Autora de livro sobre mulheres cangaceiras, Adriana Negreiros celebra sucesso de ‘Maria e o Cangaço’
'Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço', publicado em 2018, foi base para adaptação da série, protagonizada por Isis Valverde e disponível no Disney+
Desde a infância, a jornalista e escritora Adriana Negreiros ouvia com frequência da avó uma frase que, por décadas, deu orgulho a muitas de famílias de Mossoró, no Rio Grande do Norte: “sou da única terra que conseguiu vencer Lampião”. Dona Alcinda, assim como a mãe de Adriana, cresceu na cidade potiguar que foi palco de uma batalha inesquecível. O episódio, que se tornou conhecido como “o batismo de fogo de Mossoró”, aconteceu em 13 de junho de 1927, quando os cidadãos – na época, pouco mais de 20 mil – resistiram à invasão do bando de Lampião, impedindo que os cangaceiros tomassem a Cidade.
A história peculiar alimenta nos mossoroenses, desde então, o orgulho de pertencer a um lugar que se tornou sinônimo de resistência e coragem. Em Adriana – nascida em São Paulo, mas criada em Fortaleza –, alimentou também a curiosidade: afinal, o que de fato era verdade e o que era mitologia nas narrativas que conhecia sobre o cangaço?
Em 2015, pouco antes de Adriana completar 20 anos de experiência como repórter – carreira iniciada no Diário do Nordeste, em 1996 –, a esperada oportunidade de escrever o primeiro livro surgiu, a convite da Objetiva, selo da Companhia das Letras. Naquele momento, a jornalista resgatou as memórias familiares e histórias que fazem parte do imaginário nordestino sobre o cangaço e decidiu investigar um tema ainda pouco falado: quem eram e como viviam as mulheres cangaceiras.
Partindo da biografia de Maria Bonita, conhecida como a primeira mulher a entrar para o bando e fiel companheira de Lampião, Adriana traçou, em “Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço” um panorama inédito sobre a participação feminina no período – desmistificando narrativas consolidadas no senso comum e destacando a brutal violência de gênero sofrida pelas cangaceiras, que, em sua maioria, eram incorporadas ao grupo a força, após serem sequestradas e estupradas pelos cangaceiros.
Publicado em 2018, o livro teve direitos adquiridos para o streaming poucos meses após o lançamento. Em meio a um momento fértil de produções audiovisuais que exploram a história do cangaço de forma documental e ficcional, a minissérie “Maria e o Cangaço” chegou ao Disney+ em abril, com direção de Sérgio Machado, Isis Valverde no papel de Maria e Júlio Andrade como Lampião.
Na adaptação, a atuação de Virgulino e seu bando perdem espaço para as histórias – algumas delas parcialmente ficcionalizadas – das mulheres que os acompanhavam nas duras empreitadas pelo Sertão nordestino. Ainda que, segundo Adriana Negreiros, haja licença poética em determinados momentos, já que a obra não pretende ser documental, é possível compreender como funcionam as dinâmicas do cangaço e que resumir as cangaceiras a mulheres guerreiras e empoderadas, como a cultura popular tem sugerido ao longo dos anos, é simplificar e distorcer fatos históricos.
Em entrevista ao Verso, Adriana Negreiros conta como a pesquisa para o livro “Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço” mudou sua perspectiva sobre o movimento, o que achou da adaptação para o streaming e qual a relevância de seguir contando histórias sobre o cangaço.
Livro foi oportunidade de falar sobre a real história do Nordeste
Além do orgulho de Mossoró, as falas de dona Alcinda sobre o cangaço traziam outro sentimento: medo. Na época que o bando de Lampião invadia terras e estuprava mulheres, a avó de Adriana era jovem e trabalhava como empregada em uma fazenda, onde morava como “agregada”, e temia a violência do grupo.
“Ela pensava: ‘Lampião vai entrar aqui com os cangaceiros, vão roubar as meninas e eu serei uma das roubadas’, porque ela não tinha ninguém que pudesse defendê-la. Esse medo que ela sentiu foi tão forte que a acompanhou por toda a vida”, lembra Adriana.
Guiada pelo conflito entre as narrativas da cultura popular que escutava – que traziam Lampião como uma espécie de Robin Hood do Sertão e Maria Bonita como uma feminista pioneira – e as narrativas contadas pela avó, Adriana decidiu que a importância da pesquisa que originou seu livro de estreia era uma forma, também, de reparação histórica.
“Sempre enfrentava aquele obstáculo que jornalistas nordestinos têm de escrever sobre a própria terra, porque as notícias se concentram muito no eixo Rio-São Paulo e Brasília”, lembra. “Pensei: já que vou escolher sobre o que eu vou escrever, vou então escrever sobre algo que me diga respeito”, completa.
A pesquisa, que se estendeu entre 2015 e 2018, reúne fatos pouco relatados em outras obras sobre o cangaço, ao se debruçar de forma inédita sobre os papéis de gênero na rotina errante dos cangaceiros e quais eram as reais motivações de Lampião.
“A gente tende a olhar para as histórias que nos comovem e nos interessam com um olhar muito romantizado. Então, a gente criou várias fantasias em torno do cangaço. A primeira fantasia é aquela de que os cangaceiros seriam uma espécie de ‘camponeses revolucionários’”, destaca Adriana. “Na verdade, não havia isso. Essa é uma leitura muito romântica que aplaca as nossas fantasias, mas não corresponde à realidade”, completa.
“Em relação às mulheres, aconteceu do mesmo modo. É muito atraente a ideia de que no cangaço havia um grupo que se reunia e que estava mobilizado contra a violência de gênero, contra a opressão dos homens. Mas as mulheres não eram isso: eram sobreviventes daquelas violências, que estavam ali tentando fazer o que podiam”, explica.
Apesar de desmistificar a narrativa que coloca as cangaceiras como uma espécie de braço feminista do bando de Lampião, a obra contribui para o resgate histórico desse grupo de mulheres e, mais do que isso, para a solidificação de um capítulo importante da história da violência de gênero do País – opressões que iam além do cangaço e que permanecem vivas de muitas formas.
“As mulheres eram completamente vítimas daquelas circunstâncias, daquela vida no Sertão, uma vida que oferecia às mulheres uma possibilidade de emancipação muitíssimo reduzida. Eu procurei contar a história que a pesquisa me mostrou, e a pesquisa não me mostrou uma luta coletiva de gênero”.
Maternidade e vida doméstica no cangaço
Tanto no livro quanto em “Maria e o Cangaço”, um ponto de destaque na história é a completa ausência de autonomia que as mulheres tinham em relação aos seus corpos, aos seus direitos reprodutivos e à possibilidade de criar seus filhos. Já nos primeiros capítulos da minissérie, por exemplo, somos confrontados com situações que incluem a perda perinatal, gestações indesejadas e o afastamento forçado de mães e seus filhos recém-nascidos, algo que acontecia com frequência com as cangaceiras.
Adriana conta que o aspecto da maternidade foi o que mais a chocou durante a pesquisa, por ser uma informação pouco conhecida e que envolvia extrema violência. Para seguir junto ao bando, as mulheres eram obrigadas a doar ou abandonar os bebês ainda recém-nascidos – e abandonar o cangaço não era uma opção.
A autora lembra que Dadá, uma das cangaceiras mais importantes do grupo, mesmo após sofrer uma série de violências, categorizou o abandono do primeiro filho como “a maior dor do mundo”. “Isso me chocou profundamente, acho que eu deixei isso muito evidente no livro. E eu também sou mãe, então sempre me colocava no lugar dela”, conta.
Impossibilitadas de criarem seus filhos ou de escolherem outro destino, as cangaceiras tinham um papel restrito a tarefas domésticas, similar aos que as mulheres tinham nas suas casas à época. “Há uma mística de que elas eram guerreiras, de que elas pegavam em armas e combatiam as forças volantes, de que elas enfrentavam as forças policiais. Essa também é uma ideia errada, equivocada”, explica Negreiros.
“Não consigo imaginar quem poderia fazer melhor”, diz Adriana sobre Isis Valverde
Por entender desde o início que a adaptação de “Maria Bonita” seria uma obra de ficção, Adriana conta que recebeu com tranquilidade a liberdade criativa para elaborar alguns aspectos da minissérie. Apesar de não ter participado da elaboração do roteiro, a escritora conta que o diretor Sérgio Machado compartilhou, “por delicadeza”, as primeiras versões do texto, bem como a procurou para tirar dúvidas.
“Não cabia a mim ficar apontando questões ali, porque eu sabia que era uma obra de ficção. Mas, desde o começo, eu gostei muito da forma como eles escolheram esse olhar feminino, que é um olhar inédito”, destaca.
Uma das grandes surpresas do processo, segundo a autora, foi descobrir que quem daria vida à Maria Bonita nas telas seria a atriz Isis Valverde. “Fiquei muito chocada, porque a Isis é muito bonita”, brinca.
O esforço da adaptação para se assemelhar às imagens conhecidas de Maria Bonita, de fato, é inexistente. A opção foi por ressaltar os aspectos simbólicos, como a força e a liderança de Maria. A tentativa de criar uma nova Maria Bonita, aliás, talvez seja o grande acerto da série, já que permitiu à atriz a construção de uma performance sem exageros ou apelo para o “exótico”.
“Quando vi a atuação dela, fiquei absolutamente extasiada, porque ela é uma atriz excepcional e ela interpretou Maria Bonita de uma maneira que me surpreendeu muito e me comoveu muito”, comenta Adriana. “Ela realmente entrou na personagem e a atuação dela é uma coisa de outro mundo de tão boa. Quando vejo a Isis na série, eu não consigo imaginar quem poderia fazer melhor do que aquilo", completa.
A importância de relembrar o cangaço
Além da atuação de Isis, outro aspecto que deixou Adriana satisfeita foi a estratégia de comunicação da minissérie, que coloca Maria Bonita e as demais cangaceiras como protagonistas, em primeiro plano, despertando curiosidade e reforçando a importância de se contar essa história sob um ponto de vista feminino.
Do público, a autora conta que tem ouvido elogios, não só em relação a esse aspecto, mas também em relação à representação do Sertão nordestino.
Há também quem tenha se surpreendido com a violência, já que, muitas vezes, os crimes cometidos pelos cangaceiros são contados “numa certa chave da comédia”. “A série também tem humor e tal, mas ela não disfarça que a experiência do cangaço era uma experiência brutal. Então, muita gente se choca com isso”, comenta.
Para Adriana, outro aspecto relevante das novas narrativas sobre o cangaço é destacar as condições que impulsionam o surgimento do cangaço: um Estado omisso, que abandonava o Sertão e olhava apenas para as grandes cidades, o que contribuiu para o avanço da violência. “Lampião é fruto disso, desse esquecimento do olhar público para o homem sertanejo”, relembra.