Qual o impacto do ensino de música na vida de crianças e idosos?
Mudanças cerebrais e comportamentais são algumas das principais diferenças
Não se trata apenas de aprender a cantar ou tocar um instrumento. A musicalização é processo que transforma vidas e gera resultados surpreendentes.
Se a faixa de idade contemplar a infância e a velhice, então, os impactos são ainda maiores. “A prática musical oferece benefícios significativos em diversas fases”, introduz a psicóloga Natasha Barrocas.
Terapeuta familiar e idealizadora do projeto Fora da Caixa – com foco em jornadas de aprendizado comportamental – ela situa os benefícios da prática, sobretudo entre crianças e idosos.
Nas primeiras, promove o desenvolvimento da linguagem, aprimora a memória e a capacidade de atenção. Também aperfeiçoa a coordenação motora fina e as habilidades sociais, ao mesmo tempo que contribui para a regulação emocional.
Para idosos, por sua vez, a música se revela curativa. Pode amenizar sintomas de depressão e ansiedade, fortalecer a memória, estimular o aprendizado de novas habilidades, aprimorar a aptidão motora e oferecer senso de propósito. “A participação em atividades musicais coletivas ainda favorece a socialização”, dimensiona a psicóloga.
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“Diversas áreas do cérebro são ativadas, incluindo o córtex auditivo, o córtex pré-frontal, áreas relacionadas ao planejamento e controle executivo, os lobos temporais (envolvidos na memória verbal), o cerebelo (responsável pela coordenação motora, tempo e ritmo) e o corpo caloso (que conecta os hemisférios cerebrais)”.
Tem mais: também estimula redes neurais associadas à atenção, ao prazer e à recompensa, promovendo a plasticidade neural – fatores capazes de aumentar a memória, funções emocionais, funções executivas e linguagem.
Resultado: influência positiva e multifacetada no desenvolvimento cerebral, mas não apenas.
O Verso conversou com diferentes escolas de música em Fortaleza e na Região Metropolitana para saber as experiências de cada uma na transmissão de saberes e como percebem alterações na dinâmica pessoal e interpessoal de estudantes crianças e idosos. As partilhas, você verá, são singulares e podem inspirar novos mergulhos no segmento.
Como são as metodologias
Surgida com propósito de levar música de forma estruturada para a vida de diferentes famílias – “como um elo capaz de marcar momentos, fortalecer vínculos e acompanhar o crescimento” – a GLB Music atua com crianças a partir dos quatro meses de idade, além de jovens e adultos, em aulas individuais e em grupo.
Qualquer pessoa pode se matricular: basta ter vontade de aprender e viver a música como parte da vida.
“Utilizamos um método próprio, inspirado e baseado nos princípios da Music Learning Theory, de Edwin Gordon, e nos métodos ativos, que priorizam a vivência musical antes da teoria”, explica Libny Benevides, fundadora da casa.
Não sem motivo, considera-se no espaço a escuta, o movimento e a vivência como bases da aprendizagem. O aluno sente, compreende e cria música de forma natural, respeitando o próprio estágio de desenvolvimento e o ritmo individual.
São aulas de musicalização infantil, violão, teclado, canto, bateria, violino, guitarra e baixo, além de grupos de prática em conjunto. Ao todo existem mais de 20 modalidades, do erudito ao popular.
“Nossos cursos são livres, com formação contínua – o aluno não ‘termina’ um ciclo, mas progride musicalmente. Ele inicia explorando o som e o ritmo de forma intuitiva, e avança até dominar leitura, técnica e expressão artística”, complementa Libny.
Localizada na Barra do Ceará, a Casa de Vovó Dedé também tem jeito particular de transmitir saberes. A metodologia da escola é centrada em três eixos: acolhimento de ordem social; encantamento musical; e formação propriamente dita, na qual estudantes terão contato com o conteúdo propriamente de música.
A expressão artística é pensada para apresentações, algo também encarado como instrumento pedagógico.
Diretor artístico da entidade, Ewelter Rocha diz que a instituição tem todos os instrumentos de sopros e de cordas, além daqueles como bateria, teclado, violão e até harpa.
“É um leque muito grande. A música tem o poder de despertar protagonismo nos alunos, já que eles são convidados a participar, a atuar… Você perde um pouco da inibição em relação às pessoas que não têm esse contato, ela consegue trazer esse outro lado”, celebra o mestre.
Métodos específicos
O Instituto Jacques Klein, por sua vez, aposta em um método criado pelo japonês Shinichi Suzuki. O princípio é de que toda criança tem potencial para aprender música da mesma forma que aprende a falar a língua materna, ou seja, por meio de escuta, imitação e repetição.
“A metodologia enfatiza o envolvimento ativo dos pais, o desenvolvimento do caráter e a formação humana integral, mais do que a busca por virtuoses”.
Quem explica é Luís Maurício Carneiro, coordenador pedagógico do Instituto e maestro da Orquestra Jacques Klein. Segundo ele, as aulas acontecem de forma lúdica e vivencial, com foco na escuta e na prática antes da leitura de partituras.
A repetição e as variações no repertório ajudam estudantes a consolidar o aprendizado progressivamente, em um ambiente acolhedor, motivador e de brincadeiras.
“Essa abordagem respeita o tempo de cada estudante e favorece o início precoce do aprendizado musical, aproveitando a sensibilidade e a neuroplasticidade natural da infância”.
No geral, são aulas de iniciação musical, violino, viola acústica, violoncelo, contrabaixo acústico, piano e canto coral. Além da Orquestra Jacques Klein, há também o Coral Vozes de Iracema, com alunos e integrantes do Passaré, onde o Instituto está inserido.
Outro lugar dourado para a musicalização é a Tapera das Artes, em Aquiraz, com 42 anos de existência. Por lá, a metodologia pressupõe o contato pessoal primeiro consigo mesmo, depois com o outro, com o mundo ao redor e, em todo o processo de aprendizagem, estudantes percebem a possibilidade de um novo olhar sobre a vida por meio de movimentos cíclicos com a arte.
“O Programa Educativo da Tapera das Artes, com metodologia de autoria do Maestro Ênio Antunes, contempla 18 ateliês de artes integradas, incluindo música instrumental de cordas dedilhadas, cordas friccionadas (violino, viola, violoncelo, baixo), sopro madeiras, sopro metais, percussão, canto coral, piano, acordeon, instrumental, entre outros”, localiza Ritelza Cabral, fundadora e presidente do Conselho Consultivo da Tapera das Artes.
Todo o programa pedagógico é alinhado com os ciclos educativos da escola formal, e o desenvolvimento das atividades acontece de acordo com a idade.
Para crianças do Ensino Fundamental I, a metodologia “Musicando com Crianças” tem foco no Canto Coral, Percussão Corporal, Instrumental Sardo e instrumentos de sopro como flauta doce e pífanos.
Para o Ensino Fundamental II, a oferta se amplia para atividades com artes integradas, em ateliês de instrumentos musicais tradicionais diversos, aliados ao contato com outras atividades artísticas em artes visuais, danças populares, artesanato, cerâmica.
Por sua vez, para alunos do Ensino Médio, há cursos profissionalizantes, tanto no que se refere a grupos artísticos, como na formação em áreas diversas relacionadas com a arte, como ateliês de Luteria Tradicional, luteria Armorial, luteria Experimental, Luteria Popular, Cerâmica, Artes Visuais e Artes Cênicas.
Desafios e potencialidades
Embora em meio a tanta magia, desafios também integram o panorama. Desconstruir mitos é destaque na fala de Libny Benevides, da GLB Music.
Para ela, muita gente acredita que precisa ter dom para aprender música, que já passou da idade ou que cantar músicas aleatórias é o mesmo que fazer musicalização.
“Além disso, há uma banalização crescente no mercado, com pessoas sem formação ou sem método estruturado oferecendo aulas. A musicalização verdadeira vai muito além disso. É um processo pedagógico, com embasamento teórico, progressão e resultados a serem alcançados”. Uma das mudanças sobretudo é no seio familiar.
Na própria GLB Music, José Sombra Lessa, de 78 anos, e Emanuel Veras, de apenas sete, dividem experiências artísticas e de vida.
“Sempre fui apaixonado por violão. Tocava de ouvido, em casa, sem técnica. Resolvi fazer aula para me aperfeiçoar, e já estou pensando em fazer até mais um instrumento”, festeja o idoso. “Não é só uma ocupação, é um prazer. A música faz bem para a alma, para a mente”.
O pequeno Emanuel reitera: “Meu tipo de música favorita é o rock, mas cantor preferido é o Michael Jackson. Ganhei uma bateria do Papai Noel quando eu tinha cinco anos. Minha família me incentiva bastante”.
Na visão de Luís Maurício Carneiro, coordenador pedagógico do Instituto Jacques Klein, quando uma criança ou um idoso começam a estudar música, a família inteira é impactada.
“A música traz disciplina, autoestima e alegria – sentimentos que reverberam em casa e fortalecem os vínculos familiares”.
Na entidade a qual ele faz parte, é nítida a percepção, por exemplo, de que os estudantes da casa têm desempenho escolar significativamente melhor nas escolas regulares.
“A prática musical aprimora a concentração, a memória e o senso de responsabilidade, refletindo diretamente em seu rendimento acadêmico e comportamento. Os maiores ganhos, portanto, vão muito além da música: são ganhos de vida, de convivência e de autoconfiança”.
Quanto aos desafios, é claro: o principal deles é o acesso. “Ainda existe a percepção de que o ensino de música é algo distante ou elitizado. Outro desafio é o tempo – cada faixa etária demanda ritmos e abordagens próprias. Mas é justamente por isso que a musicalização é tão necessária: ela é um instrumento de inclusão, de estímulo cognitivo e de convivência social”.
Escolher a música
Da Tapera das Artes, Ritelza Cabral reflete que o maior desafio na seara está na conquista dessa opção poética e sentimental frente ao mundo dominado pela tecnologia – principalmente para um público infantil atraído pelo universo dos jogos eletrônicos virtuais.
“A arte é muito importante para a formação de seres humanos mais sensíveis. Escutar a voz das folhas ao vento, o ronco do mar, o canto dos pássaros, a voz do nosso próprio corpo… Fazemos esse abraço com crianças e adolescentes há 40 anos na Tapera das Artes porque entendemos que o repasse do saber deve ser profundo e emancipador do ser”, poetiza.
Mesma filosofia perpassa a Casa de Vovó Dedé. Se, a princípio, meninas e meninos podem chegar desencantados com o mundo, pouco a pouco, por meio do som, lhes é devolvido o brilho no olhar. Mas tudo é processo.
“É um tipo de ação que música e educação musical desenvolvem. E isso não é dado por nenhuma outra disciplina, a não ser no campo das artes”, pondera Ewelter Rocha.
“Aprender arte, música, lidar com esse tipo de conhecimento, vai fazer dessas pessoas muito mais confiantes e fortes, com capacidade de se encantar com as coisas da vida, com o mundo. Voltar a aprender até mesmo coisas muito simples, como abraçar o outro, sorrir e ajudar pessoas. Conviver em grupos, seja numa banda, numa orquestra ou num grupo de câmara, eleva o nível de transformação humana”.
Dicas para começar a aprender música
Perguntamos a cada entrevistado dicas para quem deseja ingressar no universo musical, independentemente de idade, gênero ou classe social.
Abaixo, você confere a opinião de cada um.
- “Comece o quanto antes, e inicie ouvindo, sentindo e se permitindo errar. Reserve um tempo do seu dia para se conectar com a música e não torne o aprendizado musical apenas como mais uma obrigação, você vai ver os benefícios que ela traz” – Libny Benevides, da GLB Music
- “É importante ter um professor ou entrar em um curso que realmente tenha um programa de ensino de música consistente, além de ter o instrumento ou que a escola disponibilize. No fim das contas, não há pré-requisito especial, mas muita vontade de aprender esse encantamento com a arte” – Ewelter Rocha, diretor artístico da Casa de Vovó Dedé
- “Desafiar o medo. Experienciar porque a arte é encantadora. Eleva, dignifica pessoa” – Ritelza Cabral, fundadora e Presidente do Conselho Consultivo da Tapera das Artes
- “Tenha paciência com o processo e valorize a escuta, porque ouvir é o primeiro passo para tocar. A música ensina a lidar com o tempo, com os outros e consigo mesmo. Mais do que uma habilidade, é uma forma de se conectar ao mundo com mais sensibilidade” – Luís Maurício Carneiro, coordenador pedagógico do IMJK e maestro da Orquestra Jacques Klein
A psicóloga Natasha Barrocas arremata: “Acredito que, para iniciar o aprendizado musical e a prática de um instrumento, é fundamental escolher algo que proporcione prazer e satisfação pessoal. É importante selecionar um instrumento que se harmonize com suas preferências, estilo e que você perceba como algo que agregará valor à sua vida”.
“Além disso, a escolha deve ser realista. Por exemplo, para um indivíduo com idade avançada, um violoncelo, por ser volumoso e pesado, pode não ser a opção ideal. Considere também aspectos como o custo financeiro e a praticidade”.