Paula Gaitán, que filmou de Elza Soares a Agnès Varda, fala sobre criação de imagens, desafios de exibição e inspirações
Obra múltipla da cineasta colombiano-brasileira está sendo exibida em mostra gratuita na Caixa Cultural Fortaleza até o próximo dia 23

Ainda que a cineasta colombiano-brasileira Paula Gaitán tenha, só de audiovisual, uma trajetória que soma mais de 40 anos, a realização de uma mostra com parte considerável da obra da artista — incluindo longas, curtas, médias, videoclipes e uma videoinstalação — desponta como experiência inédita de contato do público de Fortaleza com as imagens criadas pela cineasta.
A partir da realização de “As Mil Noites - o cinema de Paula Gaitán”, em cartaz até o próximo dia 23 na Caixa Cultural, a diretora, fotógrafa, poeta e artista visual fala à coluna sobre os desafios de exibir trabalhos que desafiam modelos do mercado, defende a circunstância como elemento importante para criação e ressalta a relação com jovens cineastas do cinema brasileiro e cearense contemporâneo.
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“Sempre produzi muito”
Os nove longas, 14 curtas e médias, dois videoclipes e instalação que compõem a programação depõem, de partida, sobre dois aspectos importantes para acessar a obra de Paula: a multiplicidade de formatos e, ainda, o fato de que a maior parte desses trabalhos foi realizado nos últimos 25 anos.
Entre eles, há clipes para artistas como Elza Soares e Ana Frango Elétrico, documentários com artistas como Maria Gladys, Agnès Varda, Negro Léo e Arrigo Barnabé, e ficções premiadas como “Luz nos Trópicos” (2020) — com 4h30 de duração — e “Exilados do Vulcão” (2013).
“Eu sempre produzi muito. O que acontece é que eu nunca tive a sorte de ganhar um edital público”, brinca a artista. Nascida em Paris com pai colombiano e mãe brasileira, Paula cresceu na Colômbia e trabalhou, desde os anos 1970, com diferentes artes.

“Venho das artes visuais, da poesia, da música, e tudo isso estava latente. Ou seja, não comecei por acaso. Já estava trabalhando com fotografia, fazendo videoinstalação. Já tinha um pressentimento do que seria esse momento atual, vinha me encaminhando”, considera.
A primeira experiência dela com audiovisual de fato, lembra, foi quando assinou a direção de arte de “A Idade da Terra” (1980), longa de Glauber Rocha, com quem se casou. “Foi uma escola de cinema. Aprendi a estar dentro de um set de uma maneira muito peculiar, onde a experiência e o processo eram evidentes. Era uma experiência de vida”, relembra.
Traduzir pensamento em imagem
Aproximar a ideia da criação artística da vida vivida, inclusive, é ponto central para as obras de Paula. “São gestos estéticos, decisões que vou descobrindo no próprio processo”, define.
As inspirações e ímpetos para produzir partem, ela explica, “muito mais de ideias, conceitos, outras imagens”, além, é claro, da própria vida. “Nunca você está num ideal, num momento em que você tem dinheiro suficiente para fazer um filme. Então, me adapto a qualquer circunstância”, aponta.
“Não sou realizadora de ficar esperando grandes projetos, nem grandes orçamentos. Vou no meu tempo. Tem filmes que não tem orçamento nenhum, mas eu faço. Muitos são feitos até só com minha voz. ‘A Ópera dos Cachorros’ não tem imagens, é só minha voz cantando, e eu nem sou cantora (risos)”
Ao conseguir um orçamento — mesmo que reduzido — para dirigir o episódio de uma série sobre a atriz brasileira Maria Gladys para o Canal Brasil, por exemplo, Paula aproveitou a experiência para fazer, a partir disso, um documentário sobre a artista.
“Multipliquei esforços, agreguei minha energia e tentei adaptar o material, já pensando que poderia fazer um longa depois. Multiplico assim”, exemplifica.

Fazer cinema, define, “é trabalhar, mesmo com ferramentas muito simples, precárias, mas fazer imagens importantes”. “Você pode ter mil equipamentos de luz e fazer uma imagem banal, mas pode ter uma lanterna e fazer uma imagem extraordinária. É saber como usar a lanterna, como fazer essa lanterna traduzir um pensamento”, considera.
O anteriormente citado “Luz nos Trópicos”, por exemplo, foi aprovado em um edital, o que possibilitou recursos. A limitação deles, no entanto, guiou a experiência da produção, que se equilibrou entre grandiloquência e independência.
“É muito importante para um diretor entender o desenho de produção que quer e como multiplicar esse orçamento, tentar adaptar para uma situação x. Ele tem 4 horas e meia. Se fosse de um produtor muito severo, ele diria que eu não poderia fazer (risos). A quê isso me levou? Tive que montar o filme, porque não tinha orçamento, então a dificuldade me levou ao conhecimento”
O longa, segue Paula, não teve luzes artificiais na produção. “É tudo luz natural, a gente trabalhava com espelhos... É sobre criar uma própria tecnologia. Cada pessoa consegue saber quais ferramentas vai escolher, que podem ser sofisticadérrimas, carérrimas, mas também extremamente simples e isso pode se tornar uma habilidade”, atesta.
Diálogos criativos com novas gerações
Os modos de fazer defendidos e empreendidos por Paula ecoam um caráter de produção que dialoga com novos nomes do cinema brasileiro contemporâneo. Dentro da mostra, inclusive, a cineasta conduziu o workshop “Espaços Invisíveis”, partilhando com jovens cineastas possibilidades de criação e execução de projetos audiovisuais.
Além do contato com os inscritos na formação, já concluída, a artista também terá um momento de diálogo com o diretor cearense Pedro Diógenes (de “A Filha do Palhaço” e “Centro Ilusão”), citado por ela como um dos nomes que acompanha.
“Tenho relação com o cinema de todas as gerações, sobretudo com o que está latente, surgindo, as novas produções. Pedro Diógenes, Guto Parente, Leo Mouramateus sempre foi um interlocutor”, lista.
A proximidade de nomes de gerações diferentes é natural para Paula uma vez que, relata, “meu trabalho nunca foi considerado cinema pela minha geração, que é a do cinema de retomada — e que, graças a Deus, não pertenço, nem gosto, nem concordo”, afirma.
“Cada um vai escolhendo com quem vai circulando e se conectando. São pessoas com as quais você vai começar a trabalhar, dividir ideias. Eu recebo muitos filmes de colegas bem mais jovens, eles vêem os meus. A gente cria grupos mais pelas afinidades de linguagem do que pelo contato social de tal festival. É muito mais um diálogo criativo, pela obra”
“A Mubi nunca se interessou por meus filmes”
Dos processos aos formatos, os filmes de Paula Gaitán desafiam as limitações do audiovisual no País. Uma delas diz respeito à distribuição, repetidamente citada como um dos gargalos da cadeia audiovisual.
“Não posso ficar me amargurando porque não há um ideal de distribuição. Isso não acontece só comigo, acontece com muitos diretores. O problema da distribuição no Brasil é grave no todo, não é uma coisa específica com os meus filmes”, compreende a cineasta.
A tarefa de distribuir curtas ou médias, que não costumam ter espaço em salas tradicionais, ou longas que chegam até 4h30 de duração, no entanto, tornam o desafio ainda maior.
“Sempre fico insatisfeita com distribuição, sempre sonhei em poder distribuir meus filmes corpo a corpo”, aponta. Iniciativas como a do lançamento de “Luz nos Trópicos”, o exemplo mais evidente, tentaram tornar a difusão da obra mais singular.
Sessões únicas do filme foram realizadas em capitais do País, inclusive Fortaleza, com algumas delas tendo sido acompanhadas pela própria cineasta. “Nem todo mundo desejou programar o filme, mas eu queria fazer uma distribuição mais rica. Achei que era uma maneira de conectar o público, uma coisa entre didática e utilidade”, reconhece.
Uma saída possível, atualmente, são os streamings. “Não me nego a estar neles, várias plataformas lá fora tem obras minhas. Mas a Mubi, por exemplo, nunca se interessou por meus filmes. (risos) Não é que eu não queira, é que as pessoas não pedem”, explica.
Apesar da plataforma global não contar com obras de Paula, um serviço brasileiro e independente, a Embaúba Play, conta com cinco filmes dela, entre longas e curtas. O fato reitera a percepção da diretora: seja para estar num streaming grande ou numa sala de cinema, “você precisa ter uma máquina que te ajude”.
Contrária à pecha de “experimental”, a cineasta defende: “Cinema é cinema e qualquer filme pode chegar em qualquer público. Meu cinema não é experimental, é cinema”. Para ela, seria importante “permitir que esses filmes fossem vistos e distribuídos com a mesma credibilidade com que se distribuem outros”.
Apesar das demandas, Paula reconhece: “Cada exibição, posso dizer, é um privilégio”. “Talvez com meus filmes não rolou essa credibilidade, as pessoas ficaram com pé atrás, mas não me preocupo”, atesta.
Aos 70 anos, após mais de quatro décadas de atuação no audiovisual, Paula reflete:
“Nunca pensei em construção de carreira. Talvez eu tenha sido muito inábil, poderia ter feito de outro jeito. Cheguei no momento em que só com o fato de existirem esses encontros, retrospectivas, dos filmes circularem, já estou super feliz — e feliz também por ter encontrado companheiros nesses diálogos ao longo das últimas duas décadas”
Mostra “As Mil Noites - o cinema de Paula Gaitán”
- Quando: até dia 23
- Onde: Caixa Cultural Fortaleza (av. Pessoa Anta, 287, Praia de Iracema)
- Mais informações: @caixaculturalfortaleza e no site da Caixa Cultural
Confira a programação
Domingo, 16
- 14 horas - Exibição dos filmes “A chuva no meu jardim” (2015), “História das imagens aleatórias” (2025) e “Se hace camino al andar” (2022)
- 15h30 - Exibição do filme “Diário de Sintra” (2007)
- 17 horas - Debate: Conversa com Paula Gaitán e Pedro Diógenes
Terça, 18
- 16 horas – Exibição dos filmes “Azul” (1998) e “Agreste” (2010)
- 18 horas - Exibição do filme “Uaka” (1988)
Quarta, 19
- 14 horas - Exibição dos filmes “Steps” (2021), “Espaços invisíveis” (2018), “Let's dance” (2021) e “Monsanto” (2008)
- 17 horas - Exibição do filme “Exilados do vulcão” (2013)
Quinta, 20
- 15 horas – Exibição do filme “Diário de Sintra” (2007)
- 18 horas – Exibição dos filmes “Eliane Radigue” (2008) e “LygiaPape” (1991)
Sexta, 21
- 15 horas – Sessão Especial com Acessibilidade do filme “Luz nos trópicos” (2020)
Sábado, 22
- 15 horas - Exibição do filme “Vida” (2020)
- 17h30 - Exibição dos filmes “Ostinato” (2021) e “Agreste” (2010)
Domingo, 23
- 15 horas – Exibição do filme “Uaka” (1988)
- 18 horas – Exibição dos filmes “Kogi” (2009), “Memória da memória” (2013) e “LygiaPape” (1991)