussões sobre vetar ou liberar o uso de celular precisam considerar o foco e a concentração.
Para ela, um uso equilibrado que pode ser incorporado e aprimorado pelas escolas é o celular como uma ferramenta de aprendizagem. Na prática, destaca, os educadores precisam desenvolver habilidades para que a utilização do celular seja uma estratégia metodológica, por exemplo:
- Como recurso didático para a pesquisa;
- Na utilização de aplicativos que facilitem a aprendizagem e detenham a atenção dos alunos;
- Para a interação em trabalhos em grupos
Já o professor Nilson Cardoso, docente do curso de Ciências Biológicas da Uece no Campus de Crateús e presidente do Sindicato de docentes da Uece (Sinduece), afirma que o tempo para fazer a construção do melhor uso da tecnologia em sala de aula foi “perdido” e que pesquisas apontam que “não há melhoria na aprendizagem pela virtualização e pelo uso excessivo desses equipamentos”.
“Acho que a pandemia acelerou muito o envolvimento com esse equipamento, com esse tipo de tecnologia da virtualização das relações”, avalia. De acordo com o docente, caso essa discussão tivesse sido feita antecipadamente, poderia ter existido benefício maior para a aprendizagem.
Por isso, Cardoso avalia que, no momento, “o melhor” a fazer é criar uma barreira para o uso do celular. “Criar esse elemento de dizer que não (pode) e talvez, a partir disso, a gente começar a discutir que possibilidades a gente pode ter com o uso desse equipamento.”
O uso desse equipamento de uma forma bem planejada pedagogicamente poderia trazer muitos ganhos pedagógicos. Mas, como a gente perdeu esse tempo de pensar isso e ele entrou de outra forma, acho que hoje a gente precisa barrar. As pesquisas já têm mostrado que o uso dessas telas e o uso desses equipamentos nada ajuda na sala de aula, muito mais atrapalha, e então a gente tem que dar um freio. (...) Imagino que vai gerar uma tensão para alunos, para professores, porque boa parte das relações hoje se dá pelo uso desse equipamento, mas acho que ganha a escola, ganha a relação interpessoal entre alunos e professores. Acho que em um futuro breve a gente vai conseguir enxergar que essa é uma boa decisão.
O professor destaca como efeitos do uso do celular a falta de concentração e de “envolvimento” com colegas e professores, além da falta de controle por parte da escola ou dos próprios pais em relação às interações com outras pessoas. “Naquele momento da escola pode estar acontecendo algum abuso via celular e não tem como ter um acompanhamento, como ter um direcionamento.”
Para Cardoso, é necessário haver uma discussão “muito maior” sobre um limite para o uso do celular não só na escola, mas na sociedade. “A gente cada vez mais extrapola o uso dele e vai se individualizando, vai fragilizando essas relações. E o nível de adoecimento que a gente tem observado por esses equipamentos é muito grande”, alerta.
ENCONTRAR EQUILÍBRIO
Tatiana Ribeiro avalia que, quando o tema é tratado da perspectiva da proibição absoluta, é preciso considerar as dificuldades para “uma geração que já nasceu inserida no mundo tecnológico”. Mas, em paralelo, diz: “é necessário pensar quão desafiante é essa cultura digital para a aprendizagem hoje”.
Temos uma escola que é cercada de atrativos outros que vão seduzindo o aluno, seja ele criança ou adolescente, para as aprendizagens que são propostas nas escolas, chamadas de formais. Nesse sentido, é um desafio para a escola chegar a um meio termo. A proibição, para mim, acaba sendo um atrativo a mais para o estudante transgredir a norma e aí passe a fazer uso proibido. E já vimos, ao longo da história da escola, vários momentos de transgressões por parte dos estudantes.
A necessidade de encontrar um equilíbrio também é destacada pelo professor Alex Sant'Ana. O docente afirma ser a favor de um “meio termo” e aponta a relevância de conscientização dos estudantes sobre as oportunidades e os riscos oferecidos no ambiente virtual — assim como no físico.
O professor da UFC indica a permissão de uso no horário de intervalo como aspecto positivo. “É um momento que ele (o aluno) poderia estar mais livre para acessar alguns sites, alguns aplicativos. Então, caberia só a conscientização, um certo cuidado para não colocar em risco a privacidade, por exemplo”, comenta.
Nilson Cardoso afirma que essa é uma “possibilidade de mediação”. Por não se referir ao uso do celular para alguma atividade pedagógica, ele diz que essa é uma questão que compete à organização da escola. Por outro lado, o docente afirma não ver possibilidade de mediação se a discussão envolve os riscos durante o período do aluno na instituição.
“Mas isso é uma coisa que talvez a gente vá ter que aprender. Porque o nível de uso e de ansiedade que também possa gerar pela ruptura tão brusca dessa medida — que antes era totalmente permitida e agora não —, talvez possa ser um meio termo para a gente chegar a um caminho que é não utilizar o celular na escola”, comenta Cardoso.
Para a psicóloga, barrar o uso desses aparelhos nesse momento “só vai estar postergando a discussão que uma hora outra vai se impor”. Ela também avalia que esse debate ainda está muito atravessado pelo “choque de gerações”, e há resistência à compreensão da inserção das aprendizagens no mundo tecnológico.
“A gente discute isso na escola, mas ainda discute de um modo muito apegado se vamos abrir mão dos nossos conhecimentos didáticos anteriores ou se vamos precisar pensar de outro modo”, afirma.
AUTONOMIA DAS ESCOLAS
Tatiana Ribeiro argumenta que no debate sobre o uso das tecnologias em salas de aula, cada escola precisa assumir esse papel e ter autonomia para definir a partir da sua própria realidade. E, nesse processo, garantir debates internos que assegurem a participação dos pais e responsáveis. “A escola é o segundo grupo social de crianças e adolescentes, e como a escola faz essas discussões e os pais não são convidados?”, questiona.
Além disso, ela pondera que a discussão precisa incorporar outros campos e outras ciências, como a neurociência e a psicologia, para que as mesmas participem da definição do que é melhor para o desenvolvimento dos alunos e apontem o que já se tem de conhecimento nessas áreas sobre o uso do celular por parte dos estudantes.
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Alex Sant'Ana afirma que a decisão sobre uso ou não do celular e de outros equipamentos também é uma construção que varia entre as escolas, uma vez que cada instituição é “única”.
“Existe escola na zona rural, na zona urbana. Existe escola em comunidades indígenas, em comunidades quilombolas. A educação no semiárido é diferente de uma educação no sudeste, na montanha. Cada lugar é único, então é preciso que os educadores se reúnam, levem em consideração a cultura local. (...) Mas, acima de tudo, o Brasil é um país democrático. Nós vivemos na democracia, então é preciso construir as coisas, as compreensões, de forma coletiva”, afirma.
Ele ainda acrescenta que a instituição pode incluir o entendimento sobre esse tema — assim como o uso da inteligência artificial, por exemplo — em seu Projeto Político-Pedagógico (PPP), “documento que é necessário que cada escola construa, revise e atualize de tempos em tempos”.