Cansamos da internet? Por que hobbies analógicos, como livros de colorir e 'journals', estão em alta
Estudioso e entusiastas de atividades manuais situam esse movimento de desconexão, sobretudo entre gerações mais jovens; para psicólogo, agir com consciência é fundamental
Sim, ainda assistimos a muitos vídeos, publicamos muitos stories e rolamos o feed como se não houvesse amanhã. Mas uma fatia cada vez mais generosa de pessoas também têm se dedicado a atividades que não dependem em nada da internet para acontecer. A febre dos livros de colorir, dos cursos de artesanato e da confecção de journals – espécie de caderno onde se registram ideias, sentimentos e experiências – situam esse movimento.
Reportagem do Verso no último dia 8 de maio mostrou que a Livraria Leitura já vendeu mais de 79 mil livros de colorir entre 1º de dezembro e 10 de março – com destaque especial ao fenômeno Bobbie Goods. Além disso, cresce a cada dia em Fortaleza a oferta de iniciativas nas quais hobbies manuais ganham força e reúnem diversos adeptos, seja para apenas aprender algo novo ou para conviver mais de perto com interessados na mesma finalidade.
É apenas impressão ou estamos cansados da internet? Por que hobbies analógicos estão em alta neste momento, sobretudo entre gerações mais jovens? “É um processo curioso e ao mesmo tempo muito simbólico de nosso tempo”, introduz o psicólogo clínico Francisco Ilo.
Veja também
“Desde a pandemia de Covid-19, tem-se intensificado a digitalização do mundo. A internet se tornou uma porta para tudo, e às vezes é difícil para nosso corpo saber como parar, que horas parar e como acessar conteúdos sem ser capturado por todo esse excesso. Nesse sentido, somos os mesmos ou bem parecidos com nossos ancestrais, ou seja, nosso corpo e nossa mente não foram feitos para estar nesse estado de hiperestimulação constante e intensa”.
Não à toa, o estudioso acredita que esse recente movimento de dedicação ao analógico é quase um ato nosso de contra-controle sobre todos os estímulos acionados quando acessamos as redes sociais. Enxerga também como antídoto e possibilidade de buscar algo que traz mais presença, ritmo mais lento para a vida, contato com outras pessoas, com o corpo e com a possibilidade de construir algo e vê-lo realizado.
“Pintar, fazer cerâmica, bordar, fazer cadernos, jogar tabuleiro, cozinhar, tudo isso é uma forma de se conectar com pessoas e com o aqui-agora, com o sensorial. Obviamente, isso é muito negligenciado no ambiente digital, mas importante para a nossa vida. Assim, esse movimento dos hobbies manuais diz muito sobre a sociedade do excesso e do automático, e é bacana ver como começamos a buscar formas para recuperar certo senso de humanidade”.
Fazer apenas por prazer
Realizar algo prazeroso apenas por fazer, sem necessidade de monetizar, validar ou compartilhar, é uma das bandeiras de Gabriela Fernandes Soares, 32. A profissional de Marketing confecciona os próprios journals há mais de um ano, mas a escrita analógica sempre esteve presente na vida – dos diários de infância às agendas e planners na fase adulta.
Ela nunca se restringiu a anotar somente compromissos e atividades. Logo, mesmo quando usava apenas o formato convencional de registro, já existia ali o hábito de escrever pequenas passagens significativas da rotina. “Acredito que, quando adultos, a gente demora a compreender que pode resgatar ou experimentar passatempos menos ‘sérios’, e o autoconhecimento me auxiliou muito nesse processo”, conta.
O fato de trabalhar com mídias e comunicação digital e passar mais tempo conectada à internet do que gostaria – ela já vivenciou vários episódios de estafa por excesso de produtividade – resultou em hábitos assim, em que o manual é prioridade. Nessa busca por uma válvula de escape, a cearense revisita a menina de 13 anos que um dia foi, mexendo nas canetas coloridas. E sente certo alívio ao fazer isso.
“A atividade manual nos obriga a trabalhar a atenção plena porque é preciso concentração para recortar, colar, escrever à mão no papel… Isso faz minha mente relaxar. Comecei a me permitir a fazer aquilo que desse na telha, e fui descobrindo o quão divertido é passar o dia brincando de desenhar”
Os cadernos de Gabriela são bem livres e atendem às vontades dela no momento: se quer escrever cinco páginas seguidas de desabafos, faz; se no outro dia o interesse for por desenho, então desenha. Cada um deles vira uma espécie de inventário de memórias daqueles meses em que o caderno a acompanhou.
Hoje, ela já tem quatro journals concluídos e um bem pertinho de finalizar. Este último, diferentemente dos outros, é dedicado exclusivamente à viagem mais recente que realizou. “Achei que valia separar”, confessa.
“Justamente por ser analógico, é um hobby que leva tempo. Não me obrigo a fazer quando não estou no clima, nem sinto culpa por gastar menos ou mais horas em cada página. Já passei muitos domingos inteiros curtindo meus cadernos e também já passei semanas sem pegar em nenhum. O importante é que sempre volto”.
Embora não acredite que a relação com a internet tenha mudado a partir dessa produção, Gabriela situa gastar menos horas conectadas durante o tempo livre quando está entretida com hobbies analógicos. Para ela, o entretenimento on-line – especificamente quando atrelado às redes sociais – é superficial e cheio de gatilhos. Bastam alguns reels para querer viajar para a Indonésia, pintar o cabelo ou se inscrever naquele curso “imperdível”.
Em resumo, estar offline, além de acalmar a mente, também possibilita a ela dedicar atenção e energia ao que realmente pensa, sente e gosta. “Jamais saberia que gosto tanto de pintar com aquarela se estivesse presa ao vídeo de fofoca da rede vizinha”, diz.
“No mundo globalizado, desigual e capitalista em que vivemos, é exaustivo sentir que tudo acontece de forma intensa, superficial e rápida demais. Os vídeos estão cada vez menores, as tendências de moda caem em esquecimento cada vez mais rápido, pessoas ganham e perdem credibilidade como num passe de mágica. Tentar acompanhar esse ritmo fugaz, estando ainda imerso na atmosfera de comparação inerente às redes sociais, é capaz de adoecer qualquer pessoa. A verdade é que ninguém aguenta mais, mas ninguém sabe como sair disso”.
Caminhos para descansar do digital
Existem outros caminhos para descansar dessa overdose de internet. É o caso da Pincelê. O projeto nasceu no ano passado num momento em que a fundadora da iniciativa estava em busca de lugares para explorar hobbies, conhecer pessoas e desacelerar. “Vi experiências parecidas acontecendo fora do país e decidi começar o projeto de forma despretensiosa, pra tentar conectar pessoas por meio da arte”.
A fala é de Letícia Benevides, 28. Ela sempre gostou de pintar, mas não se considera artista. Com o tempo, percebeu nas redes sociais um movimento crescente de retomada dos hobbies criativos de forma mais leve, por diversão, sem a pressão de “ser boa”. A proposta da Pincelê, assim, é oportunizar experiências artísticas itinerantes para quem quer se reconectar com o lado lúdico da vida e viver experiências novas em Fortaleza.
Letícia diz que o projeto é o primeiro desse tipo na cidade, com vivências abertas ao público e também eventos privados, sempre em lugares diferentes e com propostas artísticas variadas. Pintura de telas, taças, jarros, espelhos, ecobags, cerâmicas, vinis, entre outros objetos, misturam-se com gastronomia, vinho, música, esporte e encontros em locais especiais.
São de dois a quatro eventos abertos por mês, sempre divulgados no perfil do projeto no instagram. Além disso, há muitas experiências personalizadas para grupos fechados, a exemplo de aniversários, eventos corporativos e confraternizações.
Todos são abertos a qualquer pessoa que queira participar. Os valores, por sua vez, variam por edição, mas costumam ficar entre R$150 e R$200, com todos os materiais inclusos – além de comidas, bebidas, sorteios e uma curadoria cuidadosa em cada detalhe.
“São muitas histórias bonitas. Já vi gente emocionada dizendo que não pintava desde a infância, mães e filhas criando memórias juntas, grupos de amigas se reencontrando pela arte, pessoas se surpreendendo com o próprio resultado… Já fizemos rodas de conversa sobre autoestima, maternidade, saúde mental, nutrição, sexualidade. Dá pra explorar muita coisa”.
Segundo Letícia, muita gente chega estressada ou sobrecarregada e sai com sorriso no rosto, novas amizades e vontade de continuar explorando a pintura como hobby. “Tem algo muito poderoso em se permitir criar sem julgamento. E quando isso acontece em grupo, com leveza e acolhimento, a experiência se torna quase terapêutica”, considera.
“Acho que estamos todos buscando uma forma de respirar. A rotina acelerada, o excesso de informação e o tempo nas telas cobram um preço alto. Hobbies analógicos devolvem a sensação de presença, de fazer algo com as mãos, de viver o tempo com mais intenção. Vejo isso como uma resposta bonita a um mundo que sempre exige produtividade”.
Por outro lado, esse investimento em atividades manuais não chega a Letícia como sinônimo de cansaço da internet. Tem mais a ver com necessidade de equilíbrio, de valorizar o offline como forma de cuidado da saúde mental.
“Vejo também como tendência esse flerte da nossa geração com uma época mais desconectada – quase como uma nostalgia de um tempo que nem vivemos por completo. Isso aparece nas estéticas vintage da moda, do design, do cinema... E também nessa retomada de hábitos manuais. Parece que existe um desejo coletivo de resgatar o ritmo, os rituais e o encanto de uma vida mais offline, onde as coisas eram feitas com mais presença”.
Nem demonizar nem romantizar
Embora diante de tantas considerações sobre o fazer manual, o psicólogo Francisco Ilo alerta para o cuidado de nem demonizar as telas nem romantizar o analógico. O melhor é perceber como cada uma dessas experiências funciona na nossa vida.
“Telas podem ser utilizadas com intenção – embora seja necessário reconhecer que é muito difícil usá-las assim justamente porque existem notificações, o celular recebe chamadas… Mas elas também podem ser, sim, fonte de conexão, aprendizado e criatividade”, enumera.
A palavra-chave, portanto, é equilíbrio. E isso, para o estudioso, começa com consciência, principalmente de que nada está tão sob nosso controle assim, seja o uso cuidadoso da internet ou a almejada atenção total com a qual nos dedicamos aos hobbies analógicos.
“O importante, sobretudo no caso da internet, é se perguntar a quê o uso dela está lhe servindo pessoalmente. Está nutrindo você de alguma forma? Você tem conseguido se conectar com pessoas e estímulos que engrandecem? Os influenciadores fitness que você segue, por exemplo, te conectam a uma imagem de vida e de corpo que é real e possível para você, ou lhe mantém num estado de frustração?”.
As perguntas cabem de igual forma aos grupos de atividades offline em que participamos. Eles enriquecem nossa vida ou nos colocam em um estado de necessidade, de falta? Reforçam, de fato, o autocuidado e ajudam a desacelerar ou são vistos por nós como mais um compromisso na infindável agenda de atividades?
“Isso porque esse boom de atividades analógicas pode ser muito influenciado por essa ‘trendificação’ das coisas. Tem a corrida, a academia, o Crossfit. Depois tem as atividades manuais, a espiritualidade – tudo capturado por certos movimentos de mercado. Quando vejo essas dinâmicas acontecendo nas redes sociais, vejo cada uma marcada por essa lógica de consumo, mas não só, necessariamente”, reflete Ilo.
“Acho que esses hobbies vão se manter, mas não necessariamente com essa mesma intensidade justamente porque a lógica de mercado, de trend, deve achar alguma outra coisa em breve para redirecionar nossa atenção. As pessoas continuarão fazendo, mas o quanto a gente vai ver isso aparecendo e sendo dito em redes sociais, talvez diminua”.
Uma coisa é certa: a conexão com atividades manuais reduz o volume da mente e traz o foco para o fazer, o experimentar, o contato direto com pessoas e coisas, sem um mediador. É uma forma de sair do excesso de linguagem e dos pensamentos abstratos das redes e voltar-se para o aqui-agora, os sentidos e a vida que está em contato direto com a gente.