Já pensou em ler com os ouvidos? Atores narram audiolivros de obras literárias icônicas
Com quase dois anos no Brasil, Audible contabiliza no acervo milhares de obras narradas e investe em grandes vozes para dar vida a histórias emblemáticas da literatura
A gente não lê só com os olhos. Lemos com o corpo todo – até com os ouvidos. O mercado de audiolivros está aí para comprovar a força dessa modalidade de imersão. E faz isso com ousadia. Da alta voltagem política de “1984”, romance de George Orwell, à análise precisa da sociedade de “Orgulho e Preconceito”, de Jane Austen, tudo ganha novo contorno quando palavras saltam das páginas e chegam à audição.
“Uma parte do nosso trabalho como ator é fazer a palavra pular. Audiolivros também fazem isso”, ilustra Denise Fraga, um dos nomes consagrados da dramaturgia a dar voz a personagens icônicos da literatura.
Sem nunca ter tido contato com a obra-prima de Austen, a artista se lançou à missão de narrar toda a extensão do livro enquanto redescobria, no caminho, o prazer de contar histórias em voz alta, ao pé do ouvido. Para Denise, o trabalho de Jane é surpreendente por se tratar de uma mulher tecendo comentários sociais ácidos em pleno século XVIII.
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O resultado são 12 horas e 30 minutos de profundo mergulho em áudio. “Sempre gostei de ser atriz de voz. Uma das coisas que mais aprecio na minha profissão é quando estamos na mesa lendo um texto antes de montar uma peça ou ir para um set. É uma hora preciosa porque é quando você borda o teu instrumento vocal – a famosa inflexão, acertar no tom”.
Não que os desafios sejam menores nesse processo. O amor de Jane Austen por orações subordinadas exigiu fôlego e disposição de Fraga para ler sentenças gigantes – nas quais o sujeito da frase muitas vezes se perdia no meio do turbilhão de pensamentos da autora. Ao leitor-ouvinte, contudo, fica o deleite de escutar uma voz famosa e especializada contornar as diferentes paisagens e sentimentos expressos por Elizabeth Bennet e Mr. Darcy.
“Acho que o audiolivro tem algo especial porque você ter um ator narrando aquilo é, de alguma forma, presenciar esse mesmo ator dizendo, ‘olha o que essa mulher fez’, validando a importância da obra. E alguém te contar uma história assim, no ouvido, é como se fosse uma mãozinha te pegando, sua mãe contando pra você dormir. No audiolivro a gente ganha uma coisa a mais: um ator respirando no teu ouvido e te fazendo ver o que ele viu”.
Narrar e dirigir audiolivros
Detalhes sobre esse modo tão curioso e interessante de consumir literatura foram conferidos de perto pela equipe do Diário do Nordeste durante a Bienal do Livro do Rio de Janeiro. O evento, ocorrido de 13 a 22 de junho na capital fluminense, sediou o estande da Audible, plataforma de streaming de audiobooks da Amazon.
Durante os dias de Bienal, a empresa reuniu um generoso time de profissionais para pensar os mecanismos de dar voz a histórias emblemáticas da literatura. Nesse movimento, além de Denise, encontramos também Milhem Cortaz, Fabiula Nascimento e Mauro Ramos.
Famoso por dublar personagens como Shrek, Pumba, Zeca Urubu e James P. Sullivan, Mauro dirigiu a narração de “Orgulho e Preconceito” e participou de várias outras. Define o ofício como algo de “prazer enorme”.
“Solucionamos as dificuldades que aparecem no momento da gravação de forma tão natural que a coisa se torna muito prazerosa. Já narrei mais de 40 livros, e os mais difíceis para mim foram ‘O Senhor dos Anéis’, ‘O Hobbit’ e ‘Silmarillion’ [obras de J.R.R. Tolkien] porque eu nunca tinha falado élfico, e isso é sempre uma grande surpresa”, dimensiona.
Ele destaca que dirigir a narração de um audiolivro envolve, entre outros passos, fazer comentários sobre os autores, sobre a história e até mesmo a respeito dos personagens, numa dinâmica de real aprofundamento. Ao mesmo tempo, distingue: enquanto narrar é tentar passar ao leitor-ouvinte um caminho para a imaginação, dirigir uma narração é desenvolver sobretudo afinidade entre diretor e narrador. Tudo faz diferença no produto final.
“O mercado de audiolivros tem uma repercussão muito boa. E vai atingir mais pessoas, tenho certeza, porque é mais fácil. É como o rádio: antigamente, o pessoal escutava principalmente pela manhã. O mesmo caminho tem os audiolivros, cada passo é um passo”.
O alcance das histórias em áudio
Trata-se mesmo de um crescimento voraz. Na Audible, há 750 mil audiolivros disponíveis em várias línguas – 7.800 apenas em português. Para além das narrações tradicionais, existe também a modalidade “Original”, quando a contação das histórias se torna ainda mais imersiva devido ao incremento de diferentes vozes, efeitos sonoros e técnicas. Nessa categoria, já são 67 produzidos pela empresa.
“No começo, o mercado de audiolivros era muito incipiente. Então trabalhamos durante um ano e meio, lançamos um catálogo em português com cinco mil títulos, e seguimos desenvolvendo esse catálogo na mesma velocidade anterior”, dimensiona Adriana Alcântara, diretora-geral da Audible Brasil.
Segundo ela, a corporação trabalha com mais de 20 estúdios de gravação de audiolivros em vários Estados brasileiros. Eles empreendem projetos de forma recorrente e consecutiva. O resultado, além do aumento expressivo de conteúdos, é a bem-vinda movimentação da economia criativa voltada para esse ramo.
profissionais da voz, entre locutores, atores, narradores e dubladores contam histórias das mais variadas por meio do áudio.
“Continuamos nos preocupando em ampliar esse conhecimento dentro da cadeia produtiva para que possamos ter cada vez mais o áudio como oportunidade adicional de trabalho. E também como experiência de oferecer vozes diversificadas e isso fazer parte tanto das pessoas que consomem audiolivros quanto de uma economia que pode crescer em todos os sentidos”, explica Alcântara, diretora-geral.
A perspectiva, não à toa, é das mais otimistas, haja vista o que já acontece: diferentes gêneros contemplados nessa mídia – de documentários e ficção a títulos de autodesenvolvimento – e uma longa estrada a se percorrer com ainda mais criatividade. “Para a gente é muito claro que o áudio está apenas começando. Ele veio para ficar, e estamos nessa construção”.
Milhem Cortaz e Fabiula Nascimento que o digam. Igualmente participantes da programação da Audible na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, os atores ilustraram como é fazer parte desse novo momento histórico de consumo literário no país. Milhem partiu da perspectiva de ser a voz do “Grande Irmão” no audiolivro de “1984”, de George Orwell.
“Meu pai me deu esse livro de aniversário, e é engraçado porque quando li, com 14 anos, o que me bateu mais forte foi o romance proibido entre Winston e Júlia a partir de um regime totalitário que não deixa eles viverem”, diz. “Passam-se 38 anos, leio de novo a obra para fazer o audiobook, e me encontro com uma leitura muito mais política que amorosa. Fico pensando, então, em como a literatura é transformadora…”.
Ao também frisar que a arte não impõe, mas sugere pensamentos, o ator incentiva que mais pessoas se aproximem das letras, quer elas estejam diretamente no papel, quer cheguem por meio de uma escuta ativa. “Nunca fiz dublagem, apenas algumas narrações para longas-metragens. E sempre, nesse processo, acontece de haver um olhar em cima de cada história, sempre uma observação sobre as atitudes humanas. É tudo muito rico”.
Fabiula Nascimento, por sua vez, integrante do time de narradores do audiolivro “T-Zombii 2: O Livro dos Vivos”, pondera sobre as redescobertas pessoais quando diante de um projeto em que letras e ouvidos bailam juntos. Para ela, trata-se de adentrar novos espaços. Recuperar um “eu” menina que se acostumou a ouvir histórias da avó desde muito cedo.
“Ela contava causos do tempo dela, de 1920, cheios de lobisomens, por exemplo. Uma história era exatamente assim: um homem descobriu quem era o lobisomem porque essa criatura comeu uma criança que estava envolta numa manta vermelha, e no dia seguinte ao acontecido um vizinho pediu um copo de açúcar e levantou uma suspeita. Algo assim, meio desconexo, mas com muita imaginação. Isso foi me dito aos 8 anos e eu nunca mais esqueci”.
Por isso mesmo, celebra a força dos bons contadores de histórias e de um suporte que estimule esse tipo de vivência: “A experiência do audiolivro sempre me apresenta um universo novo, me aguça mais a criatividade, me faz querer ser melhor na voz. Narrar um livro nesse formato é um caminho sem volta pra mim porque a gente coloca os próprios sentimentos ali. Acho que temos esse poder, de elaborar melhor. E isso me instiga”.
*O repórter viajou a convite da Audible Brasil