‘O Último Azul’, ‘Nó’ e ‘Papagaios’ evidenciam a potência do cinema autoral brasileiro em Gramado

Primeiros longas-metragens exibidos no Festival de Gramado arrebatam a plateia com propostas autênticas e profundamente brasileiras

Escrito por
Diego Benevides* verso@svm.com.br
Equipe do longa-metragem pernambucano “O Último Azul”, que estreia ainda este mês em circuito comercial
Legenda: Equipe do longa-metragem pernambucano “O Último Azul”, que estreia ainda este mês em circuito comercial
Foto: Kätlin Fotografias / AgNews

A primeira exibição nacional do premiado filme pernambucano “O Último Azul”, dirigido por Gabriel Mascaro, aconteceu na abertura do 53º Festival de Cinema de Gramado, na última sexta-feira (15). Reconhecido com três prêmios no Festival de Berlim deste ano, entre eles o prestigiado Urso de Prata, o longa é protagonizado por Denise Weinberg e traz participações de Rodrigo Santoro, Adanilo e Miriam Socarrás.

Com uma recepção calorosa do público, que lotou o Palácio dos Festivais para assistir ao filme na serra gaúcha, a noite também foi marcada pela homenagem a Rodrigo Santoro, que recebeu o Kikito de Cristal por sua contribuição ao cinema internacional. Prestes a completar 50 anos de idade, Santoro relembrou “Bicho de Sete Cabeças” (2000), de Laís Bodanzky, obra que o projetou como ator, e reforçou que seu compromisso com o cinema brasileiro, sobretudo com as produções independentes.

“Eu busquei dar vida a personagens em diferentes idiomas, culturas e realidades, mas sempre muito conectado com o meu DNA, com a minha essência e com o meu coração, que é absolutamente brasileiro”, disse Santoro. “Eu dedico esse prêmio à resistência cultural e à coragem de todos os profissionais do nosso meio que, apesar dos grandes desafios que temos enfrentado, continuam trabalhando para contar as nossas poderosas histórias para o mundo”, continuou.

“O Último Azul” foi rodado em Manaus, Manacapuru e Novo Airão, cidades do Amazonas
Legenda: “O Último Azul” foi rodado em Manaus, Manacapuru e Novo Airão, cidades do Amazonas
Foto: Vitrine Filmes/ Divulgação

Em “O Último Azul”, Santoro interpreta Cadu, um homem solitário que conduz um barco pelos rios da Amazônia. Cadu encontra Tereza, papel de Denise Weinberg, uma senhora de 77 anos forçada pelo governo a se mudar para uma colônia de idosos. Na tentativa de escapar do exílio forçado, Tereza inicia uma jornada de fuga desse destino infeliz e, ao mesmo tempo, de reencontro com ela mesma.

O longa é uma distopia que reflete sobre o envelhecimento com melancolia, além de criticar políticas de exclusão praticadas por governos autoritários. A sentença faz com que Tereza perca a sua autonomia e passe a ser controlada por sua filha, que agora decide o que ela pode ou não fazer, mesmo que esteja em plenas condições psicológicas e físicas de decidir por si.

A história recorre a alguns elementos fantásticos de forma econômica, talvez por se interessar mais em estabelecer uma reflexão existencial para a protagonista e para os demais personagens do que em mergulhar no gênero fantástico. Esse existencialismo é recorrente nos filmes de Mascaro, considerado um dos expoentes do cinema pernambucano e responsável por obras como “Ventos de Agosto” (2014), “Boi Neon” (2015) e “Divino Amor” (2019).

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“O Último Azul” tem estreia marcada para o dia 28 de agosto nos cinemas nacionais, mas antes ganhará sessões especiais com a presença do diretor em nove cidades, incluindo Fortaleza. A sessão acontecerá às 19h do dia 27, no Cinema do Dragão, e está com ingressos esgotados.

A partir do dia 20, a programação do Cinema do Dragão também contará com uma mostra especial dedicada à filmografia de Mascaro, incluindo exibições de “Avenida Brasil Formosa” (2011) e “Doméstica” (2013).

Mostra Competitiva de Ficções

Dois longas-metragens se destacaram nos primeiros dias de Festival de Cinema de Gramado. O primeiro é “”, produção paranaense dirigida por Laís Melo e inteiramente formada por mulheres. Na trama, acompanhamos Glória — uma interpretação brilhante da atriz Saravy — dividida entre a dura rotina de trabalho e a vida familiar com suas três filhas jovens. Enquanto espera uma possível promoção no emprego, Glória se vê diante de um conflito com o seu ex-companheiro, que pede a guarda das filhas.

Cineasta Laís Melo apresentou a ficção paranaense “Nó” na competição do Festival de Cinema de Gramado
Legenda: Cineasta Laís Melo apresentou a ficção paranaense “Nó” na competição do Festival de Cinema de Gramado
Foto: Elo Studios/ Divulgação

“Nó” estabelece uma dinâmica narrativa própria, resultado de um longo processo colaborativo e intelectual da equipe que buscou refletir as existências femininas diante de uma estrutura opressora, violenta e masculina. O roteiro acerta ao estar menos preocupado em reproduzir tais violências para jogar luz nas marcas deixadas nas personagens que se acumulam e as sobrecarregam.

É um filme que explora a força dessas mulheres sem romantismo excessivo quanto à sobrevivência delas nesses espaços, e questiona com maturidade e um pouco de dureza as (in)submissões enfrentadas por elas. Com sequências visualmente arrojadas, “Nó” faz uma leitura desse cotidiano muitas vezes invisibilizado (ou descredibilizado).

Já o carioca “Papagaios” é o primeiro longa-metragem de ficção de Douglas Soares, que dirigiu o documentário “Xale” (2016) e os curtas-metragens premiados “A Dama do Peixoto” (2010), ao lado de Allan Ribeiro, e “Contos da Maré” (2013). A obra impressiona pela originalidade da temática, que trata sobre as figuras emblemáticas dos papagaios de pirata, pessoas que gostam de aparecer na mídia.

O roteiro aborda com complexidade esses aspirantes a subcelebridades e discute a fama em uma época anterior à explosão de egos das redes sociais. As escolhas estéticas de “Papagaios” são rigorosas, constantemente desafiadas pela psicologia dos personagens e pela miscelânia de gêneros que o enredo toca sem cair em caricaturas forçadas.

Cearense Gero Camilo (ao fundo de terno) estrela “Papagaios” ao lado de Ruan Aguiar
Legenda: Cearense Gero Camilo estrela “Papagaios” ao lado de Ruan Aguiar
Foto: Olhar Filmes/ Divulgação

O ator cearense Gero Camilo e o jovem Ruan Aguiar dividem o protagonismo da obra com duas construções densas dos personagens Tunico e Beto, que se aproximam e se distanciam no decorrer da história. Os dois iniciam uma relação que se revela de forma gradual e causa dúvidas sobre os seus próprios destinos. O elenco de apoio traz nomes como Leo Jaime, que interpreta uma versão dele mesmo, essencial para a trama; e as apresentadoras Claudete Troiano e Babi Xavier, ícones da televisão brasileira.

A direção segura de Soares, a montagem de Allan Ribeiro e a fotografia de Guilherme Tostes se unem para orquestrar com harmonia invejável um filme cuja inventividade da narrativa exige que o espectador esteja atento às pistas e aos detalhes que são sugeridos. Não é só uma comédia cotidiana banal, muito menos um suspense tradicional. “Papagaios” é um estudo contundente e instigante do espetáculo midiático, tão cruel quanto irônico.

*Colaboração especial para o Verso do Festival de Cinema de Gramado