Fascínio do audiovisual pelo cangaço completa 100 anos e vai de clássicos a obras de streaming

Movimento social é retratado no audiovisual brasileiro desde 1925 sob prismas diversos e com influência de debates contemporâneos

Escrito por
João Gabriel Tréz joao.gabriel@svm.com.br
(Atualizado às 09:15)
Representações do cangaço no audiovisual brasileiro acompanharam questões sociais e históricas; na imagem, os longas 'O Cangaceiro' (1953) e 'O Cangaceiro Trapalhão' (1983) e a novela 'Guerreiros do Sol' (2025)
Legenda: Representações do cangaço no audiovisual brasileiro acompanharam questões sociais e históricas; na imagem, os longas "O Cangaceiro" (1953) e "O Cangaceiro Trapalhão" (1983) e a novela "Guerreiros do Sol" (2025)
Foto: Divulgação; Estevam Avellar / Divulgação; Design: Louise Dutra

Cem anos separam a primeira vez em que o cangaço foi abordado no cinema brasileiro — no filme perdido “Filho Sem Mãe” — da recente leva de obras em diferentes formatos e gêneros que evidenciam o movimento social sob vários prismas: da novela “Guerreiros do Sol” e da minissérie “Maria e o Cangaço”, ambas de streamings, ao documentário cearense “Lampião, Governador do Sertão”.

De lá para cá, o cangaço se impôs como uma das principais temáticas do audiovisual no Brasil, chegando a ser entendido até como gênero cinematográfico tipicamente nacional, e segue fascinando público e cineastas por aspectos como mítica, iconografia e questões sociais e morais.

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De Benjamin Abrahão a Lima Barreto

As informações sobre “Filho Sem Mãe”, de Tancredo Seabra, constam em “O Cangaço no Cinema Brasileiro”, livro fruto da pesquisa de doutorado do cearense Marcelo Dídimo, professor da Universidade Federal do Ceará.

Além do já citado longa perdido, o período ficou marcado por outras produções — também inacessíveis — que trouxeram representações pontuais de cangaceiros, como “Sangue de Irmão” (1926), “Lampião: o Banditismo no Nordeste” (1927) e “Lampião, a Fera do Nordeste” (1930).

Registros históricos de Lampião, Maria Bonita e mais cangaceiros foram feitos pelo fotógrafo libanês Benjamin Abrahão Botto
Legenda: Registros históricos de Lampião, Maria Bonita e mais cangaceiros foram feitos pelo fotógrafo libanês Benjamin Abrahão Botto
Foto: Benjamin Abrahão Botto / Domínio público

Um marco mais concreto do período é “Lampião, o Rei do Cangaço” (1936), no qual Benjamin Abrahão fez os primeiros registros conhecidos de Virgulino Ferreira da Silva e que foi produzido em contexto cearense.

Essas imagens iniciais abriram caminho para a obra que, segundo Marcelo, “inaugura” o gênero cangaço no cinema brasileiro: é “O Cangaceiro” (1953), de Lima Barreto. Premiado em Cannes como “melhor filme de aventura”, o trabalho tem diálogos escritos pela cearense Rachel de Queiroz.

“Na minha pesquisa, o que eu considero do gênero ‘cangaço’ é um filme que tem o cangaço ou o cangaceiro como protagonista, ou que isso seja um (personagem) secundário muito relevante na história”, explica. 

Os elementos iconográficos do imaginário — “todas aquelas coisas simbólicas que fazem parte do Nordeste, do Sertão e do cangaço” — naturalmente também marcam o gênero. “Sem iconografia, não existe identificação”, atesta o professor.

Essas características ocorrem de maneira precisa no filme de 1953, que traz uma roupagem de trama de ação e aventura adaptada para a identidade brasileira, com o cangaço e o cangaceiro como temática central e protagonista.

Apesar dos elementos nacionais, o pesquisador ressalta que a obra “bebe na fonte” do gênero western — ou faroeste, com histórias passadas no velho oeste dos EUA. “No filme, os cangaceiros andam a cavalo exatamente buscando essa inspiração. A gente sabe que, na realidade, eles andavam a pé, raramente usavam cavalo ou jumento”, ilustra.

No filme de Lima Barreto, cangaceiros usam cavalo, em clara inspiração no gênero estadunidense do western
Legenda: No filme de Lima Barreto, cangaceiros usam cavalo, em clara inspiração no gênero estadunidense do western
Foto: Divulgação

O cearense Wolney Oliveira, diretor dos documentários “Os Últimos Cangaceiros” e “Lampião, Governador do Sertão”, ecoa: “Era um filme com estilo americano, parecia até que foi feito por americanos. Foi praticamente rodado nos estúdios”, destaca.

Na visão do cineasta cearense Rosemberg Cariry — diretor do novo clássico “Corisco & Dadá” —, a aproximação entre os gêneros dos EUA e do Brasil se dá por aspectos compartilhados por ambos os universos.

“O cangaço, como símbolo de grupos rebeldes e fora-da-lei, sempre despertou fascínio, seja pela associação com figuras romantizadas como Robin Hood ou pela representação de violência crua e brutal. Embora tenha características únicas no Nordeste brasileiro, essa temática ressoa em diversas culturas, como nos filmes de faroeste e de samurais”
Rosemberg Cariry
cineasta

A escritora Adriana Negreiros, nascida em São Paulo, mas criada em Fortaleza, acrescenta que, nesse sentido, as narrativas sobre e com cangaço produzidas reuniam "todos os elementos de uma boa narrativa".

"Com guerra, perseguição, intrigas políticas, amor, violência. É um tema que está no nosso imaginário, na nossa cultura popular, portanto ele não sai de moda, por assim dizer", considera a autora do livro “Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço” (2018).

Da ação à pornochanchada

Longe de ter se cristalizado ou se tornado datado, o gênero cinematográfico cangaço seguiu presente em diferentes obras ao longo das décadas. Os anos 1960 e 1970 foram de “produção em massa” sobre a temática. 

Nos anos 1970, o cangaço chegou às pornochanchadas, popular gênero do cinema brasileiro da época; na imagem, frame de 'As Cangaceiras Eróticas' (1974)
Legenda: Nos anos 1970, o cangaço chegou às pornochanchadas, popular gênero do cinema brasileiro da época; na imagem, frame de "As Cangaceiras Eróticas" (1974)
Foto: Divulgação

“São mais de 30 filmes produzidos, então tem muita coisa. Alguns procuram se espelhar na realidade, fazer algum tipo de reconstituição histórica, e outros fogem disso”, contextualiza Marcelo.

Na década de 1960, marcos do cangaço no cinema estão nas obras do baiano Glauber Rocha que evocam o imaginário do movimento: “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964) e “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” (1969)

O pesquisador cearense destaca que, apesar de se criar a partir de um “modelo” específico com “O Cangaceiro”, o gênero “vai mantendo diálogo” com outros. “A gente vai ter vários filmes de ação, ter a comédia muito presente, na década de 1970, vai ter a pornochanchada”, elenca.

Com altos e baixos, mas nunca morto

Os anos 1980 ficaram marcados, como aponta o pesquisador, por um “hiato temporal de produção”. Naquela década, o destaque é a comédia “O Cangaceiro Trapalhão”, de 1983. O gênero, porém, só volta às telas no período da retomada do cinema brasileiro, no final dos anos 1990.

É quando filmes como “Baile Perfumado” (1996) — longa de Paulo Caldas e Lírio Ferreira —, e “Corisco & Dadá” (1996), do cearense Rosemberg Cariry, são lançados. “O cangaço é um elemento histórico e cultural profundamente enraizado no imaginário nordestino”, aponta o diretor.

Longa cearense 'Corisco & Dadá', de Rosemberg Cariry, é um dos novos clássicos sobre cangaço no cinema nacional
Legenda: Longa cearense "Corisco & Dadá", de Rosemberg Cariry, é um dos novos clássicos sobre cangaço no cinema nacional
Foto: Cariri Filmes / Divulgação

Rosemberg ressalta a importância do acesso ao tema não só pelo cinema, mas pela tradição oral, cordel e cancioneiro popular, para fortalecer o próprio interesse nele. “Essa combinação de história, cultura e estética sempre me fascinou e motivou a trabalhar esse tema no audiovisual”, considera.

A retomada de obras sobre o cangaço ocorrida no período evidencia uma das principais características dessa produção, como aponta Marcelo: “O gênero pode ter suas crises e seus altos e baixos, mas ele nunca morre. Ele volta a ser produzido, realizado, revisitado pelos realizadores”.

Com a virada de século e o fortalecimento do cinema brasileiro, mais obras se somaram à filmografia do cangaço na produção nacional, como “Os Últimos Cangaceiros” (2011), do cearense Wolney Oliveira; “Aos Ventos que Virão” (2012), do também cearense Hermano Penna; e “A Luneta do Tempo” (2014), de Alceu Valença.

Assim como Rosemberg, Wolney também credita o interesse pelo tema ao acesso a obras e imagens produzidas pelo cinema. O fascínio surgiu com o média documental “Memórias do Cangaço” (1964), de Paulo Gil Soares, da época do Cinema Novo.

“Aquilo me impactou muito, fiquei com vontade de fazer um filme de cangaço. Isso foi antes de eu ir para a Escola de Cinema de Cuba. Quando voltei, esse desejo continuou. Fiz ‘Milagre em Juazeiro’ (1999), meu primeiro longa, que tem uma sequência sobre Lampião e a passagem dele lá”, contextualiza.

A partir de 2005, Wolney começou a pesquisa e produção de um projeto sobre Lampião, no qual se deparou com a história de Durvinha e Moreno, à época reconhecidos como o último casal vivo do bando de Virgulino.

A história se sobrepôs e rendeu o já citado “Os Últimos Cangaceiros” (2011), primeiro longa documentário sobre o cangaço feito no País. O projeto inicial foi posteriormente retomado e culminou em “Lampião, Governador do Sertão”, lançado neste ano e que reflete sobre a mítica do líder cangaceiro.

Novo ciclo de interesse renovado

A cada nova década de produções, novas abordagens foram somadas à filmografia brasileira do cangaço. Ele veio sendo, como define Rosemberg Cariry, “reinterpretado de acordo com as visões históricas e sociológicas predominantes”.

“Antes havia uma leitura positivista que associava o fenômeno à mestiçagem e à criminalidade. Depois, surgiram abordagens marxistas que o relacionavam ao latifúndio e à exploração social”, inicia o cineasta.

“Mais recentemente, as perspectivas pós-modernas fragmentaram essa narrativa, tratando o cangaço como um símbolo sedutor na sociedade de consumo”, segue. 

“As interpretações sobre o cangaço evoluíram, refletindo mudanças nas sensibilidades culturais, nos modelos de produção e do consumo audiovisual. O público e os criadores passaram a buscar leituras mais complexas, que vão além do maniqueísmo e exploram as nuances mais complexas desse universo singular”
Rosemberg Cariry
cineasta

Em diálogo, a escritora e jornalista Adriana Negreiros define a volta de obras de cangaço hoje como uma forma de "olhar para o nosso passado fazendo perguntas que hoje os nossos tempos exigem que se façam"

De partida, a autora vê o cenário das obras recentes como fruto de "um momento de grande interesse no Nordeste". Isso abre espaço para reenquadrar e questionar estereótipos envolvendo a região

"Começamos a discutir essas questões como não fazíamos no passado, com muito mais clareza e força, sobre os preconceitos, sobre uma visão muito caricata que o Sudeste tem em relação ao Nordeste"
Adriana Negreiros
escritora

"O público exige muito mais que essas histórias sejam contadas considerando todos esses recortes que nós fazemos agora — o racial, o de gênero", compreende Adriana.

Segundo a escritora, as representações passadas do cangaço eram "romanceadas sem que isso fosse uma questão". A minissérie "Lampião e Maria Bonita", exibida na TV Globo, em 1982, é um exemplo.

"A participação da Maria Bonita era completamente secundária e era romantizada em excesso. Isso nunca foi uma questão naquela época, ou, pelo menos, não uma questão que tivesse tanta amplitude quanto hoje", pondera.

A leva de produções deste ano evidencia o fato: as duas produções de streaming que estrearam recentemente se destacam pelo forte protagonismo feminino, por exemplo. "É uma maneira que só o tempo que a gente vive hoje permite que se faça", aponta Adriana.

O livro da escritora e jornalista sobre Maria Bonita e outras mulheres do bando de Lampião deu base para a série "Maria e o Cangaço", da Disney+, protagonizada por Isis Valverde.

Já em "Guerreiros do Sol", nova novela da Globoplay, a cangaceira Rosa (Isadora Cruz) é tão protagonista quanto Josué (Thomás Aquino).

"O cangaço sempre foi uma história muito contada pela perspectiva masculina e nossos tempos exigem que a gente olhe para essas experiências do passado a partir de questões que são colocadas hoje", elabora Adriana.

Rosa (Isadora Cruz) e Josué (Thomás Aquino) partilham protagonismo da novela 'Guerreiros do Sol'
Legenda: Rosa (Isadora Cruz) e Josué (Thomás Aquino) partilham protagonismo da novela "Guerreiros do Sol"
Foto: Estevam Avellar / Divulgação

Outras abordagens contemporâneas podem ser vistas na série de comédia “O Cangaceiro do Futuro” (2022, Netflix), do cearense Halder Gomes — que toca em questões ligadas à comunidade LGBT — e “Cangaço Novo” (2023, Amazon), série que revê o fenômeno social e histórico pelo viés da violência urbana atual.

“O fascínio persiste: o fora-da-lei, o rebelde, o violento, o insubmisso — tudo isso exerce apelo universal”, atesta Rosemberg. Em diálogo, Marcelo resume: “O que fascina o cineasta é a temática”.

“Quando querem revisitar o tema para fazer algum remake ou resgatar algo do passado, essa é uma temática que fascina não somente os cineastas, mas o público”, segue o pesquisador.

A novela 'Guerreiros do Sol' é baseada no livro 'Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil', de Frederico Pernambucano de Mello
Legenda: A novela "Guerreiros do Sol" é baseada no livro "Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil", de Frederico Pernambucano de Mello
Foto: Estevam Avellar / Divulgação

Na avaliação de Wolney, já houve períodos semelhantes ao atual na produção brasileira. “São ciclos. A gente está em um novo ciclo de filmes ou séries sobre cangaço. Vão surgir outros, porque é um tema polêmico e temas polêmicos são interessantes de abordar. Quando vem uma série, um longa ou uma novela, o público quer ver”, sustenta.

As diversidades possíveis que partem do fenômeno sócio-histórico, finaliza Rosemberg, ajudam a entender a permanência dele no audiovisual e, até, a provável continuidade de renovação desse interesse.

“O cangaço pode ser tanto um produto de consumo leve, como em restaurantes temáticos ou produtos comerciais, quanto uma ferramenta de reflexão profunda. Ele permite interpretações políticas, míticas e arquetípicas que revelam as crises da sociedade e da psique humana. O cangaço possui uma modernidade e uma universalidade que continuam a cativar o público até hoje. Continuará a ter o mesmo fascínio por séculos, ultrapassa os modismos”
Rosemberg Cariry
cineasta

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