‘Eu quebrei o silêncio e isso é libertador’: escritoras compartilham relatos de estupros reais
Adriana Negreiros e Tatiana Salem Levy, autoras de livros contundentes sobre o assunto, participam de debate na Festa Literária do Ceará
O vento que entrava pela porta era gelado. Mesmo de casaco de couro, eu tremia de frio. Não tentei negociar, resistir, desobedecer, fugir. Havia um revólver apontado para mim. Em questão de segundos, estava despida. Ele me mandou posicionar o banco na posição horizontal e permanecer deitada. Lembrou-me que não deveria, em hipótese alguma, olhar para seu rosto. Então depositou a arma no console do carro e abaixou as calças.
Essas palavras não são minhas. Pertencem ao relato de Adriana Negreiros no livro “A vida nunca mais será a mesma: Cultura da violência e estupro no Brasil”, publicado no último mês de outubro pelo selo Objetiva, da Companhia das Letras. Contundente e reveladora, a obra traça o cruel panorama da misoginia no País por meio da costura entre experiência pessoal e fatos do cotidiano, alicerçada por ricos dados estatísticos e intensa pesquisa.
Ao Verso, Adriana – jornalista e escritora nascida em São Paulo, crescida em Fortaleza e hoje residente no Porto, em Portugal – afirma que a investigação sobre violência sexual é naturalmente difícil, dolorosa e, por vezes, desconfortável. “Mergulhar nesse assunto, portanto, foi literalmente sufocante. No entanto, desde o momento em que decidi escrever este livro, sabia que, por mais desafiador que fosse o trabalho, ele era necessário”.
Também autora de “Maria Bonita - Sexo, violência e mulheres no cangaço” (Objetiva, 2018), ela observa que a questão central desse outro projeto – primeira empreitada dela no mercado editorial – não difere muito da temática do mais recente livro. Em ambos, por exemplo, a palavra “violência” aparece no subtítulo, evocando o teor da perspectiva alimentada por ela no trato de cada linha.
Logo, o processo de produção das obras foi bastante parecido. Nas duas, a escritora utilizou as técnicas jornalísticas de apuração e escrita. Contudo, no caso de “A vida nunca mais será a mesma: Cultura da violência e estupro no Brasil”, havia uma novidade: nela, ao contrário do primeiro, a própria Negreiros seria personagem do relato.
“Isso, naturalmente, exigiu de mim que me confrontasse com feridas ainda abertas, o que foi estranho e nauseante. Do ponto de vista da investigação, no entanto, meu livro mais recente deu-me a convicção de que a violência contra a mulher é um tema que ainda carece de muita atenção e, certamente, estará presente nos meus próximos livros”, adianta.
Contar da opressão
Essas e outras questões pertinentes à temática serão esmiuçadas na mesa “Debate sobre a condição feminina”, encerrando a edição deste ano da Festa Literária do Ceará (Flac). O momento acontece nesta quinta-feira (9), às 19h30, de forma virtual, com mediação de Geórgia Oliveira. Adriana divide o espaço com Tatiana Salem Levy, autora do também visceral “Vista Chinesa”, publicado pela editora Todavia.
Voltando-se para o processo de composição de “A vida nunca mais será a mesma”, Negreiros tinha informações fragmentadas e incompletas a respeito da violência contra a mulher antes de desenvolver o material. Foi pela pesquisa que passou a conhecer com mais profundidade contextos relacionados à legislação sobre a violência de gênero, por exemplo.
“Minha compreensão sobre a chamada cultura do estupro tornou-se muito maior após a produção do livro. Em relação às memórias, elas também eram desorganizadas. Ao remexer nos arquivos, processos, anotações e, principalmente, lembranças, consegui dar alguma ordem à experiência, por assim dizer. Antes do livro, quase ninguém do meu entorno sabia que eu havia vivido uma violência sexual — agora, isso não é segredo para mais ninguém”.
Não à toa, do ponto de vista das mudanças que a obra provocou na vida da escritora, essa certamente é a maior de todas: “Eu quebrei o silêncio e isso é bastante libertador”, diz. “A resposta mais sincera para a pergunta ‘por que só agora?’ é que somente agora eu consegui lidar com o acontecimento do estupro, por diversos motivos – fortalecimento dos movimentos feministas, meu amadurecimento, a morte de meu pai e mesmo aspectos práticos, como o fato de apenas muito recentemente eu ter me tornado autora de livros”.
Situando que uma opressão não vai deixar de existir porque não olhamos para ela – ao contrário, apenas florescerá – a jornalista percebe que a misoginia não acabará se fingirmos que ela não existe, tampouco o racismo, a homofobia e a xenofobia. Por isso mesmo, sobre a coragem de lidar com os próprios fantasmas e com o de todas as mulheres, ela é enfática: “Não penso que fui corajosa, penso que fui repórter: nós, jornalistas, temos por compromisso profissional reportar os fatos, por mais incômodos que sejam”.
“Não é à toa que tantos livros sobre violência sexual contra as mulheres tenham sido lançados nos últimos meses. O estupro, por mais feia que seja a palavra, é assunto que estava represado e precisava ser escrutinado. A atuação do movimento feminista nos anos recentes incentivou muitas mulheres a quebrarem o silêncio, bem como criou uma atmosfera de acolhimento para que as sobreviventes da violência sexual sentissem-se encorajadas a relatar suas experiências”.
Do amplo ao particular
Justamente por ter sido mantido durante tanto tempo na surdina, esse é um assunto que ainda rende muita discussão. Negreiros situa haver aspectos da violência sexual que merecem um exame mais pormenorizado, como, por exemplo, o estupro de meninos – ocorridos, quase sempre, dentro de casa. Nesse sentido, ela é enfática ao comentar sobre a realidade, sobretudo das mulheres e dos mais vulneráveis, diante dos rumos políticos atuais do Brasil.
“Temos na presidência da República um homem que proferiu, pelo menos duas vezes, a frase ‘não te estupro porque você não merece’ para uma colega de parlamento. Essa frase hedionda representa bem o que é a cultura do estupro: a naturalização e banalização da violência contra a mulher. Também supõe que um estupro pode ser um ‘merecimento’, um ‘presente’”.
E completa: “Assim, reforça um pensamento corrente segundo o qual um estupro não é nada demais, não é grande coisa, o que não contribui em nada para a erradicação desse crime de ódio. Nas eleições do próximo ano, gostaria de votar em um(a) candidato(a) que abraçasse, sem medo, pautas feministas – entre elas, a descriminalização do aborto”.
Desejando que a live na qual ela participará seja divertida – “o fato de o tema ser difícil não significa que deva ser tratado como um peso; há de se buscar a leveza, sempre”, defende – Adriana também comenta a epígrafe escolhida para o projeto. De autoria da filósofa americana Donna Haraway, diz: “O único modo de encontrar uma visão mais ampla é estando em algum lugar em particular”.
“Ao contar a minha história íntima para, a partir dela, tentar traçar um quadro mais amplo e coletivo, vali-me também de uma metodologia dos estudos feministas, nos quais as experiências pessoais têm grande relevância. A racionalidade não dá conta de tudo — há circunstâncias em que o processo de conhecimento dá-se pelas emoções. A descrição da dor, do horror e do espanto é uma delas. Penso que a frase de Donna Haraway deixa isso bastante claro – daí a escolha para a epígrafe”.
Violento e definidor
Da abordagem de um livro-reportagem para um romance que igualmente mergulha com profundidade no assunto. Apesar de ter sido lançado no começo deste ano, “Vista Chinesa”, de Tatiana Salem Levy, continua ecoando por entre o público que se viu diante de páginas tão amedrontadoras quanto destemidas.
Ambientada em um dos principais cartões-postais do Rio de Janeiro às vistas da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016, a obra conta a história de Júlia, arquiteta que está planejando alguns projetos na futura Vila Olímpica. No dia de uma das reuniões com a prefeitura, ela sai para correr no lugar referenciado no título e encontra alguém que encosta um revólver em sua cabeça e a leva para dentro da mata, onde é estuprada.
A partir daí, uma sucessão de memórias, reflexões e entraves apresenta ao público a ferida exposta de um panorama mordaz e obscuro, no qual estão potencialmente imersas todas as mulheres. Para construir o romance, Tatiana partiu da experiência vivenciada por uma de suas melhores amigas, a diretora de TV Joana Jabace, no mesmo local onde se passa a trama.
“Recebi a notícia por telefone quando já morava em Portugal, onde eu vivo há 9 anos, e foi algo que deixou todo mundo à volta dela muito atordoado, obviamente. Algum tempo depois, tive a ideia de escrever um livro a partir desse episódio porque foi algo muito marcante – violento e definidor para ela, claro, mas também para quem estava próximo, embora em outra medida”, contextualiza.
Tendo escrito a obra durante a segunda gravidez, quando esperava a pequena Esther – embora com planos de iniciar o projeto na primeira, durante a gestação de Vicente – a escritora situa que o fato de estar grávida de uma menina lhe deu a urgência de desenvolver a trama. “Isso porque essa história é muito pessoal, é a história da Joana, mas também é, em certa medida, a história de todas as mulheres, das que estão aqui no mundo hoje e de nossas antepassadas. Ela passa de mulher para mulher, de geração pra geração”.
Assim, segundo Tatiana, todas as mulheres têm alguma história de violência para contar, relato que constrói a subjetividade de cada uma. Não à toa, a completa identificação delas ao conferir o romance, uma vez que, mesmo sem serem estupradas, a obra fala de um medo inerente a todas: da violência que as constitui.
“Acho que a dor é uma constante no que eu escrevo. Todos os meus romances são dolorosos. Mas esse teve um processo diferente porque parti da experiência de outra pessoa. Tenho o costume de dizer que esse romance é uma auto-ficção da outra, porque é como se a Joana tivesse escrevendo um romance de auto-ficção. Então, ela se torna Júlia, que é uma arquiteta que passa por esse estupro, e depois renasce. Acredito que foi o romance mais difícil que escrevi, e também o mais interessante para mim, enquanto escritora”, avalia.
Lidar com as emoções
Auto-definida como alguém que não tem medo de emoções, Salem Levy atribui a essa característica pessoal o fato de escrever e continuar escrevendo. Na visão dela, o temor maior da vida está relacionado a atitudes como sair às três da manhã no Rio de Janeiro, ser estuprada e morta na Vista Chinesa, da postura de certos homens.
“Eu não tenho medo das emoções. Na verdade, elas me interessam, me seduzem, mesmo quando são dolorosas. Quero entendê-las, quero senti-las e transformá-las em palavras. Não é fácil, mas é isso que me interessa no meu trabalho”. Isso e o fato de concatenar dor e alegria, vida e morte, amor e desalento numa mesma obra, como podemos observar tanto em “Vista Chinesa” quanto nos livros publicados anteriormente pela romancista.
Conforme observa, de alguma forma crescemos aprendendo que, se há alegria, não há dor; se existe vida, não há morte, que os opostos nunca dividem o mesmo espaço. “E, na verdade, não é nada disso. É o contrário. A dor convive com a alegria, a vida com a morte, então tudo isso está junto. Eu preciso sempre trazer para o livro muita vida, alguma alegria, algum humor. Mas também preciso trazer dor porque a dor faz parte da vida. Logo, eu não evito a dor. Eu tento nomeá-la. A dor me leva a escrever”, sublinha.
“Nós vivemos numa sociedade que não quer nomear essa dor, que não quer ouvir essa história. Que não quer ouvir falar em estupro. De todas as violências contra a mulher, o estupro é a menos falada, nomeada e contada por diversas razões – pela própria intimidade do ato, pela culpabilização da vítima, pela vergonha que a pessoa sente, então para mim foi importante falar da dor. Não só da dor física no momento do estupro, mas também da dor da alma, que se perpetua ao longo da vida”.
Conquista de espaços
Disposta a contribuir com o debate na Festa Literária do Ceará a partir desses e de tantos outros pontos, Tatiana considera ainda que as mulheres estão ocupando um espaço cada vez maior no mercado editorial, o que explica a força de nomes como Aline Bei, Angélica Freitas, Adriana Lisboa e Claudia Lage – estas algumas das escritoras mais lembradas pela carioca quando o assunto é nomear a violência contra a mulher.
Por sua vez, ao ponderar sobre os rumos do Brasil no que diz respeito à condição feminina, a romancista vai na mesma mão de Adriana Negreiros. “Um governo misógino nunca pode ser bom para as mulheres. Então, obviamente, a violência contra elas só piorou. As coisas que poderiam ter avançado – como o direito das mulheres sobre o próprio corpo, ao aborto – também não andaram para a frente, infelizmente nos governos do PT. E isso só anda para trás no governo Bolsonaro”.
Mas ainda há esperança porque, feito narra Júlia em “Vista Chinesa”: “Ficou evidente que todos nós precisávamos nos agarrar a um objetivo para voltar à tona. Para respirar”.
Serviço
Debate sobre a condição feminina na Festa Literária do Ceará (Flac), com Adriana Negreiros e Tatiana Salem Levy
Nesta quinta-feira (9), às 19h, no canal do YouTube do evento. Gratuito. Mais informações pelo site da Flac
A vida nunca mais será a mesma: Cultura da violência e estupro no Brasil
Adriana Negreiros
Objetiva
2021, 304 páginas
R$49,90/ R$29,90 (e-book)
Vista Chinesa
Tatiana Salem Levy
Todavia
2021, 112 páginas
R$54,90/ R$29,90 (e-book)