Nascido em vila e filho de agricultor, quem é o escritor cearense traduzido e vencedor do Jabuti

Cláudio Aguiar tem 80 anos, publicou mais de 40 livros, foi traduzido para diversos idiomas e segue escrevendo sobre temas que discutem o Brasil

Escrito por
Diego Barbosa diego.barbosa@svm.com.br
Na imagem, o escritor cearense Cláudio Aguiar na casa mantida em Olinda, Pernambuco
Legenda: Aos 80 anos, Cláudio Aguiar segue em plena boa forma narrativa, escrevendo as próprias memórias e revisa uma coletânea de poemas
Foto: Leopoldo Conrado Nunes

Talento não escolhe lugar, raça, gênero nem condição social. Escolhe gente. Olhe para Cláudio Aguiar. Filho de agricultor, nascido no sítio Buriti dos Carreiros – situado no topo da Serra da Ibiapaba, vila de Poranga, interior do Ceará – tornou-se importante nome da literatura brasileira, vencedor de prêmios e traduzido para várias línguas. História bonita, cujos detalhes reforçam a grandiosidade das letras cearenses.

Aos 80 anos, ele mesmo faz um passeio pelo próprio caminhar. Considerando edições físicas e e-books, além de traduções, são mais de 40 livros publicados. Narrativas, teatro, ensaio e poesia integram o panorama. Alguns desses títulos já foram traduzidos e vertidos para russo, francês, espanhol, inglês e romeno – feito notável.

Há também coleção de prêmios, na ordem das dezenas. Entre os principais, estão o Nacional de Literatura MEC/INL, devido ao romance “Caldeirão”; Prêmio Iberoamericano de Narrativa Miguel de Unamuno, pelo romance “El rey de los bandidos”; e o Jabuti, maior láurea do mercado editorial brasileiro, concedido a “Francisco Julião, uma biografia”.

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O início dessa movimentada trajetória literária vincula-se ao período em que Cláudio passou a morar no Recife, aos 17 anos. À época, a atividade de “repórter de campo” do jornal Liga – órgão oficial do movimento político Ligas Camponesas – levou-o a refletir sobre a vida. 

“Foi uma intensa fase de aprendizado a partir dos problemas vividos por aquela classe social tão carente. A partir de então, não apenas as leituras me levaram a pensar se é possível existir alguma saída para os seres humanos diante de tantas adversidades. Entre ceder ao conformismo e reagir a ele, preferi reagir e tentar dizer algo”, conta.

Caldeirão de Santa Cruz do Deserto

A partir dali, a estrada encontrada foi o uso da palavra – recurso ao alcance de quem ousa, segundo ele, aceitar o desafio tão difícil de construir uma obra. “Essa obra, no meu caso, decorreu de um claro inconformismo com a vida. A literatura funciona como a tocha que elevamos para o alto”. Soma-se a isso a condição de pessoa intrinsecamente ligada ao campo, e os trajetos pareceram cada vez mais firmes na construção de algo profundo e intenso.

Residir na então vila Várzea Formosa, hoje denominada Poranga, fez o cearense identificar problemas não-solucionados no âmbito social a partir da própria realidade. Mais tarde, quando foi levado a eleger temas para escrever os livros, a questão da terra surgiu quase como imperativo categórico. 

Na imagem, capa do livro
Legenda: Livro sobre o Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, um dos assuntos de maior relevância por parte de Cláudio Aguiar
Foto: Divulgação

Dentre tantos assuntos, um se impôs: o Caldeirão de Santa Cruz do Deserto – comunidade sociorreligiosa surgida no Ceará, liderada por José Lourenço Gomes da Silva (Beato José Lourenço) na década de 1920. O tema se assemelha a outros vinculados à mesma questão social, a exemplo de Palmares, Canudos, Contestado e  Ligas Camponesas. 

“Ao lado disso, sempre me interessou contar histórias sem me preocupar tanto com o cânon – limite que prende ou engessa o criador aos gêneros. Isso é bom para os acadêmicos dissertarem sobre essas obras criativas. Daí que me fascinou a arte dramática. Aliás, meu primeiro alumbramento nessa área ocorreu no palco do Theatro José de Alencar, em Fortaleza, sob a direção do sempre lembrado e saudoso B. de Paiva, que no início da década dos anos 1960, dirigia ali um auto de Natal. Fiz um papel secundário”.

Na imagem, o escritor cearense Cláudio Aguiar aos 25 anos de idade, no ano de 1969
Legenda: Cláudio Aguiar aos 25 anos, em 1969
Foto: Arquivo pessoal

A participação acendeu em Cláudio a luz pelo drama e também serviu para ele descobrir que não poderia ser ator, mas dramaturgo. “Elegi o caminho mais difícil, como se vê. Daí, me considerar um ‘contador de histórias’ e, na medida do possível, refletir, por meio de ensaios, sobre elas”.

O que Cláudio Aguiar escreve

Após estrear com um livro de contos – “Exercício para o salto”, em 1972 – Cláudio escreveu duas peças de teatro, “Flor Destruída” e “Suplício de Frei Caneca”. Nessa mesma fase, percebeu o momento de partir para o gênero romance, encarado como grande desafio. 

Assim, nos idos da década de 1970, a fim de chegar à mais prestigiada editora brasileira da época com catálogo voltado para literatura – a Livraria José Olympio Editora, do Rio de Janeiro – precisou vencer um concurso literário nacional.

Na imagem, o escritor cearense Cláudio Aguiar na casa que mantém em Olinda, Pernambuco
Legenda: Cláudio Aguiar é vencedor de dezenas de prêmios literários, dentre eles o Jabuti, mais importante do mercado editorial brasileiro
Foto: Leopoldo Conrado Nunes

A iniciativa era destinada ao romance e homenageava os 50 anos de vida editorial do editor José Olympio Pereira, dono daquela editora. Foram quase quatrocentos romances inscritos de todo o país. “Caldeirão”, escrito por Cláudio, ganhou o prêmio e a edição, a nível nacional, em 1982. A seguir, conquistou outro importante reconhecimento: o prêmio nacional de literatura concedido pelo Instituto Nacional do Livro do Ministério da Cultura (MEC/INL). 

“Esse caminho foi duro e quase intransponível”, confessa. “Após décadas, hoje posso dizer que meu método de trabalho não tem nada de especial. Sempre vivi sob a pressão de muito trabalho para sobreviver – sou formado em Direito – e, portanto, forçado a conciliar o tempo sempre curto. A jornada rotineira se resumia a oito horas de expediente de tribunal e o resto do dia à leitura e à pesquisa”, lembra.

Na imagem, o escritor cearense Cláudio Aguiar ao lado da esposa, Célia Salsa
Legenda: Cláudio Aguiar com a esposa, Célia Salva
Foto: Leopoldo Conrado Nunes

Após a aposentadoria do foro, a vida melhorou. Porém, no Rio de Janeiro, onde passou a morar – sem desmontar a casa em Olinda – as atividades literárias e culturais se intensificaram, e a vida ocupada e a falta de tempo persistiram. Com isso, Cláudio descobriu que, para escrever, a rigor, não é preciso tempo, mas boas ideias

Por isso mesmo, costuma dizer que detém um tempero essencial e indispensável: disciplina. “Sem ela seremos vencidos pela boa desculpa. ‘Ah, poderia ter feito isso hoje, porém, não o fiz porque que a geladeira queimou…’. Não queira nunca consertar a geladeira. Beba água normal nessas horas”.

Por outro lado, quando reflete sobre os prêmios acumulados, pondera: “Funcionam como reconhecimento de um trabalho de criação. Porém, entre nós, devido à pouca atenção que se dá ao labor literário e às demais atividades culturais, não significa chegar aos leitores. O pouco estímulo à leitura no Brasil concorre para que autores sejam pouco reconhecidos”.

Narrar o Ceará

Cláudio segue em plena boa forma narrativa. No momento, a pedido de um editor, escreve as próprias memórias com o título provisório “A Montanha e os Sonhos (Memórias)”. Também revisa um livro inédito, coletânea de poemas, “O infinito dentro de mim”. “Creio que em breve ambos virão a lume”, anuncia.

Antes disso, nunca deixou de abordar literariamente o Ceará. Em “Caldeirão”, por exemplo, narra os acontecimentos vividos por uma comunidade camponesa no lugar Caldeirão dos Jesuítas, situado no sopé da Chapada do Araripe, entre Juazeiro do Norte e Crato, destruída pelas forças militares nos anos de 1936 e 1937 em pleno Estado Novo.

Em “A Volta de Emanuel”, focaliza no drama da migração interna ao contar a vida de Emanuel Santarém – homem que, após deixar o Ceará para viver em São Paulo, resolve voltar, a pé e desiludido, para o lugar de origem; por fim, em “Os Anjos Vingadores”, trata da revolta dos índios Cariris que um dia, num passado imemorial, reagem ao progresso chegado ao Vale do Cariri como ameaça de destruição das tradições.

Na imagem, capa do livro
Legenda: Capa do livro pelo qual Cláudio Aguiar venceu o Jabuti, maior prêmio do mercado literário brasileiro
Foto: Divulgação

Tal trânsito literário, entre diferentes paisagens e perspectivas, parece refletir o próprio decurso do escritor. Em 1954 deixou a Serra da Ibiapaba e foi com os pais morar em Fortaleza a fim de estudar; em 1962; na sequência, passou a morar no Recife.

Em 1982, junto à esposa, Célia Salsa, e à filha menor, Madalena, cursou doutorado na Universidade de Salamanca (Espanha); cinco anos depois, estavam de volta a Olinda para, em 1994, passarem a morar no Rio de Janeiro – mas sempre deixando a casa olindense pronta e arrumada para retornos ocasionais. Atualmente, vivem entre estas duas cidades.

“Além da condição de escritor, me ocupei intensamente, até me aposentar, da função oficial ocupada na Justiça do Trabalho, pois sou bacharel pela tradicional Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e doutor em Direito pela Universidade de Salamanca (Espanha). Exerci, ainda, a função de professor universitário”.
Cláudio Aguiar
Escritor

“No Rio de Janeiro, ocupei vários cargos ligados à atividades culturais, a exemplo de presidente do PEN Clube do Brasil e da Fundação Miguel de Cervantes de Apoio à Pesquisa e à Leitura da Biblioteca Nacional. Sou membro de diversas entidades culturais brasileiras”.

Quando questionado sobre os principais passos que alguém fora da capital deve seguir para galgar uma boa trajetória literária, não titubeia: o ideal seria que a vivência rural ou urbana, na pequena vila ou na grande cidade, não constituísse obstáculos para a obra literária ganhar fôlego. “No entanto, sabemos que, no Brasil de hoje, isso não ocorre”, lamenta.

Na imagem, escritor cearense Cláudio Aguiar em Fortaleza
Legenda: Cláudio Aguiar em Fortaleza, aos 60 anos: estrada na escrita segue inquieta
Foto: Divulgação

“O bom livro, então, não é aquele que chegou ao nível mais elevado da consagração do mercado. Mas o logrado com valores estéticos capazes de agradar aos leitores e enfrentar a passagem infalível do tempo, que nunca perdoa”. Não, não perdoa. E é sábio o suficiente para também tornar permanente quem inscreve um legado na eternidade.

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