Crianças nascidas na pandemia podem ter imunidade e desenvolvimento atrasados, diz pesquisadora
Isolamento social e permanência em casa afastaram bebês do ambiente externo e do convívio com outras pessoas que seriam benéficos para seu crescimento.
Os bebês nascidos durante a pandemia da Covid-19 podem enfrentar consequências danosas ao seu desenvolvimento integral. Pesquisas conduzidas ao redor do mundo, no Brasil e no Ceará atribuem tais déficits ao isolamento social recomendado para minimizar os riscos da transmissão da doença.
Nesse processo, confinados às residências e convivendo basicamente com os pais, os bebês deixam de conhecer outras crianças e de interagir com o meio ambiente. Além disso, deixar de consumir a merenda escolar, com as unidades de ensino fechadas, também pode ter sido um fator para a piora nutricional no período.
certidões de nascimento foram emitidas no Ceará desde março de 2020 até agora, segundo o portal de Transparência do Registro Civil da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen).
A enfermeira Márcia Machado, professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) e Cientista Chefe de Proteção Social do Estado, vem coordenando o estudo "Iracema Covid" para avaliar esse cenário.
São acompanhadas cerca de 350 mulheres e seus bebês nascidos na rede pública de Fortaleza entre julho e agosto de 2020, após o primeiro lockdown na Capital cearense. Mães e filhos são avaliados em três momentos: aos 6, 12 e 18 meses de idade da criança. Uma nova etapa deve ser conduzida aos 24 meses.
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Já existem evidências de que esses bebês têm uma saúde mais frágil?
Quanto à questão da imunidade, o fato de as crianças não terem contato com o ambiente, com outras pessoas, pode sim fazer com que algumas, ao retornarem para o ambiente, para as escolas, apresentem, num primeiro momento - e a gente está observando isso nas crianças com 18 meses - problemas respiratórios.
Nós também temos nesse momento a questão da chuva, a mudança climática. Obviamente, quando a criança é exposta, às vezes não tem os anticorpos ainda e isso pode favorecer principalmente os problemas respiratórios e gastrointestinais.
O desenvolvimento motor e cognitivo também pode ser afetado?
Nós vivemos um momento atípico porque as crianças ficaram distanciadas dos familiares mais próximos e dos amiguinhos. O que já estamos observando é que alguns marcos de desenvolvimento, num primeiro momento, foram prejudicados.
Por exemplo, na questão motora fina, onde ela vai fazer desenhos, aqueles rabiscos mais simples, houve sério atraso. Também teve a questão da socialização e um pouco da linguagem, que são aspectos que elas precisam de uma interação.
Nós também fizemos outro estudo em 24 municípios no interior do estado do Ceará com famílias que vivem em situação de extrema pobreza e houve sim uma mudança de comportamento das crianças. Mas aqui em Fortaleza, o que a gente está observando é que o desenvolvimento parece que ficou um pouco mais comprometido.
Nossa hipótese é que crianças que vivem em espaços menores, em apartamentos, ficam mais limitadas; enquanto no interior, mesmo com o distanciamento físico, as crianças conseguem usufruir mais desse contato com a natureza.
Esses déficits podem ter relação com a saúde da mãe na gravidez?
Estamos utilizando algumas escalas de saúde mental da mãe, e entre as mulheres que têm um grau elevado de sofrimento emocional as crianças apresentam mais risco no desenvolvimento. São mães que não estão bem com elas.
Um dado preocupante é que quase 60% dessas mulheres não procuraram fazer nenhuma consulta depois do parto. Elas estão levando as crianças, mas a maioria não está procurando fazer o acompanhamento do seu corpo e da sua mente.
Além disso, hoje nós precisamos trazer a figura masculina para a responsabilização do cuidado com a criança. Isso daí é uma tese que a gente já vinha pensando muito. Sempre se coloca toda sobrecarga nas mulheres, mas precisamos trazer inclusive os jovens que engravidaram a namorada e explicar que, mesmo separados, o pai precisa saber que ele tem que manter o contato com o filho, para levar afeto, para poder conversar com a criança, porque isso aumenta o número de palavras que elas aprendem.
Esse atraso é preocupante ou é possível recuperar?
Nós não temos ainda a resposta desse estudo, mas os que são realizados no mundo estão mostrando que as crianças acabam tendo uma capacidade resiliente de reverter esse fato. Se você as coloca na interação, elas acabam recuperando. Mas vamos ter que acompanhar porque nossa realidade é muito diferente da realidade de outros países que já estão acompanhando há mais tempo.
Você vai ter que fazer um trabalho que é desafio em creche e em escolas, onde essas crianças acabam passando mais tempo. Há uma necessidade de fazer algumas intervenções para que você oriente os pais a interagir melhor.
Por exemplo: um dos itens que mais mexe nas crianças é a questão da leitura, de você ler historinhas pras crianças mostrando ao mesmo tempo figuras de livros. Esses estudos estão mostrando que é uma intervenção muito potente.
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Como esse fenômeno pode se relacionar à demora ou recusa na atualização das vacinas infantis?
O movimento negacionista da vacina para a Covid-19 está repercutindo também no calendário vacinal. Em torno de 30% das crianças aos 18 meses de vida têm alguma vacina atrasada ou não estão vacinadas. Isso é um fator preocupante porque há o retorno de doenças que estavam quase exterminadas, como o sarampo em alguns estados do país.
É atuando na orientação ao Estado que vamos precisar ativar com força a busca de visitas domiciliares pelos agentes comunitários de saúde e pela equipe da estratégia de saúde da família. Vamos ter de voltar talvez ao mesmo percentual de visitas aos 6 primeiros meses de vida como a gente tinha na década de 1990.
Os profissionais precisam usar a caderneta de vacinação como aliada porque ali sinaliza a evolução da criança, além de trazer muitas orientações aos pais quanto à melhor forma de garantir o desenvolvimento das crianças.
A pesquisa “Iracema Covid”, atualmente em curso no Ceará, conta com pesquisadores da UFC, da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade de Harvard, da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal e da Fundação David Rockefeller Center for Latin American Studies (DRCLAS), além de ter apoio da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap).