Alunos de entidade em Aquiraz reacendem saberes por meio de aulas de música pelo WhatsApp

Durante período de isolamento físico, professores da Associação Tapera das Artes aumentam o raio de alcance dos aprendizados, tornando-lhes também ferramentas de afeto

Escrito por
Diego Barbosa diego.barbosa@svm.com.br
(Atualizado às 23:22)
Legenda: Mais de 300 crianças assistem às aulas em casa por meio de acompanhamento de orientadores
Foto: Foto: Arquivo Pessoal

O costumeiro descanso após o almoço tem gosto diferente às quartas e sextas-feiras. Antecipa o abraço com a música que André Luís Henrique dá, entre às 13h e 13h50. Tem 12 anos e, desde os 9, é estudante na Tapera das Artes, associação localizada em Aquiraz cujos projetos são voltados ao desenvolvimento social de crianças, adolescentes e jovens. Oriundos de famílias de baixa renda, eles são assistidos por meio de programas específicos de educação para a arte.

Outrora nos corredores da instituição, André aprendia a tocar trompete. Agora, quando o isolamento pelo novo coronavírus é realidade e não há mais o encontro presencial, como fazer? Simples: não tem por que parar.

A paixão pelo saber não aguarda e tem sede de prosseguir. Por isso, desde o dia 1º de abril ele tem assistido às aulas pelo WhatsApp, num intercâmbio igualmente bonito de aprendizados, sobre música e vida.

“Essa é a primeira vez que estou participando de algo assim e tem sido muito divertido. É como se estivesse pessoalmente com meu professor e meus amigos… Estou amando”, comemora o adolescente.

A mãe, Aline de Sousa, pertinho do rebento, também vibra pela oportunidade. Mesmo em tempos difíceis, não é que é possível alimentar o talento do garoto?

“Acho muito importante que isso esteja acontecendo porque, além de manter a mente do meu filho ocupada nos estudos, ele se diverte muito e se sente feliz. Ameniza a falta da família Tapera das Artes”.

Residentes no distrito Lagoa de Cima, zona rural de Aquiraz, André e Aline são apenas uma pequena parte da quantidade de estudantes e famílias da Tapera que não interromperam a frequência de aulas e estão recebendo acompanhamento por meio digital.

Legenda: As aulas virtuais de trompete minimizam distância entre André Luís Henrique de Sousa e a música
Foto: Foto: Arquivo Pessoal

São aproximadamente 300 alunos já conectados, dos 500 que a associação possui. Em face desse débito, neste momento os trabalhos são direcionados para que o restante também possa fazer parte da rede, sobretudo aqueles que, por residirem em áreas de difícil sinal e vulnerabilidade, ainda encontram empecilhos na comunicação.

Processos

As aulas online são realizadas por meio de grupos no WhatsApp, divididos entre veteranos e iniciantes e por linguagens de ateliês, dependendo do instrumento utilizado. Tudo é gravado e enviado com o conteúdo planejado para o primeiro semestre deste ano, de maneira que os educadores tenham condições de realizar as trocas pedagógicas com cada aluno.

Além do material por linguagem, as aulas ainda contemplam outro, com o básico da educação coletiva de música: solfejo cantado, história da música, história da Tapera das Artes – com documentário registrando vivências e momentos ao longo do tempo na instituição– e tutorial de percussão corporal, dentre outros temas.

Legenda: Reunidos pelo aplicativo, estudantes e professores repassam ensinamentos

Munidos desse aparato, os orientadores de cada turma se organizam para fazer com que o dispositivo tecnológico peça licença para adquirir uma nova função, entrando nos lares para também ecoar saberes musicais.

Professor de Metais da Tapera, Jean Carlos utiliza um aplicativo específico para que as formações sejam realizadas em videoconferência, otimizando a observação dele quanto ao interesse dos estudantes.

“O ensino a distância está crescendo muito rápido e, para mim, é algo novo; mas, me adaptei facilmente”, confessa. “Por meio das chamadas de vídeo, vejo cada aprendiz tocando seu instrumento, praticando a leitura da partitura e, o mais importante: levando felicidade a essas crianças e adolescentes”.

Esse, inclusive, talvez seja o componente mais curioso quando desse processo de aprendizagem longe das paredes da instituição. Ao se aproximarem por meio do celular na nobre causa de prosseguir aprendendo, estudantes e professores interrompem a saudade e criam novas formas de partilhar o afeto. Tornam-se colo uns para os outros. 

Idealizadora da Tapera das Artes, Ritelza Cabral enfatiza essa questão ao afirmar que, desde o começo da quarentena, ficou muito evidente que a nova dinâmica seria também um alimento espiritual para os envolvidos, sobretudo os alunos.

“Muitos deles residem em comunidades rurais de muita vulnerabilidade. Era preciso estar próximo, criar ferramentas de comunicação e afeto. A experiência tem sido gratificante. Os diálogos com as famílias, cada vez mais ricos. Estamos conhecendo melhor como vivem nossos pequeninos músicos na intimidade de suas casas”, detalha. 

Legenda: Aulas por meio da internet são formas de adentrar no cotidiano dos estudantes
Foto: Foto: Arquivo Pessoal

Não à toa, imagens do cotidiano de cada um estão sendo compartilhadas nos mesmos grupos em que as aulas acontecem, fazendo com que os integrantes possam sentir o quão significativo tem sido esse movimento de receber carinho, palavra e atenção.

“Dividimos conteúdos técnicos, mas, para além disso, a Instituição está levando palavras de otimismo, em contraponto ao cenário de terror e medo. A música entrando sutilmente como um elemento suave que compõe a paisagem sonora e, por meio de outros tons, oferece vida para as crianças”, complementa Ritelza.

Partilhas

Outra boa percepção da gestora está relacionada com a disponibilidade dos alunos e familiares para as temáticas, que, de uma certa forma, tornaram-se atraentes e estão mobilizando ampla participação.

Feito a do Francisco das Chagas Alexandre Lima, pai da pequena Fernanda, de 11 anos. Ao ver a filha participar do processo de aprendizagem com tanto afinco, mesmo a partir do novo formato, o sentimento é de grande satisfação.

“As aulas online são muito boas e foram uma ótima saída porque, no momento de passar o conteúdo, vários alunos se unem. É mesmo que estar lá, na Tapera das Artes. À tarde, minha filha se dedica também a resumir o que viu, e percebo a vontade que ela tem de continuar”, conta.

Da parte da menina, que desde 2016 aprende bombardino e sanfona, as palavras são curtas, mas dão conta de expressar a importância da presença, em casa, de pessoas tão queridas por ela. “É muito legal porque a gente aprende algo a mais em pouco tempo. Estou sentindo falta de ir para a Tapera, mas continuo com as aulas”.

Ritelza Cabral situa que, em meio a uma realidade complicada, o ser humano está valorizando a vida quando se põe a continuar interagindo e fomentando o que há de melhor no próprio interior, como a fruição artística. São corações em busca de uma força que cada ser tem para transgredir, acessar a luz própria e a luz do outro. 

Legenda: Aulas são divididas por categorias (alunos novatos e veteranos e também linguagem)
Foto: Foto: Arquivo Pessoal

“Parece que estamos abertos para dar e receber. É um momento rico de trocas de conteúdos técnicos e afetos generosos. A recepção dos participantes é de uma alegria só. Até receita de bolo eu recebi da Lígia, mãezinha que é a confeiteira de nosso café. Para além das aulas de música, o grupo também compartilha saberes”, destaca.

E quando tudo passar e o cotidiano voltar a ser o mesmo de sempre, a previsão é que cada um esteja fortalecido, a fim de adentrar na paisagem da vida de pessoas cuja convivência era diária, mas não havia a dimensão do quão importantes eram umas para as outras. “O mundo renascerá melhor, na compreensão de que realmente é essencial cuidar dos indivíduos e do planeta”.

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