O legado de Gilmar de Carvalho, pesquisador "intelectual e generoso" da cultura popular cearense

Personalidades, amigos e ex-alunos descrevem importância do professor para valorização das raízes e tradições locais

Escrito por Redação , verso@svm.com.br
Gilmar de Carvalho, pesquisador da cultura popular cearense
Legenda: Legado de Gilmar de Carvalho como professor, pesquisador, jornalista, escritor e curador é reconhecido por amigos e artistas do Ceará
Foto: Natinho Rodrigues

Os dígitos crescentes de vítimas da Covid-19 guardam, além da triste estatística, vidas inteiras de lembranças, saberes e afetos. Na noite de sábado (17), o Ceará perdeu um par de mãos que se dedicou a registrar e valorizar a cultura popular desde a raiz: o professor e pesquisador Gilmar de Carvalho, morto pela doença pandêmica aos 71 anos.

Os passos miúdos, de calça e camisa sociais engomadas, sempre abraçado aos livros pelos corredores da Universidade Federal do Ceará (UFC), materializavam a “calma”, a “paciência” e a “delicadeza” descritas, de forma unânime, por personalidades, amigos e ex-alunos ouvidos pelo Diário do Nordeste.

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Para Espedito Seleiro, artesão cearense e amigo de Gilmar, “o nosso Ceará perdeu uma pessoa muito importante, que conversava, pesquisava e explicava as coisas (da cultura) direitinho”.

Ave Maria! A gente não sabe nem como suportar. Gilmar era uma pessoa excelente, muito meu amigo, que eu adorava. Adorava não, que adoro. Para mim, não tem outra pessoa igual.
Espedito Seleiro
artesão e mestre da cultura

O mestre da cultura lembra do primeiro encontro que teve com o pesquisador, quando Gilmar acompanhou a feitura de um chapéu de couro, "naquela calma dele, com aquela paciência". Seleiro, aliás, perdeu as contas das visitas do autor de "Madeira Matriz" à sua oficina, em Nova Olinda.

Dodora Guimarães, curadora e pesquisadora de Artes Visuais, também lamentou, em nota, a perda do amigo e "escritor que trocou a ficção pelo magistério, que deixa o mundo órfão de sua inteligência rara".

A cultura brasileira perde um de seus mais dedicados colaboradores, e a cultura do Ceará o seu mais competente tradutor.
Dodora Guimarães
curadora e pesquisadora de Artes Visuais

“Obrigado por tudo, Gilmar”

Fabiano Piúba, secretário de Cultura do Ceará e amigo pessoal de Gilmar, definiu a perda do professor, pesquisador, jornalista, escritor e curador como “incomensurável” para o Estado.

“Ele sempre estava desenvolvendo algum projeto. Um livro, uma exposição, um seminário, um museu, uma curadoria, uma pesquisa. Nada era para ele. Todos os seus projetos acadêmicos e artísticos tinham um caráter social e coletivo”, declarou.

Gilmar de Carvalho coroa Mestre Almeida, rainha do
Legenda: Gilmar de Carvalho coroa Mestre Almeida, rainha do "Maracatu Nação Iracema"
Foto: Francisco Sousa

Nos últimos dois anos, revela o gestor cultural, Gilmar e a Secult dialogavam sobre a implantação do Museu de Arte Popular dos Mestres e Mestras da Cultura do Ceará, a ser instalado na Emcetur. “O Gilmar tinha sido convidado para ser o curador e pensar conosco o projeto museológico. Este museu é uma luta dele e será também um legado seu”, sentencia Piúba.

Hoje é um dia triste, mas é também um dia para celebração de sua vida, memória e toda sua obra. Um dia para a gente agradecer, agradecer, agradecer por tudo que ele fez, o que deixa como legado e como inspiração para gente seguir na luta por um mundo mais justo e democrático.
Fabiano Piúba
Secretário da Cultura do Ceará

A Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor) postou nota de pesar enaltecendo o legado de Gilmar de Carvalho, que inclui a publicação de mais de 50 livros. "Gilmar deixa um grande legado para a Cultura e para a Comunicação do Ceará e do Brasil, sendo eternizado pelas próximas gerações".

Na manhã deste domingo (18), o prefeito de Fortaleza, Sarto Nogueira (PDT), também publicou mensagem de pesar e de solidariedade a amigos e familiares de Gilmar, e ressaltou a importância do legado deixado pelo professor.

“Gilmar foi uma referência, contribuiu com a formação de inúmeros comunicadores, foi um dos maiores pesquisadores da cultura popular cearense. Meus sentimentos a todos os familiares e amigos”, declarou o gestor.

O governador Camilo Santana (PT) também lamentou a morte do pesquisador. "Era um dos mais respeitados pesquisadores da cultura popular cearense. Meu abraço fraterno de solidariedade a todos os familiares, amigos e alunos do professor Gilmar de Carvalho, e a todos os cearenses que perderam parentes para a Covid-19", afirmou.

Em nota, a Associação Cearense de Imprensa (ACI) expressou "profundo pesar" pela partida de Gilmar de Carvalho e destacou a dedicação dele à pesquisa, "com vasta produção bibliográfica e um legado que permanece entre nós".

O Museu de Arte da UFC, equipamento que recebeu diversas exposições e eventos relacionados às pesquisas e obras do professor, descreveu Gilmar como "um farol a iluminar os nossos compromissos institucionais com a memória e o patrimônio cearenses".

“Gilmar sempre esteve do lado certo da História”

Entre os “inúmeros comunicadores” formados e inspirados por Gilmar de Carvalho está a jornalista Naiana Rodrigues, professora da UFC, ex-aluna e orientanda dele. De tão próxima do professor, chegava a ser descrita como “filha” pelos colegas.

Nunca esquecerei de quando trocamos abraços nos arredores da Aldeota, em 2014, quando fui aprovada como professora efetiva da UFC. Ele me abraçou forte e disse: ‘feliz em saber que os bons estão retornando pra universidade’. Foi o maior elogio que já recebi na vida acadêmica.
Naiana Rodrigues
jornalista, professora e ex-aluna de Gilmar

Naiana, que chegou a trabalhar em pesquisas de Gilmar de Carvalho, como bolsista, estima que o professor formou “três ou quatro gerações de jornalistas”, tendo como traços simplicidade, intelectualidade, generosidade e delicadeza que o tornaram “marcante e inesquecível”.

“É um conhecimento transdisciplinar, humano. Ele registrou a arte, a cultura. Novas gerações devem se apropriar, e não deixar esses objetos esfriarem. Ele é uma referência”, ressalta a ex-aluna, destacando, ainda, o “humor muito ácido e a ironia refinada” típicos de Gilmar.

O último abraço dos dois, aliás, se deu apenas pelos sorrisos, em fevereiro de 2020, quando se encontraram já sob as ameaças de um inimigo invisível. “Hoje a dor que sinto é da perda de um pai acadêmico. Ele ia em busca das origens e tradições, mas entendia que elas não saíam ilesas ao tempo. Esse é o grande legado que o Gilmar deixa”, frisa.

O curso de Jornalismo e o Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFC comunicaram, em nota, a partida de "uma das mentes mais pródigas e sagazes da cultura cearense", que "soube, com argúcia, competência e sensibilidade, nos falar sobre aquilo que somos, e que compartilhamos enquanto cultura."

Em qual dimensão estiver, que tenha armado um tempo 'bonito pra chover', pra lhe receber com todas as honras que merece.

Obra-identidade fica como legado

Além de bacharel em Direito e Comunicação Social, doutor em Comunicação e Semiótica e produtor de obras documentais amplas sobre a cultura popular, Gilmar de Carvalho também era escritor de romances, peças de teatro e outros gêneros ficcionais.

A tese de doutorado, publicada como Madeira Matriz (1998), foi Prêmio Sílvio Romero de Monografias sobre Folclore e Cultura Popular. O autor também foi vencedor do Prêmio Érico Vanucci Mendes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 

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Em 2014, Gilmar ganhou, com Francisco Sousa, o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, com a pesquisa que resultou no livro Tirinete – Rabecas da Tradição. Recebeu ainda, em 2017, a Medalha Mário de Andrade, em comemoração aos 80 anos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

Um dos primeiros e principais objetos de estudo do pesquisador foram a vida e a obra de Patativa do Assaré, nome que intitulou pelo menos seis livros escritos pelo pesquisador: Patativa do Assaré (2000), Cordel canta Patativa (2002), Patativa do Assaré: um poeta cidadão (2008), Patativa do Assaré: o sertão dentro de mim (2010), Antologia poética de Patativa do Assaré (2010) e Cem Patativa (2010).

Fabiano Piúba, aliás, descreve a relação que Gilmar teve com o poeta. “Gilmar se tornava um amigo terno e cuidadoso para a vida inteira de muitos mestres e mestras da cultura que encontrou. Assim ele foi com Patativa do Assaré: um amigo, um cúmplice, um parceiro, um editor, um irmão".

Assim foi também com cada rabequeiro, cordelista, xilogravurista, violeiro, aboiador, louceira, artesão e brincante do reisado, do maracatu, do pastoril, do coco.
Fabiano Piúba
Secretário da Cultura do Ceará

A publicidade, as artes, a musicalidade, a poesia, a xilogravura, a culinária e todo o universo que compõe quem e o que é o Ceará foi estudado descrito por Gilmar de Carvalho. A própria vida do sobralense, nascido em 1949, se confunde com as raízes de um estado que, hoje, fica mais triste e mais pobre com a partida dele.

 

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