Conheça Anne Carson, escritora ensaísta que reinventa o trágico e experimenta com fragmentos
Autora de "Autobiografia do Vermelho" completa 75 anos neste sábado (21), com obras que passeiam entre poesia, ensaio e mito

Por que celebrar Anne Carson? A célebre poeta canadense, professora de Clássicos, completa 75 anos neste sábado (21). Deslizando entre ensaio, tradução crítica e poesia ao longo de sua carreira, ela traz para o leitor contemporâneo aquilo que há no entremeio entre o sublime e o monstruoso. Em sua escrita, brinca no limiar da falha das palavras e da linguagem.
Durante a leitura de seus ensaios, textos e poesias, os leitores ganham a capacidade de ver aquilo que se esconde por trás do véu que recobre as coisas, assim afirma Rafael Zacca, pesquisador da obra de Carson, ao Diário do Nordeste.
“Carson é sobretudo uma poeta do espanto. Ela tem um espanto permanente com a linguagem. A sensação é como se ela olhasse para a vida, que tivesse coberta por um monte de véus, como se fosse a nossa linguagem. O que ela faz quando escreve é tentar levantar esses véus e tentar ver o que se esconde por trás deles”.
Nesse trânsito entre uma língua e outra, o véu da linguagem se levanta por um segundo. E nesse breve e fugidio instante, aquilo que está por trás aparece e desaparece. Como uma pequena faísca de realidade.
Assim, ler Anne Carson é estar em contato com esses pequenos relâmpagos transformadores, de epifanias que aparecem, com traduções que de alguma maneira transitam entre os véus que recobrem o mundo.
Veja também
Pluralidade da escrita e obra de Carson
Ao tratar sobre os temas mais diversos, ela vai desafiando o leitor a se exercitar mentalmente para alcançar uma compreensão desejável, como certa vez já escreveu a crítica literária Vilam Arêas. Carson escreve sobre Albertine e o protagonista de “Em Busca do Tempo Perdido”; sobre Herácles e Gerião, Helena de Troia e Marilyn Monroe; Aristóteles e Heráclito.
Dentre seus livros publicados no Brasil, estão títulos como:
- Autobiografia do Vermelho: Um romance em versos
- Sobre aquilo em que eu mais penso: Ensaios
- Falas Curtas
- A beleza do marido: Um ensaio ficcional em 29 tangos
- Eros, o doce-amargo: Um ensaio
- O método Albertine
Suas obras têm caráter completamente diverso e não podem ser delimitadas em categorias fechadas. Ela brinca com a poética do fragmento, mergulhando sem amarras na aventura de pensar.
Como Marília Garcia, que realiza o gesto de pensar com as mãos, Carson vai escavando fragmentos, colecionando vezes em que um nome é citado em uma obra, investigando a maneira como um personagem reage a outro. Tudo que acontece em sua escrita é impelido por alguma outra coisa.
“Ela faz um gesto manual com as palavras. Ela tem muitos livros em que a materialidade do livro é importante, onde a colagem faz parte. Ela vai conseguindo colocar lado a lado elementos da cultura clássica com elementos da cultura contemporânea de maneira a produzir um choque. Como se olhasse para o antigo a partir de um estranhamento de contato com novo”, afirma Rafael.
Tradução de Anne Carson para o Brasil
Uma das responsáveis por apresentar Anne Carson aos leitores brasileiros foi a escritora e tradutora Sofia Nestrovski. Ao lado de Danilo Hora, ela organizou o livro "Sobre aquilo em que eu mais penso", publicado pela Editora 34, que concentra diversos ensaios da autora canadense.
Para lidar com a complexidade dos textos, Sofia precisou primeiro entender como a obra de Carson se articula: “Um livro conversa com outro, um trecho com outro trecho”, explica. Mapear essas conexões foi, então, vital para a compreensão do vocabulário e das referências da escritora.
Nesse processo de tradução, Sofia mergulhou nas fontes mencionadas por Carson: autores gregos, escritores do século XIX e nomes como Virginia Woolf. Nesse diálogo polifônico, a escritora elabora um texto em que nada é casual.
"O maior desafio é conseguir traduzir com atenção suficiente para perceber que não tem nenhuma palavra a toa nos textos dela. Cada palavrinha escolhida com muita atenção para que o texto seja uma espécie de maquininha pensante", declara Sofia.
Uma vez que o texto vai ao mundo, ele reverbera no público. Sofia celebra, então, a recepção que os ensaios e a própria escritora têm tido no Brasil. “Isso é o mais incrível de ter traduzido Anne Carson. Esses textos fazem sentido para muita gente e por motivos inesperados.”
‘Autobiografia do Vermelho’ nos palcos do teatro
Essa reverberação foi tamanha no artista e psicanalista Bruno Siniscalchi, que ele decidiu fazer uma adaptação do livro "Autobiografia do Vermelho" para o teatro. A dramaturgia foi criada em parceria com Ismar Tirelli Neto, e a cenografia desenvolvida com Mayana Redin e Carlos Zebulun.
A montagem estreou em 2024, no Centro de Artes da Maré, no Rio de Janeiro, sendo a primeira vez que o espaço, voltado à dança, acolheu um trabalho cênico. Conforme Bruno, essa também foi a primeira adaptação da obra ao teatro no mundo.
Para Bruno, o interesse em Carson surgiu justamente por essa fluidez entre os gêneros. “É difícil definir se é ensaio, poesia, romance, teoria. Ela opera nos limites entre as linguagens. Isso me atraiu.”
Quando começou a trabalhar na adaptação da obra ao teatro, logo se viu diante de um dos maiores desafios: a resistência do próprio texto em ser transformado em cena. Conseguir superar essa barreira foi uma forma de segunda tradução. A encenação apostou na fragmentação e na incompletude como força dramatúrgica.
“A Carson sustenta a lacuna, o que não é dito. Ela não tenta atualizar o mito, mas escavar o que há de inconsciente nele”, afirma. Como psicanalista, Bruno reconhece nesse movimento uma leitura potente do presente, percebendo, então, algo similar ao dito por Rafael: “Ela oferece uma maneira de reordenar o que está por trás das coisas. É isso que a torna tão contemporânea.”