Relação do cinema cearense com teatro é destaque na Mostra de Tiradentes
Seleção de "Resumo da Ópera", filme feito pelos grupos teatrais No Barraco da Constância Tem! e Teatro Máquina com a produtora Marrevolto, abre espaço para discutir aberturas de criação no Ceará
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Dois filmes cearenses, produzidos com recursos limitados e de maneira independente, criados a partir das fricções possíveis entre o audiovisual e o teatral, concretizados via parcerias entre grupos de teatro cearenses e a produtora Marrevolto Filmes e, finalmente, selecionados para a Mostra de Cinema de Tiradentes em diferentes anos.
Com variados pontos de aproximação, “Resumo da Ópera” — de Breno Lacerda e Honório Félix, que compõe a programação do evento em 2025 — e “Inferninho” — selecionado na mostra de 2019 e dirigido por Guto Parente e Pedro Diógenes — são exemplos distintos de um movimento irmanado: a “relação fértil” da produção cinematográfica do Estado com o teatro.
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"Teatro como ponto de partida"
A definição de "fertilidade" é posta por Francis Vogner dos Reis, coordenador curatorial do festival mineiro. “É uma coisa que não é de agora e que o cinema cearense tem demonstrado cada vez mais: não só uma afinação na relação entre essas duas linguagens, mas uma diversificação”, ressalta.
“‘Inferninho’ e ‘Resumo da Ópera’ não são filmes parecidos. Eles têm o teatro como ponto de partida, mas o modo como lidam com o espaço, com a própria ficção, é muito distinto”, segue o curador.
Apesar de ambos terem a produtora cearense Marrevolto Filmes como ponto importante para a realização, os processos de ligação dela com os projetos tiveram percursos específicos.
É como explicam o cineasta Pedro Diógenes e a produtora Caroline Louise: “Cada filme tem seu próprio caminho e cada parceria, sua própria história, mas sempre possui como base a admiração aos grupos de teatro parceiros”.
União cinema e teatro desde o início
No caso de “Inferninho”, foi com o Grupo Bagaceira de Teatro. Em um processo criativo do coletivo, um texto criado inicialmente para ser um experimento cênico pontual acabou se tornando a semente do projeto do longa.
Rafael Martins, integrante do Bagaceira e roteirista do longa, explica que, diante do “desejo de um dia voltar para esse trabalho”, o grupo se inscreveu e foi selecionado para a primeira edição do Laboratório de Roteiro do Porto Iracema das Artes, em 2013.
“Na época, a categoria que tinha, ao invés de cinema, era de escrita para séries de TV, porque foi na época que a Dilma assinou aquela lei — tudo é política, né? — da TV (lei 12.485/11, que estabeleceu cota para conteúdo nacional na programação de TVs pagas)”, contextualiza.
Naquele cenário, o Bagaceira se uniu ao coletivo cearense Alumbramento, então ainda em atividade, para desenvolver um roteiro. “A gente participou do laboratório de um jeito muito diferente das outras equipes, porque a gente já tinha o elenco com a gente”, explica Rafael, se referindo aos próprios membros do grupo teatral.
No processo, os parceiros decidiram apostar na produção de um filme ao invés de uma série de TV, que dava menos recursos. “A parceria criativa com o Bagaceira no ‘Inferninho’ seguiu por todo o processo de realização, desde o nascimento da ideia e prosseguindo pela escrita do roteiro, produção e finalização do filme”, resumem Caroline e Pedro.
A Alumbramento "se fragmentou" durante o processo, como define Rafael, mas as mesmas pessoas fundaram as produtoras Marrevolto e Tardo, que coproduziram "Inferninho" com o Bagaceira.
Do palcos às telas
“Já ‘Resumo da Ópera' chegou para a Marrevolto após a filmagem, quando nos foi apresentado um primeiro corte da montagem”, seguem, no qual "era possível ver a potência, força e inventividade do filme e do seu processo de realização". Quem apresentou, já em 2024, foram os coletivos No barraco da Constância tem! e Teatro Máquina.
A semente do longa, no entanto, surgiu primeiro em 2020, quando eles iniciaram uma pesquisa sobre romantismo brasileiro. “Essa investigação despertou o desejo de realizar um espectáculo coproduzido pelos dois grupos, que se concretizou no ano seguinte”, explicam Breno e Honório, que assinam a direção do longa.
Essa concretização se deu mediante aprovação em 2021 de um projeto, na Lei Aldir Blanc (LAB), “destinado exclusivamente à montagem de um espetáculo a ser produzido, ensaiado e estreado no Theatro José de Alencar”.
Naquele contexto, os impactos da pandemia ainda moldavam as possibilidades de criação artística. Os encontros começaram virtuais até as primeiras flexibilizações permitirem que os dois coletivos pudessem se encontrar no centenário e importante equipamento cultural cearense.
“O que não se previa, entretanto, era que, paralelamente à montagem do espetáculo, também nos dedicaríamos à produção de um longa-metragem”, seguem os cineastas. A iniciativa de desdobrá-la do teatro ao cinema ocorreu, explicam os dois, porque a montagem inicial teria “vida curta” por conta de limitações de circulação daquele contexto.
O espetáculo, “Ning”, foi realizado e estreou a partir dos recursos da LAB. O longa, porém, foi produzido apenas com recursos “reduzidos” dos próprios grupos. Não houve, por exemplo, captação de som direto e, nas palavras dos diretores, “deslocamentos” ocorridos no período de ensaios no teatro foram estabelecendo a fotografia, o roteiro, o figurino e os personagens, por exemplo.
“O material ficou guardado até 2024, quando propomos à Marrevolto que ela fosse coprodutora desta empreitada e estivesse com a gente nessa pós-produção. Assim, começamos a trabalhar na finalização do longa, que envolveu montagem, dublagem, edição de som, trilha sonora original, correção de cor”
Teatro-cinema, cinema-teatro
Tanto para os envolvidos em “Inferninho”, quanto para aqueles ligados a “Resumo da Ópera”, as produções buscaram relações de soma e fricção entre cinema e teatro. “Um dos cuidados dos meninos (Guto Parente e Pedro Diógenes) foi exatamente nesse diálogo, que o cinema não suprimisse a teatralidade e vice-versa”, atesta Rafael Martins.
Já Honório e Breno reforçam: “O filme não é uma adaptação do espetáculo. Ambos os trabalhos se correspondem, sim, mas são completamente diferentes em termos de composição, de narrativa e de universo ficcional”.
As formas de estabelecer essas relações são, no entanto, específicas em cada processo, como compreende o curador Francis Vogner dos Reis: “Existe uma diferença entre a teatralidade do ‘Inferninho’ e a do ‘Resumo da Ópera’”, sublinha.
A produção de 2019, elabora, “é devedora das tradições do cinema com o teatro que não são de hoje”: da teatralidade do cinema silencioso dos anos 1920, o tableau e o gosto pelo artifício a nomes do cinema moderno como Rainer Werner Fassbinder e Derek Jarman, chegando à produção moderna brasileira, são inúmeras as referências citadas por Francis.
“Ele está perfeitamente dentro desse diálogo estabelecido do cinema como arte da imagem com o teatro como arte da cena”, sustenta o curador. Já em “Resumo da Ópera”, ele vê a “força do teatro” com mais intensidade. “Quem está negociando ali é o cinema, tentando encontrar, numa dinâmica teatral, uma imagem”, correlaciona,
“Muito claramente o teatro é a força motriz do filme. Ele em nenhum momento tenta soar mais ‘cinematográfico’ e menos teatral. É o teatro que força a presença no cinema enquanto construção de imagens. Esse limite é menos negociado que em ‘Inferninho’, e não estou querendo criar hierarquia entre ambos. São filmes de naturezas muito diferentes, mas que nos mostram as possibilidades, os vetores diferentes da relação cinema e teatro”
Incentivo a outros modos de fazer
“O encontro criativo de linguagens resulta em processos e obras que ajudam a refrescar e alimentar o cinema brasileiro”, defendem Caroline e Pedro. Na Marrevolto Filmes, eles reforçam, isso está presente “em boa parte dos trabalhos” — incluindo citação a "Centro Ilusão", que parte da música de Fortaleza e também será exibido neste ano em Tiradentes.
Se nos processos criativos a aproximação entre linguagens é comum e bem-vinda, instâncias mais burocráticas como editais e festivais, na maioria das vezes, estabelecem critérios e fronteiras específicas entre elas. “Nem sempre os editais estão abertos a obras que fujam do tradicional, pois seguem fórmulas e padrões que impossibilitam uma experimentação maior entre as linguagens”, reconhecem.
“Não existe fronteira: onde é que termina a literatura e começa a dramaturgia? Dramaturgia é teatro ou não é? É escrita? Vai-se atrás de tentar colocar caixinhas, ‘isso ou aquilo’, mas a gente já faz outra coisa porque é o lugar do artista, arranhar a percepção da sociedade e vislumbrar um futuro que nunca é só estético, é poético, político”, reflete Rafael.
Em diálogo, Honório e Breno defendem que a separação de linguagens “não é, por si só, algo necessariamente bom ou ruim”. “Quando se trata de políticas públicas, essa distinção muitas vezes contribui para a preservação das singularidades de cada área do fazer artístico. Além disso, em editais públicos, categorias específicas dentro de cada linguagem ajudam a garantir um equilíbrio entre diferentes segmentos”, iniciam.
Para além dessa garantia, porém, a dupla defende: "É fundamental incentivar a existência de outros modos de fazer que dinamizem o que já está estabelecido, identificando lacunas ainda não percebidas e demandas ocultas que projetos experimentais podem contemplar".
“O edital vai ter sempre que correr atrás do que a gente está fazendo e, no final das contas, muitas dessas questões acabam escondendo o que é principal: pouca verba para a cultura em todas as linguagens, praticamente”, resume Rafael.
Os membros dos dois grupos defendem, no entanto, uma busca por aberturas maiores em instrumentos do tipo. “Editais deveriam pensar nisso, mas sem que isso seja um imperativo”, aponta o dramaturgo do Bagaceira.
“‘Resumo da Ópera’ é um exemplo dessa necessidade, pois jamais existiria enquanto filme caso sua produção tivesse dependido de algum edital de produção e finalização de longa-metragem. O primeiro empecilho seria a ausência do roteiro na etapa de inscrição”, exemplificam Honório e Breno.
“A exigência de um roteiro pronto para concorrer nessa categoria de produção e finalização responde a uma necessidade concreta de roteiristas profissionais no Estado, e deve continuar sendo uma exigência. No entanto, é urgente que se estabeleçam outras possibilidades que contemplem projetos com formas de produção distintas”
No Ceará, cinema dialoga com outras artes
“O cinema cearense não é o único do Brasil que faz isso, mas no conjunto de filmes dos últimos anos é muito evidente que ele não tem pudor na relação com modos de expressão de outras artes. O cinema cearense, especialmente de Fortaleza, sempre teve essa liberdade na relação com outras expressões artísticas”, aponta Francis.
O curador estabelece, de partida, a relação com as artes visuais e a videoarte, forte nos anos 2000 e início dos anos 2010, e o “trabalho fértil com sonoridades e músicas” — presente em obras como “Medo do Escuro”, de Ivo Lopes Araújo, e em produções de cearenses ou pessoas que passaram pelo estado como Dellani Lima, Luiz Pretti e Uirá dos Reis.
Ele cita, ainda, o diretor e roteirista Leonardo Mouramateus e “a relação dele com a dança e a coreografia, mas também com o romance”, além da artista visual e cineasta Luisa Marques “na relação com as artes visuais e a performance”.
“Essa relação com outras artes, de todo o cinema brasileiro, talvez o cinema cearense é o que tenha levado isso mais a fundo”, arrisca o curador. “Ele tem adquirido uma visibilidade nacional porque é difícil defini-lo por uma identidade única”, sustenta.