O que move jovens cineastas cearenses? Estudantes dividem perspectivas e desafios de começar a fazer cinema

Seleção de quatro curtas produzidos em escolas e universidades cearenses para a Mostra de Tiradentes destaca importância da produção ligada a formações no Estado

Escrito por
João Gabriel Tréz joao.gabriel@svm.com.br
Esaú Pereira, Marina Hilbert, Nick Sanches e Matheus Monteiro apresentaram curtas realizados em contextos de formação na Mostra de Tiradentes
Legenda: Esaú Pereira, Marina Hilbert, Nick Sanches e Matheus Monteiro apresentaram curtas realizados em contextos de formação na Mostra de Tiradentes
Foto: Acervo pessoal

Na cerimônia de encerramento da 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes, o júri da Mostra Formação — dedicada a curtas produzidos em espaços formativos de todo o País e que, pela primeira vez, teve caráter competitivo — destacou coletivamente a presença da produção do Ceará na seção.

As animações “O Medo Tá Foda”, de Esaú Pereira, e “Poesia no Vinho dos Seus Lábios”, de Matheus Monteiro, ambas da Vila das Artes, e as ficções “sirius não é tão longe”, de Nick Sanches (UFC), e “Do lado de dentro”, de Marina Hilbert (Unifor), representaram um terço dos trabalhos selecionados para a mostra na edição deste ano.

Os quatro filmes foram, ainda, quase metade da representação do Ceará na mostra como um todo, que contou com 10 produções do Estado. A partir do destaque das obras, o Verso conversou com os jovens cineastas para saber quais os desafios, pontos positivos e as perspectivas de futuro na produção em contextos formativos.

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Circulação e trocas

Para Marina, Esaú, Nick e Matheus, a experiência de exibir os curtas na Mostra de Tiradentes — um dos principais eventos do cinema brasileiro contemporâneo — teve aspectos inéditos. Ela, por exemplo, viu pela primeira vez “Do lado de dentro” na telona no evento mineiro.

Já Esaú partilha que foi a primeira vez que viu “O Medo tá Foda” com “público, com reações e coisas do tipo”. Foi, também, a estreia de Matheus acompanhando "Poesia no Vinho dos Seus Lábios" em um evento fora do Ceará.

“O filme tinha muito essa ideia de circular enquanto filme de formação, então já fui me inscrever focando nisso”, explica Esaú. A ida para Tiradentes possibilitou, ainda, “fazer networking, conversar, trocar ideia”.

Filmes foram apresentados em três sessões no evento mineiro; na foto, os cearenses Nick Sanches (de azul, com microfone) e Matheus Monteiro (à direita)
Legenda: Filmes foram apresentados em três sessões no evento mineiro; na foto, os cearenses Nick Sanches (de azul, com microfone) e Matheus Monteiro (à direita)
Foto: Marina Hilbert / Acervo pessoal

As trocas foram também ressaltadas por Nick. “Os debates foram muito ricos para conhecer outras formas de produção de universidades e cursos ao redor do Brasil”, dialoga. “Toda essa experiência é muito rica para a gente entender o tipo de cinema que está fazendo, que era o tema da mostra desse ano”, segue.

"Que cinema é esse?" foi o norte temático da 28ª Mostra de Tiradentes. Ainda que a busca por uma resposta singular não seja o ponto, é possível compreender que a menção do júri dá pistas de respostas possíveis sobre a produção do Estado, além de evidenciá-la. 

Ivo Lopes Araujo (CE), Sheila Schvarzman (SP) e Eduardo Valente (RJ) foram o trio responsável pela valoração das obras da Formação, premiando o curta baiano “Desconstruindo Lene”, de Guilherme Maia, e compartilhando “admiração” pela “integralidade” da produção do Ceará.

“Gostaríamos de notar a maneira como se destacou dentro do conjunto dos filmes selecionados para essa mostra a produção audiovisual em contexto formativo acadêmico do Estado do Ceará, presente em quatro curtas (...), sendo todos obras que nos instigaram. Essa produção pujante demonstra um ambiente coletivo local de enorme vibração que promete assegurar um lugar futuro de relevância audiovisual daquele estado”
Sheila Schvarzman
membro do júri Formação

“Houve essa percepção de ‘estou fazendo parte da história do cinema cearense!’. Estava ali com outras pessoas do Ceará, sendo elogiados pelo júri por fazer o Estado ter uma presença forte em um festival tão prestigiado”, celebra Matheus.

Desafios, do tempo à pandemia

As celebrações e os reconhecimentos surgem como frutos de processos que, naturalmente, foram desafiadores para os realizadores. Contextos específicos para concretizar uma produção e outros gerais marcaram as etapas das obras. 

Primeiro curta “oficial” feito por Marina, “Do lado de dentro” foi atravessado pela pandemia. “Ele foi feito em 2022, mas o roteiro está comigo há muito tempo, desde que comecei aulas disso na faculdade”, contextualiza.

Marina Hilbert dirigiu 'Do lado de dentro' durante projeto do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade de Fortaleza (Unifor)
Legenda: Marina Hilbert dirigiu 'Do lado de dentro' durante projeto do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade de Fortaleza (Unifor)
Foto: Divulgação

A diretora começou o curso na Unifor em 2020, iniciando o processo acadêmico de forma virtual e distanciada. “Tive aula on-line por mais de um ano e foi muito difícil essa questão da prática, mas tive muita coisa teórica nessa questão de roteiro”, relembra.

Esaú, que já havia dirigido e trabalhado em animações e outros filmes antes, também entrou também em 2020 na 5ª turma do Curso de Realização em Audiovisual, da Vila das Artes, equipamento cultural da Prefeitura de Fortaleza.

Apesar das dificuldades do período, o plano continuou o mesmo: terminar a formação na escola. Apesar de geralmente os trabalhos de conclusão do curso serem a produção de curtas inteiros, Esaú se dedicou especificamente a aprofundar o aprendizado de escrita de roteiros.

Roteiro da animação 'O Medo tá Foda', de Esaú Pereira, foi o TCC do diretor na 5ª turma de audiovisual da Vila das Artes
Legenda: Roteiro da animação 'O Medo tá Foda', de Esaú Pereira, foi o TCC do diretor na 5ª turma de audiovisual da Vila das Artes
Foto: Carlos Junior / Divulgação

A concretização de “O Medo tá Foda” ocorreu depois. “Peguei o roteiro, fiz uma terceira versão e mandamos pro Edital de Cinema e Vídeo em 2021. A gente ganhou e fez”, resume, se referindo, com o plural, à produtora de animação cearense Studio Zonzo.

Também produzido na Vila das Artes, o curta de Matheus Monteiro foi concretizado em outra formação da escola pública municipal: um curso voltado especificamente à animação, criado em 2023. 

Neste contexto, desafios específicos se deram para a turma de estreia da formação. “O tempo é o maior desafio para qualquer pessoa do audiovisual, mas no contexto formativo definitivamente é o maior”, considera o realizador.

De quatro meses inicialmente previstos para a produção do curta de conclusão de curso, o prazo foi estendido para cinco. “É um ritmo muito apressado, temos que dosar diferentes temporalidades dentro dos processos de criação para tudo dar tempo”, aponta. 

Ainda que não tenha sido produzido atrelado a uma cadeira universitária, “sirius não é tão longe” é descrito por Nick como “feito de forma bem universitária”. 

“É lógico que fazer filme em universitário tem suas dificuldades: o baixo recurso, a falta de verba, a escassez de equipamento, mas isso tudo faz com que a gente crie contatos, conheça pessoas, consiga equipamentos e possa realizar”, considera.

“É muito gratificante, pra mim, ver que um filme que nasce dentro da universidade, feito inteiramente por estudantes, foi recebido em vários festivais nacionalmente”, reconhece. 

No aprendizado, errar é possível

Formações, naturalmente, são espaços de aprendizado. Essa essência, no entanto, é ressaltada pelos jovens realizadores a partir do entendimento de que o erro, naquele contexto, é não só permitido, mas esperado e ainda ajuda a aplacar ansiedades, por exemplo.

“No começo, senti que botava muita pressão em mim mesma, que tinha que fazer o ‘filme perfeito’, tinha muitas crises de ansiedade”, partilha Marina. O curta dela foi feito no contexto do Cine Experiência Lab, iniciativa de Laboratórios de Desenvolvimento de Projetos da Unifor.

“Quando cheguei no semestre para dirigir e tive contato com elenco, comecei a me sentir um pouco mais à vontade, senti que eu podia errar”, destaca. A sensação é ecoada por Matheus.

'Poesia no Vinho De Seus Lábios', de Matheus Monteiro, foi fruto da participação do diretor na 1ª Turma de Realização em Animação da Vila das Artes
Legenda: “Poesia no Vinho De Seus Lábios”, de Matheus Monteiro, foi fruto da participação do diretor na 1ª Turma de Realização em Animação da Vila das Artes
Foto: Divulgação

“Todo filme é um aprendizado, mas esse contexto de que aquilo ainda é um estudo, um treino, um desenvolver de habilidades e que estava tudo bem errar e consertar o frame no dia seguinte, ajudou também a aguentar as pontas das exigências particulares do projeto”, afirma.

O realizador destaca o apoio “de vital importância” por parte da Vila na experiência do curso de animação, da oferta de bolsas à atenção da equipe da escola. “Um grande ponto positivo nesse tipo de contexto é o apoio e cuidado de um orientador que ajude a guiar o processo”, acrescenta, citando a parceria com o animador Levi Magalhães.

'sirius não é tão longe', de Nick Sanches, foi produzido no escopo do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará
Legenda: 'sirius não é tão longe', de Nick Sanches, foi produzido no escopo do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará
Foto: Divulgação

Se o tempo limitado foi uma questão para Matheus, Nick partilha que, apesar do tempo corrido de gravações e montagem — que duraram poucos dias —, houve espaço em “sirius” para explorar e testar na pós-produção

“Curta-metragem é uma experimentação e, no âmbito formativo, a gente consegue testar mais ainda. A etapa de mixagem de som demorou semanas. Fazer o filme nesse contexto fez com que a gente pudesse experimentar”, reforça. 

Perspectivas positivas na criação e apoio

A Mostra de Tiradentes marca a abertura do calendário de eventos de audiovisual do País. “Por isso, geralmente filmes que vão para lá vão para mais festivais. Fico ansioso para saber onde o ‘sirius’ pode ir ainda, a repercussão e os frutos que a gente vai colher pós-Tiradentes”, antevê Nick.

“Fico muito feliz em fazer parte desse momento do cinema cearense com um curta-metragem. Há muito longa sendo feito e premiado, mas há também muitos curtas sendo feitos e premiados”
Nick Sanches
realizador

Além dos impactos para a circulação das obras, a mostra ainda promove debates ligados a políticas públicas e modos de fazer da linguagem.

Essa multiplicidade é levada em conta nas avaliações que os realizadores partilham sobre o panorama geral do audiovisual no Ceará e no Brasil, indo da relevância de editais, ao espaços para novos diretores e produtoras e aos cenários positivos que têm marcado essas produções nos últimos meses. 

“A gente está vendo novas produtoras ascendendo e tendo mais oportunidades. Há uma permissão, ainda mais com a vinda de políticas públicas como (as leis) Aldir Blanc e Paulo Gustavo”, avalia Esaú.

O diretor, por exemplo, irá produzir a animação “Operação Bila Cocão”, estreia em longas dele, a partir de aprovação na LPG. “A ideia de contemplar novos realizadores está sendo muito importante para capacitar pessoas e tornar esse local mais acessível e com novos olhares”, celebra.

Nick também foi contemplado pela lei, tendo gravado o curta “Black Maria”, o primeiro “com orçamento”, com recursos da LPG. “Estar na universidade e ser contemplado por um edital mostra que as leis de incentivo estão chegando a vários lugares. Bate muito essa (ansiedade) de saber onde o filme pode chegar agora”, divide.

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“Com as leis de incentivo, quanto mais o mercado cearense se movimenta, mais oportunidade há tanto para cumprir funções em outros filmes, quanto para realizar os nossos”, sustenta Nick. 

Cada movimento citado, enfim, leva a mais movimentações da cadeia audiovisual que incluem, também, a exibição. “A gente está ganhando um espaço maior no restante do Brasil, a galera está começando a olhar para o cinema cearense, para outros estilos, diretores e formas de fazer cinema”, avança Marina.

O recorde de longas do Ceará que estrearam comercialmente em 2024 — e a previsão de que o número pode ser batido em 2025 — reforçam a avaliação da cineasta, ecoada por Matheus.

“Como profissional do audiovisual, há essa sensação de ‘é possível que mais pessoas assistam filmes cearenses para além dos espaços dos festivais’. Isso é empolgante, mas também me faz pensar o quão urgente são as políticas públicas. Me empolgam os locais de chegada, mas me interessa muito entender como continuaremos. Meu filme existiu porque a escola conseguiu investimentos”
Matheus Monteiro
realizador

O balanço geral da edição de Tiradentes de 2025 feito pela coordenadora geral Raquel Hallak sublinhou a importância não só do reconhecimento dessa produção, mas do fomento a ela.

“A Mostra Formação passou a ser competitiva (neste ano) exatamente pra gente falar ‘olha, esses filmes estão nascendo dentro das escolas, de universidades’. A gente não pode deixar que não tenha espaço no Brasil para exibição (deles) de uma forma mais pública, dando destaque ao investimento na área de formação. A formação é fundamental no fomento da indústria”, atestou.

* O repórter viajou a convite da 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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