De clube de leitura a tese acadêmica, o alcance multifacetado da obra de Virginia Woolf

Em Fortaleza, o clube “Biblioteca da Grazi” já debateu sobre livros da escritora, ao passo que a psicanalista Larissa Alverne trabalha em uma tese de doutorado aspectos do ofício da romancista

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Grazielle Gomes criou, durante a pandemia de Covid-19, o clube de leituras "Biblioteca da Grazi", o qual já discutiu uma obra de Virginia Woolf
Foto: Arquivo pessoal

Virginia Woolf (1882-1941) influenciou quase todas as autoras lidas por Grazielle Gomes, fato que gerou grande curiosidade na advogada cearense: quem era essa mulher capaz de inspirar o curso criativo de outras mulheres tão importantes?

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Assim chegou a “Mrs. Dalloway”, um dos mais aclamados romances da literata britânica, publicado originalmente em 1925. A obra foi escolhida para ser primeira discutida no clube de leituras “Biblioteca da Grazi” (@bibliotecadagrazi, no instagram) nascido em plena pandemia de Covid-19 e realizado mensalmente.

“Quando eu tomei a decisão de criar o clube para esquecer um pouco esse momento, foquei muito em ler mulheres, até porque o público que mais me procurou foi esse. Aproveitei a oportunidade para conferir ‘Mrs. Dalloway, já que eu teria um tempo para me aprofundar não só na obra, mas na vida da autora também”, conta.

Dito e feito. Para Grazielle, elencar um título para o projeto cuja trama abraça uma perspectiva feminina seria importante e libertador para as integrantes neste turbulento período. “O livro faz a gente passear pela consciência da protagonista e seus personagens. Não é fácil, requer muita atenção, mas é um trabalho muito bonito e inspirador”, descreve.

“Antes de tudo, a gente se surpreende por ser uma leitura atemporal. É um romance de 1925 que discute temas presentes no debate ainda hoje. A liberdade da mulher dentro de um casamento, o uso de batom, a forma como se porta, tudo isso está dentro do texto de Virginia. Isso sinalizou a todas que precisamos diariamente seguir lutando pelo nosso espaço na sociedade”.

Para além dos muros

Esse lugar da visibilidade das mulheres repercute tão fortemente entre elas, conforme Grazielle, porque, apesar de estarem sempre em evolução, algumas barreiras erguidas pela sociedade as impedem de ir adiante, com respeito e dignidade, algo observado desde a época de Virginia e registrado com ousadia por ela. 

“Quando se abre um livro dela, a gente se encontra, se enxerga e começa a entender que não devemos parar naquele muro. Pulamos esse obstáculo e vamos em frente, em busca de mais crescimento e autoconhecimento”, destaca.

Legenda: As integrantes do clube de leitura "Biblioteca da Grazi" com as diferentes edições do romance "Mrs. Dalloway"
Foto: Arquivo pessoal

Atualmente lendo “Um teto todo seu”, da mesma autora, a advogada diz que essa outra obra igualmente faz o público leitor se olhar no espelho como forma de compreender por quê ainda as mulheres ainda estão presas em relações e situações tão desfavoráveis, o motivo de o caminho para elas ser mais difícil.

“Por que até para sermos representadas dentro de uma ficção não somos nós mesmas que falamos sobre outras mulheres? Por isso tantas autoras atuais se inspiram em Woolf. Não tenho dúvida que isso é um legado dela. A gente tem liberdade de ler, discutir, conhecer muitas mulheres que ultrapassaram fronteiras mostrando que elas também podem escrever ficção ou biografias trazendo uma real representatividade para todas as demais”, observa.

Múltiplos atravessamentos

Por ser uma fonte inesgotável de investigação, a produção de Virginia Woolf se mostra, assim, um campo frutífero para pesquisas a partir dos mais diversos campos do saber. Larissa Alverne que o diga. 

A psicanalista – com graduação e mestrado em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará – no momento é doutoranda em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Ela estuda sobre aspectos da obra da escritora britânica, demonstrando a capilaridade do fazer sem amarras de Woolf.

“No caso da psicanálise, lugar ao qual me referencio, Freud disse que os artistas e poetas sempre estavam à frente sobre as descobertas da humanidade. Afirmou, inclusive, que foram eles que descobriram o inconsciente. O que ele, Freud, descobriu foi apenas uma forma de acesso a este”, considera.

 
Dessa forma, Larissa pesquisa no doutorado sobre como o amor surge em diferentes momentos da obra woolfiana e de que maneira, a partir desse estudo, é possível propor avanços na teoria psicanalítica. 

“De nenhuma forma busco interpretações ou sentidos para suas obras. Isso seria um desserviço, fechá-la a partir de um único olhar. Busco trazer o interesse para a produção da autora a partir de um lugar de abertura. Que o meu leitor sinta-se mobilizado a ir lá descobrir por si próprio o que Virginia tem a lhe dizer”, complementa.

Legenda: “Quando se abre um livro dela, a gente se encontra, se enxerga e começa a entender que não devemos parar naquele muro", diz Grazielle Gomes sobre experiência de leitura conjunta do livro de Virginia Woolf
Foto: Arquivo pessoal

A previsão é que a tese seja defendida em março de 2022. Todavia, a pesquisadora já possui outras produções publicadas sobre a autora, a exemplo da dissertação de mestrado e artigos acadêmicos. 

Livros sérios e livros de férias

A doutoranda também sublinha uma interessante particularidade do olhar de Woolf sobre a própria produção literária. Ela dizia que havia dois tipos de livros: os sérios e os “de férias”. Com isso, é possível notar duas formas de escrever bem distintas. 

Nos livros sérios – os quais alegava receber como que vozes, que exigiam ganhar corpo na escrita – ela se utiliza da técnica do fluxo de consciência, marca de seu ofício. Apesar de ser um estilo encontrado em outros autores modernos, tal procedimento guarda particularidades no desenvolvimento da escrita de Virginia, a exemplo de em “Ao Farol” e “Mrs. Dalloway”. 

“Já os livros de férias eram livros pra se recuperar dos livros sérios, uma vez que esses a deixavam à beira de novos surtos de loucura, como ela os chamava. Nesses surtos, ela sentia intensas dores de cabeças, escutava vozes que proferiam-lhe impropérios, apresentava intensa recusa alimentar, entre outros sintomas. Assim, ela escrevia seus livros de recuperação. Entre eles, temos ‘Orlando’ e ‘Flush’ como exemplos”, dimensiona Larissa.

Portanto, a principal diferença é que, nos livros sérios, ela tentava dar conta de grandes questões da própria vida e, a partir do fluxo de consciência, criava um texto em que fatos, pensamentos e diálogos se misturam. O público, assim, é levado a livrar-se das amarras da escrita para poder aproveitar a leitura. 

Por sua vez, nos livros de férias ela se sentia mais livre, buscava divertir-se ao escrever sobre um personagem que viveu 300 anos como homem e que acorda um dia enquanto mulher. Ou sobre a biografia de um cachorrinho de colo.

2022
é o ano em que Larissa Alverne defende a tese sobre aspectos da obra de Virginia Woolf

“Virginia Woolf definia sua escrita como única. Não gostava de ser comparada com outros autores modernos, como James Joyce ou Marcel Proust. Dizia que era necessário criar um novo estilo para encaixar sua literatura. Acredito que esse caráter sui generis de sua escrita justifica por si só o motivo de constantes revisitas por parte de pesquisadores. Afinal, sua obra é inesgotável”.

Diálogos para além da brevidade

Nessa dinâmica criativa, a escritora propõe muitas perspectivas à frente de seu tempo. Os romances sob sua assinatura do começo do século já trazem questões como relacionamentos homoafetivos entre mulheres, diálogos com a teoria feminista e o lugar da mulher escritora na sociedade. 

Legenda: Pesquisadora Larissa Alverne demarca estilo único de Virginia Woolf como uma de suas principais marcas e legados
Foto: Divulgação

Ao mesmo tempo, discorre constantemente sobre grandes enigmas universais, a exemplo da morte e do amor. “No mestrado, eu trabalhei sobre a morte em duas obras de Virginia. Agora, no doutorado, estou trabalhando sobre o amor em cinco livros. O que tem se mostrado para mim até agora é que amor e morte aparecem em uma miscelânea”, percebe Larissa.

“A morte é amada e o amor é mortífero. Eros e Tânatos andam de mãos dadas na obra woolfiana. Acho que isso é o que mais me fascina em sua produção. E, sim, meu livro favorito dela é também meu livro favorito da vida: ‘Mrs. Dalloway’”.

Por essas tantas razões, a pesquisadora diz que o legado de Virginia, a seu entender, é ter entregue a própria vida à escrita. Aquilo que a levava a crises de loucura, era também o que lhe conferia um corpo e uma estabilidade. 

“Ela leva sua escrita às últimas consequências e, quando não consegue mais escrever e sente o retorno das vozes, suicida-se aos 59 anos. Não havia possibilidade para ela de continuar vivendo sem conseguir escrever. Deixa uma marca única na literatura, como ela mesmo dizia quando ia escrever um novo livro: “Vou criar um novo - de Virginia Woolf”. Acredito que esse traço, como bem dito por ela, é sua principal marca e legado”, conclui.

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