Quem pode ser Rainha do Milho? Filme reflete sobre lugar do feminino e masculino nas festas juninas

Videodança parte de memórias juninas de infância para refletir sobre gênero e tradição nordestina.

Escrito por
João Gabriel Tréz joao.gabriel@svm.com.br
Projeto parte de memórias de infância ligadas ao São João para tensionar papeis de gênero e sexualidade
Legenda: Projeto parte de memórias de infância ligadas ao São João para tensionar papeis de gênero e sexualidade
Foto: Waldirio Castro / Divulgação

Nem o noivo, o pai da noiva ou o padre. O desejo infantil que o artista, pesquisador e curador Waldirio Castro guarda das memórias ligadas ao contato com a cultura das quadrilhas juninas de Campina Grande (PB), onde nasceu, era o de ser a rainha do milho. A vontade, de fato, era poder dançar com o vestido da personagem de maneira livre.

A partir desse disparador, o artista radicado no Ceará deu vazão ao projeto intitulado “Rainha do Milho”, cuja mais recente obra é um filme no formato videodança. Junto a um grupo de mais cinco artistas da região Nordeste, o trabalho coletiviza o olhar às memórias e insere a concretização desse desejo em diferentes espaços de Fortaleza. 

O produto audiovisual será lançado nesta sexta-feira (27) na Casa de Antônio Conselheiro, em Quixeramobim, e na terça-feira que vem (1º de julho), no Hub Porto Dragão, em Fortaleza. 

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“Memórias afetivas de criança viada”

Em entrevista por telefone ao Verso, Waldirio detalha as memórias de infância no São João que inspiraram a criação do projeto.

“Foi algo que desde a minha infância se apresentou no meu contexto pessoal. Esse trabalho parte muito mais dessas memórias afetivas, porque sempre na escola a gente se organizava para fazer a quadrilha. Também (veio) de assistir aos eventos que aconteciam no Parque do Povo, onde se apresentavam as quadrilhas”
Waldirio Castro
artista, pesquisador e curador

Com pesquisa que passeia por diferentes linguagens, mas costumeiramente ligada a questões de sexualidade, Waldirio usou as “memórias afetivas enquanto criança viada” para repensar padrões e modelos como as vestimentas ditas “femininas” e “masculinas” no contexto junino.

O projeto se expressou primeiro em 2019 como espetáculo solo em dança, fruto do Curso Técnico em Dança da Escola Porto Iracema das Artes. Depois, se desdobrou em performances urbanas entre 2023 e 2024.

Nesse formato, Waldirio percorria espaços públicos de Fortaleza trajando uma saia de rainha do milho e levava uma caixa de som que tocava respostas de crianças ao questionamento sobre já ter visto algum menino usando vestido.

Brincar de performar

A aposta em diferentes linguagens, credita o artista, é fruto da “formação indisciplinar” que marca a trajetória dele no campo. “Mais do que pensar ‘vou criar para a dança, para a performance’, não penso a linguagem como fim, mas como possibilidade de compartilhamento de uma poética”, aponta.

“Tem a ver com essa trajetória artística e, até, as das pessoas que participam do projeto. Muitos também são artistas ‘indisciplinares’ e a construção coletiva acabou gerando esses desdobramentos”, segue o idealizador.

Com roteiro, idealização e coreografia de Waldirio, a videodança “Rainha do Milho” — que foi contemplado na categoria videodança do Edital de Apoio ao Audiovisual Cearense, da Secult Ceará — soma à reflexão artistas convidados com diferentes níveis de ligação com dança e cultura junina: 

Antônio Breno, de Baturité (CE); João Paulo Lima, de Fortaleza (CE); Wandeallyson Landim, do Crato (CE); Yorran Santos, de Campina Grande (PB); e Pablo Vieira, de Natal (RN)

“Como desdobramento último, surge esse filme onde convoco mais cinco bichas pra dançar comigo nesse trabalho. A ideia é performar na Cidade com essa saia da Rainha do Milho trazendo memórias de infância de crianças viadas, discussão de gênero e sexualidade”, avança.

A partir da proposta de se voltar às infâncias, o filme convida à dança e à concretização de performances representando a personagem junina em diferentes espaços de Fortaleza. 

Projeto nasceu como obra de dança, teve intervenção urbana e performance e, agora, ganha filme
Legenda: Projeto nasceu como obra de dança, teve intervenção urbana e performance e, agora, ganha filme
Foto: Waldirio Castro

“Entendo que esse grupo de pessoas que dançaram não são necessariamente bailarinos ou dançantes de quadrilha, mas que naquela instância na verdade a gente é criança, na verdade a gente está brincando”, aponta Breno, que é ligado ao campo das artes visuais.

“De alguma forma, o filme retorna a liberdade da criança, essa liberdade de poder balançar o vestido sem ter um monte de ‘burunganga’ social prendendo o movimento do seu corpo de se expressar”
Antônio Breno
artista visual

Reflexões sobre tradição

Entre o grupo, o baturiteense guarda relação próxima com a cultura das quadrilhas, tendo participado por volta de 2007 de funções de “bastidores” e levado os conhecimentos para a própria obra visual.

Seis performers participam da videodança 'Rainha do Milho', idealizada por Waldirio Castro
Legenda: Seis performers participam da videodança "Rainha do Milho", idealizada por Waldirio Castro
Foto: Divulgação

“Festas populares, organizações que juntam pessoas, são instituições de aprendizagem. Quando você está dentro de um grupo popular fora de uma capital, isso é ainda mais visível, nesses espaços você aprende a desenhar, costurar, montar cenário, fazer figurino, cabelo, arranjo”
Antônio Breno
artista visual

Ao unir cultura popular e reflexões sobre gênero e sexualidade, o projeto de Waldirio abre espaço para reflexões sobre os lugares da tradição. Nas quadrilhas, por exemplo, há ao mesmo tempo aspectos de gênero bem demarcados, de passos a vestes, mas participação ampla de pessoas LGBTs.

“Quando a gente fala de tradição, e principalmente de manifestações demarcadas como tradicionais, se tem também, às vezes, um congelamento com relação às discussões contemporâneas”, inicia.

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“Ao mesmo tempo em que a quadrilha tem esse papel muito demarcado com relação ao que é masculino e feminino, principalmente nos últimos anos também tem uma presença muito forte de pessoas LGBTs não só nos bastidores”, avança.

Projeto revê papeis de gênero a partir de memórias de infância ligadas ao São João
Legenda: Projeto revê papeis de gênero a partir de memórias de infância ligadas ao São João
Foto: Divulgação

“Tem muitas mulheres trans que participam como rainhas, a gente vem percebendo uma crescente representação desses outros corpos que historicamente não estiveram ocupando esse espaço e trazendo outros movimentos para essa discussão da tradição junina", acrescenta Waldirio. 

“Não lembro de quando eu entrei para o São João, em 2007, 2008, de ter alguma rainha que fosse trans, e a gente tem hoje grandes rainhas”, dialoga Breno, que também ressalta: “Essas pessoas sempre estiveram lá, mas de repente não com esse papel de destaque. Hoje tem uma recepção mais visível. Você literalmente vê as pessoas, elas não estão escondidas”.

Rainha do Milho

  • Quando: lançamento na sexta (27), em Quixeramobim, e na terça (1º/7), em Fortaleza
  • Onde: Casa de Antônio Conselheiro (rua Cônego Áureliano Mota, 210 - Centro, Quixeramobim) e Hub Porto Dragão (rua Bóris, 90 C - Centro)
  • Entrada gratuita.
  • Mais informações: @imaginarios_arte

Ficha técnica:

Produção Executiva: Plataforma Imaginários
Roteiro/Idealização/Coreografia: Waldirio Castro
Direção: Eduardo Bruno
Direção de Fotografia/Edição: Breno de Lacerda
Trilha Sonora original: Ayrton Pessoa Bob 
Performers: Antônio Breno, João Paulo Lima, Pablo Vieira, Waldirio Castro, Wandeallyson Landim, Yorran Santos
Agradecimentos: Maria Valdênia, Maria Eduarda, Hayka Moraes, Associação Cultural Esportiva Social Filhos do Sertão, Hub Cultural Porto Dragão

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