Conselho aponta dívida, falta de transparência e reprova prestação de contas da Saúde de Fortaleza em 2024

Órgão apresentou parecer mostrando débitos de R$ 164 milhões com gerenciadoras de unidades e mais R$ 250 milhões em contratos e convênios não empenhados

Escrito por
Gabriela Custódio gabriela.custodio@svm.com.br
(Atualizado às 12:12)
Fachada do Instituto Dr José Frota, em Fortaleza
Legenda: Informações do Conselho Municipal de Saúde de Fortaleza sobre o Relatório Anual de Gestão 2024 devem ser enviadas para órgãos de controle, para a apuração de possíveis irregularidades
Foto: Thiago Gadelha

O Conselho Municipal de Saúde de Fortaleza (CMSF) reprovou o Relatório Anual de Gestão (RAG) 2024 apresentado pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Durante reunião realizada na segunda-feira (9), foi informado que menos de 20% do valor acordado no ano passado com Organizações Sociais que gerenciam unidades de saúde de Fortaleza foi pago e que a dívida com essas entidades é de quase R$164,2 milhões.

Segundo o relatório do CMSF, informações da Coordenadoria de Contratos de Gestão da SMS mostram que, dos mais de R$ 202 milhões pactuados com essas entidades em 2024, cerca de R$ 38,3 milhões teriam sido pagos, o que corresponde a um inadimplemento de 81,1% dos valores devidos.

Além disso, o Conselho Municipal aponta que a dívida total é ainda maior e passa de R$ 483 milhões, mas falta clareza sobre como ela foi constituída. O tema foi discutido na 287ª Reunião Ordinária do CMSF, realizada na sede da Secretaria Municipal da Saúde e acompanhada pelo Diário do Nordeste.

“Decorrente desse atraso nos pagamentos as Organizações Sociais, em 2025, Fortaleza enfrentou uma severa crise no abastecimento de medicamentos nas unidades básicas de saúde, afetando diretamente pacientes com doenças crônicas como diabetes e hipertensão”, afirma o relatório do Conselho.

A falta de medicamentos nos postos de saúde foi noticiada pelo Diário do Nordeste. No dia 2 de abril, a reportagem divulgou relatos de que remédios básicos, como aqueles voltados para dores, diabetes, hipertensão, dentre muitos outros, estavam em falta nas unidades.

No dia 14 de abril, outra reportagem mostrou uma lista de 21 medicamentos em falta. Na época, o prefeito Evandro Leitão (PT) afirmou que o problema teve duas causas: o endividamento da prefeitura com as distribuidoras dos medicamentos e o recesso da indústria farmacêutica, que atrasou a chegada das reposições “não planejadas” pela gestão que o antecedeu.

Em meio ao desgaste acentuado da saúde, houve mudança na gestão da Pasta em Fortaleza. Após a saída de Socorro Martins, a médica anestesiologista Riane Azevedo deixou a superintendência do Instituto Dr. José Frota (IJF) e foi anunciada pelo prefeito Evandro Leitão como nova secretária, no dia 20 de maio.

“A análise (do RAG 2024) evidencia incoerências relevantes, principalmente no que se refere a dívidas acumuladas, despesas de exercícios anteriores, restos a pagar e contratos não empenhados”, informa o relatório elaborado pelo Conselho. A entidade caracteriza a situação como “uma grave anomalia fiscal e orçamentária”.

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As informações coletadas pelo Conselho devem ser enviadas para órgãos de controle, como a Controladoria Geral do Município (CGM), o Tribunal de Contas do Estado do Ceará (TCE) e o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), para a apuração de possíveis irregularidades.

No documento, a entidade destaca a necessidade de realização de auditoria interna imediata e solicitação de auditoria externa ao TCE para “verificação da legalidade, legitimidade e economicidade dos contratos de gestão e das execuções orçamentárias da SMS”.

“O CMSF reforça que a adoção de auditorias independentes não se configura como penalização, mas como um instrumento legítimo de qualificação da gestão pública”, finaliza o relatório.

Outros problemas apontados pelo Conselho

O relatório do Conselho também indica a existência de mais de R$ 252 milhões em contratos e convênios não empenhados, mas indicados como “restos a pagar”. Essa categoria refere-se às despesas que foram empenhadas mas não foram pagas até o final do período de referência — no caso, o ano de 2024. “A inclusão de valores não empenhados como se fossem restos a pagar compromete a transparência e veracidade dos dados fiscais”, aponta o relatório.

O empenho é o primeiro estágio da despesa pública, quando parte do orçamento é reservada para determinado uso, servindo como garantia de que há crédito disponível. A etapa seguinte é a liquidação, em que é verificado se o contrato foi cumprido. Por fim, é feito o pagamento ao fornecedor pela prestação do serviço ou pelo bem fornecido.

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Ao Diário do Nordeste, o presidente do CMSF, Pedro Alves de Araújo Filho, afirmou que o Conselho não recebeu informações detalhadas sobre quais são esses contratos não empenhados e como a dívida de mais 400 milhões foi constituída.

“A grande questão é que houve gastos promovidos pela SMS com contratos e convênios sem previsão no orçamento e, ao mesmo tempo, os contratos e convênios com Organizações Sociais, com prestadores conveniados, que estavam previstos no orçamento, não foram pagos”, afirma.

O que o Conselho vem intencionando desde o início é, objetivamente, qual é a composição dessa dívida, por que ela foi constituída, por que os prestadores não foram pagos? E as repercussões que isso teve na na oferta de ações de serviço à população.
Pedro Alves de Araújo Filho
Presidente do CMSF

O Relatório Anual de Gestão é o instrumento que apresenta os resultados alcançados com a execução da Programação Anual de Saúde (PAS) e orienta eventuais redirecionamentos que sejam necessários.

“A reprovação do Relatório Anual de Gestão é uma sinalização não só para a gestão atual, mas principalmente para a necessidade de esclarecimento em relação aos problemas, para outros órgãos”, explica o presidente do CMSF.

Pessoa em frente ao IJF segurando insumos médicos, em contexto da crise na saúde de Fortaleza
Legenda: Relatório do Conselho Municipal de Saúde de Fortaleza aponta que atraso no pagamento de contratos com Organizações Sociais (OS) comprometeu a continuidade dos serviços terceirizados, impactando no pagamento de profissionais, aquisição de insumos e operação regular das unidades
Foto: Davi Rocha

À reportagem, o advogado Gildo Almeida, pós-graduado em direito administrativo, explicou que, ao firmar um contrato ou convênio sem o correspondente empenho, o gestor público assume uma obrigação sem cobertura orçamentária.

“Essa conduta contraria frontalmente o princípio da legalidade, além de ferir os deveres de planejamento e responsabilidade na gestão fiscal”, afirma. Ele também afirma que isso compromete a previsibilidade e a viabilidade econômica para fornecedores.

“Sem a garantia de que os valores pactuados serão pagos, há insegurança jurídica, o que pode acarretar descontinuidade dos serviços prestados, inadimplemento com fornecedores e até mesmo judicialização para cobrança de débitos (...) A gestão fiscal responsável não é um detalhe técnico, mas uma garantia de direitos”, afirma.

O relatório produzido pelo CMSF também chama atenção para a publicação de termos aditivos a contratos de gestão firmados pela Secretaria Municipal da Saúde com OSS sem prévia apresentação, análise ou aprovação por parte do Conselho Municipal de Saúde, o que “compromete a transparência, a legalidade e o controle social na aplicação de recursos públicos da saúde”.

“A recomendação do Tribunal de Contas da União (TCU) e dos Ministérios Públicos Estaduais tem sido clara em exigir que os Conselhos de Saúde acompanhem e aprovem previamente os contratos de gestão e respectivos aditivos, considerando o potencial impacto financeiro e assistencial destes documentos na rede pública de saúde”, afirma.

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Em nota, a Prefeitura de Fortaleza afirmou que preza pela transparência e pela participação social na gestão das contas públicas, “por esse motivo, apresentou ao Conselho Municipal de Saúde de Fortaleza (CMSF) o Relatório Anual de Gestão (RAG) referente ao ano de 2024, bem como as Despesas de Exercícios Anteriores (DEA)”.

Entre janeiro e maio de 2025, segundo a Prefeitura, a SMS quitou mais de R$ 156 milhões em dívidas. “Estima-se que o valor do déficit orçamentário declarado pela gestão anterior ultrapasse R$ 400 milhões, sendo a maior parte das dívidas relativa a prestadores de serviços e Organizações Sociais”, informa.

Também em nota enviada por meio da assessoria de imprensa, José Sarto e sua equipe negam qualquer tipo de irregularidade na gerência da saúde de Fortaleza e “garantem que todos os processos que deveriam passar pelo Conselho foram encaminhados ao órgão”. “No momento oportuno iremos realizar toda a prestação de contas junto ao Conselho”, finaliza o comunicado.

Leia as notas completas no final da reportagem.

O que faz o Conselho Municipal de Saúde?

Os Conselhos de Saúde, dentre eles o CMSF, são órgãos colegiados, deliberativos e permanentes do Sistema Único de Saúde (SUS) em cada esfera de governo. Eles fazem parte da estrutura das secretarias de saúde dos municípios, dos estados e do governo federal e atuam na formulação de estratégias, na fiscalização e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente.

A Lei Municipal nº 11.532/2025 atualizou a legislação do Conselho Municipal de Saúde de Fortaleza, que conta com 32 membros titulares e seus respectivos suplentes, entre representantes dos usuários, do governo, dos trabalhadores de saúde e dos prestadores de serviços em saúde.

Entre as competências do CMSF estão:

  • Atuar na formulação de diretrizes, estratégias e controle da execução da política de saúde, incluindo seus aspectos econômicos, financeiros e de gerência técnico- administrativa;
  • Analisar e deliberar os planos de saúde e os demais instrumentos de planejamento e gestão no SUS, tais como a Programação Anual de Saúde, o Relatório Detalhado do Quadrimestre Anterior, o Relatório Anual de Gestão e os demais a serem instituídos no SUS, acompanhando e fiscalizando sua execução;
  • Analisar e deliberar os critérios para a celebração de contratos ou convênios entre o setor público e as entidades privadas e filantrópicas, no que tange à prestação dos serviços de saúde;
  • Fortalecer a participação e o controle social no SUS e mobilizar e articular a sociedade de forma permanente na defesa dos princípios constitucionais que fundamentam o SUS.

Leia as notas da Secretaria Municipal da Saúde de Fortaleza e de José Sarto na íntegra

Nota da SMS

A Prefeitura Municipal de Fortaleza (PMF) ressalta que é de conhecimento público a situação financeira na qual recebeu, em 2025, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS). A atual gestão preza pela transparência e pela participação social na gestão das contas públicas, por esse motivo, apresentou ao Conselho Municipal de Saúde de Fortaleza (CMSF) o Relatório Anual de Gestão (RAG) referente ao ano de 2024, bem como as Despesas de Exercícios Anteriores (DEA). O objetivo do poder público é cumprir rigorosamente as normas legais que regem a execução orçamentária, enquanto trabalha para fortalecer e reestruturar a rede pública de saúde.

Estima-se que o valor do déficit orçamentário declarado pela gestão anterior ultrapasse R$ 400 milhões, sendo a maior parte das dívidas relativa a prestadores de serviços e Organizações Sociais (OS). Essas dívidas, deixadas em 2024, impactaram diretamente a prestação dos serviços de saúde, a exemplo da ausência de pagamentos e de contratos e convênios  para o fornecimento de medicamentos em 2025, prejudicando a população da Capital. Entre janeiro e maio de 2025, a SMS quitou mais de R$ 156 milhões em dívidas deixadas pela gestão anterior.

Enquanto honra seus compromissos financeiros, quitando os valores contratualizados para a prestação  de serviços, a atual gestão adota medidas administrativas e institucionais, para mitigar os impactos financeiros das dívidas dos anos anteriores, respeitando o princípio da universalidade do Sistema Único de Saúde (SUS), que assegura o atendimento a toda a população.

Além de trabalhar para reestabelecer o equilíbrio financeiro da pasta, somente nos cinco primeiros meses deste ano, a SMS: ampliou os investimentos na rede hospitalar, como no Hospital Doutor José Frota (IJF), que ganhou novos leitos e mais capacidade de realização de exames; iniciou a reforma do Hospital Nossa Senhora da Conceição, que estava quase completamente sem funcionar; e entregou 4 postos de saúde totalmente reformados, além de novas ambulâncias para renovação de frota.

Nota de José Sarto

O prefeito José Sarto e sua equipe negam qualquer tipo de irregularidade na gerência da saúde de Fortaleza e garantem que todos os processos que deveriam passar pelo Conselho foram encaminhados ao órgão.

No momento oportuno iremos realizar toda a prestação de contas junto ao Conselho.

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