Don L lança álbum que une rap, MPB e música afro-latina

“CARO Vapor II – Qual a forma de pagamento?” chegou às plataformas digitais nesta segunda-feira (16)

Escrito por
Ana Beatriz Caldas beatriz.caldas@svm.com.br
(Atualizado às 11:10)
Artista é um dos rappers de destaque no cenário nacional
Legenda: Artista é um dos rappers de destaque no cenário nacional
Foto: Bel Gandolfo/Divulgação

Quatro anos após “Roteiro pra Aïnouz (Vol. 2)”, o aguardado novo álbum do rapper Don L, “CARO Vapor II – Qual a forma de pagamento?”, foi lançado nesta segunda-feira (16). Com características já frequentes da obra do artista, como a crítica ao capitalismo tardio e as referências constantes a Fortaleza, cidade onde cresceu e começou a carreira musical, o trabalho inova ao construir uma ponte entre o rap e diferentes sonoridades do Sul Global, como bossa jazz, MPB, baião, funk e amapiano.

Com 15 faixas, o álbum é uma continuação da mixtape “Caro Vapor / Vida e Veneno de Don L” (2013), primeiro trabalho solo de Don após o fim do Costa a Costa. Nasce de uma pesquisa musical ampla, que bebe principalmente da Música Popular Brasileira da segunda metade do século 20 – incluindo movimentos culturais definitivos na música cearense, como o Pessoal do Ceará.

A produção do disco é de Don L e Iuri Rio Branco. O produtor Nave, que trabalhou com Don em RPA2, também participou da produção e assina três das quinze faixas do disco

O disco conta com participações de Fernando Catatau, Alice Caymmi, Alt Niss, Anelis Assumpção, Giovani Cidreira e Luiza Lian, entre outros. Cada uma a seu modo, as colaborações ajudam a costurar as conexões entre as diferentes batidas e fases da música brasileira, com referências a artistas como Dorival Caymmi, Itamar Assumpção e Milton Nascimento. 

Um dos destaques do trabalho, porém, vem em forma de sample: a participação de Rodger Rogério na faixa “Iminência Parda”, cantando “Susto”, do álbum “Rodger e Téti do Pessoal do Ceará - Chão Sagrado” (1975).

Em entrevista ao Verso, Don L compartilhou detalhes do processo criativo do novo álbum, comentou sobre a admiração pelo Pessoal do Ceará e resgatou memórias da juventude na capital cearense – cidade que, segundo o artista, está presente em toda a sua obra musical.

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Música com “alma em Fortaleza” 

Novo trabalho chegou às plataformas nesta segunda-feira (16)
Legenda: Novo trabalho chegou às plataformas nesta segunda-feira (16)
Foto: Colagem de Filipi Filippo/Foto de Bel Gandolfo

Na primeira semana de junho, em uma audição fechada para convidados na Capital, Don L recebeu artistas cearenses para apresentar, em primeira mão, as faixas de “Caro Vapor II”. Ao ser questionado sobre o local de gravação do álbum, afirmou: “o álbum foi feito em São Paulo, mas com a alma em Fortaleza”.

Segundo Don L, que viveu na Cidade até o lançamento da mixtape que o projetou nacionalmente, quando mudou para São Paulo, essa não é uma novidade: toda a sua obra está intrinsecamente conectada ao Ceará. “Acho que eu carrego a maresia de Fortal, cara. Não sai de mim. É muito parte da minha alma mesmo”, garante. 

A sétima faixa do álbum, “Saudade do Mar”, é uma das que busca retratar um pouco da ligação afetiva com o litoral que, por anos, foi sua casa, com uma referência direta à musicalidade de Dorival Caymmi, avô da cantora Alice Caymmi, que faz participação na música. 

“Caymmi falava muito de um lugar ali na Bahia que era muito ele, né? E, nas músicas dele, você sente o cheiro de mar, você sente o sal, sente a praia. Parece que você é transportado para aquele lugar”, comenta. “Eu tento transportar as pessoas para a minha saudade, como se elas viessem para cá e sentissem essa brisa da maresia ali”, completa.

Ninguém escuta as minhas músicas – principalmente quem é de São Paulo – e acha que eu sou de São Paulo. A galera fala que tem muita peculiaridade e, na verdade, o meu estilo todo é baseado nisso: o meu flow, a forma que eu uso a língua, tem a ver com o meu sotaque, tem a ver com com o que eu trouxe de Fortal.”
Don L

No álbum, que vai de canções ensolaradas e love songs a rimas mais políticas, sem perder de vista o ponto em comum entre elas – a valorização de batidas genuinamente brasileiras e latino-americanas –, temas como pertencimento e a luta por uma vida digna, seja por meio do amor ou por meio da luta política, traçam um paralelo entre passado e futuro.

Em alguns momentos, Don L olha para o passado, vivido na Praia do Futuro, quando vendia CDs e DVDs piratas para se sustentar e encarava a já intensa desigualdade social da capital cearense.

Em outros, busca novas possibilidades de sonho, como forma de luta coletiva e de “viver e não apenas sobreviver”. Em todos eles, parte da vivência como rapper nordestino em São Paulo para narrar uma experiência de “imigração” dentro do próprio país, sobretudo na música “iMigrante”.

Esse é o quarto trabalho de estúdio do artista
Legenda: Esse é o quarto trabalho de estúdio do artista
Foto: Bel Gandolfo/Divulgação

“A questão é que eu sou um imigrante no mundo”, pontua. “[Antes] era uma afirmação de lugar dentro de Fortaleza mesmo, porque a gente vive num mundo de fronteiras em todo lugar. Tem uma fronteira ali entre a subida do morro e o Mucuripe. Se você desce o Castelo Encantado, os caras fizeram um muro, literalmente”, completa. “Mas quando me torno um ‘imigrante’ aqui em São Paulo, vou percebendo cada vez mais essas fronteiras que existem”.

Além de trazer histórias autobiográficas, o disco também se relaciona com o momento de crise humanitária que o mundo vive, a exemplo da política anti-imigração que vem crescendo ainda mais nos Estados Unidos sob o governo de Donald Trump.

“É um disco que fala o espírito do tempo. É o que o mundo está vivendo: a declaração de fronteiras que sempre existiram, mas que não eram declaradas”, destaca. 

Rodger Rogério, Pessoal do Ceará e o sample como homenagem 

Apesar da proximidade com a cultura cearense, foi só recentemente que Don L se aprofundou no trabalho dos artistas do Pessoal do Ceará. Mas quando DJ Abud, amigo e parceiro musical de Don L, o apresentou à música “Susto”, o impacto foi imediato: emocionado, Don buscou outros discos de Rodger Rogério e decidiu buscar autorização para incluir o sample da música em “Iminência Parda”, oitava faixa do novo disco.

O artista cearense não só autorizou o uso como foi um dos presentes na audição do álbum em Fortaleza. Com um sorriso no rosto, escutou com atenção as quinze faixas do disco, incluindo a que deve colocar seu trabalho sob novos holofotes para o Brasil inteiro.

“O Rodger é um cara especial e eu ainda não o conhecia. Quando ele foi na audição, achei muito massa, porque ele realmente foi disposto a ouvir o disco inteiro”, celebra Don L. O artista conta que “Iminência Parda” reúne, com o apoio do sample de Rodger, histórias autobiográficas e menção à biografia de um amigo poeta de rua que, “por culpa das circunstâncias, acabou entrando no crime”.

“Essa música tem essa parada do Rodger Rogério falando um pouco disso ali – pelo menos na minha interpretação. Quando ele fala ‘que se fechem as contas bancárias,  que se brinque na areia da praia’, ele está falando ali de um sonho que, naquele tempo, ele já estava sentindo desmoronar, né?”, analisa, destacando o contexto de ditadura que o Brasil vivia à época da música.

“Eu me emocionei quando ele disse ‘por que nos importa que se feche a porta? Por esse caminho ninguém quer passar. É muito grande a dor, o sofrimento enorme’. Isso conversou comigo de um jeito muito profundo, porque é isso, a gente vive lutando toda hora para que se abram as portas”
Don L
Artista

Para Don L, incluir uma voz tão importante da música cearense em seu trabalho é uma forma de homenagear Rodger e a arte da terra. O artista destaca, ainda, que esse é o objetivo primordial do sample no rap, mas que o ato nem sempre é entendido como tal.

“A  gente faz como reverência”, ressalta. “[No disco] tinha o sample de um outro artista cearense que infelizmente não liberou o sample pra gente – não o artista, mas os herdeiros, né, que era um sample do Belchior que eu tinha usado, mas infelizmente os herdeiros não quiseram liberar”, lamenta.

Rapper deve trazer novo show a Fortaleza ainda em 2025
Legenda: Rapper deve trazer novo show a Fortaleza ainda em 2025
Foto: Bel Gandolfo/Divulgação

Don L pontua que a cultura do sample, no Brasil, por muito tempo foi considerada uma espécie de “roubo” ou “favor”, mas que foi através do rap que artistas como Jorge Ben e tantos outros da MPB caíram no gosto da juventude nos anos 2000. “O que a galera acha que é a música popular no Brasil, às vezes não é”, lembra. 

“Hoje em dia você vê que em Fortal, por exemplo, tem uma juventude inteira que ama Jorge Ben, ama Belchior, ama Milton Nascimento, ama esses artistas que foram trazidos muitas vezes pelo rap – às vezes diretamente por um sample, e às vezes porque os caras reverenciam mesmo”, explica.

“E a gente tem uma profunda gratidão pela herança da música brasileira que a gente recebeu, só que essa gratidão, muitas vezes, não é recíproca”, completa.

Lançamento em Fortaleza

O primeiro show de lançamento oficial de “CARO Vapor II” já tem data para acontecer: 18 de julho, na Audio, em São Paulo. Mas, segundo Don L, os fãs cearenses não devem esperar muito para conhecer o novo setlist ao vivo, já que um show na Capital deve ocorrer ainda no início do segundo semestre.

“A gente já está negociando um show de lançamento em Fortal. Ainda não tenho a data exatamente, mas até setembro a gente tem um show de lançamento em Fortaleza, sim, com certeza”, garante o artista. “É uma das coisas que são mais importantes para mim, e precisa ser especial”, conclui.

Serviço

Álbum “CARO Vapor II – Qual a forma de pagamento?”
Onde: Disponível em todas as plataformas de streaming
Álbum visual disponível no YouTube

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