Cine Trash: com sessões gratuitas, cineclube de Fortaleza exibe filmes que vão do terror à comédia
Projeto independente é dedicado a filmes trash e ocorre semanalmente no Benfica
Numa mesma sala em Fortaleza, obras que narram a jornada de serial killers, monstros, animais gigantes e bolhas gosmentas assassinas encontram histórias clássicas do cinema brasileiro, como a adaptação “Bonitinha, Mas Ordinária” (1981) e o caricato “Cinderela Baiana” (1988). Em comum, os roteiros simples, efeitos especiais questionáveis e orçamento baixíssimo desses e de outros filmes moldam o cinema trash, estilo cinematográfico que reúne títulos peculiares, que vão do terror à comédia, e que conta com uma legião fiel de fãs.
Há quase três anos, os amantes do subgênero que moram na Capital se encontram periodicamente no Cine Trash, projeto independente dedicado a filmes B idealizado e produzido pelo artesão Hemerson Martins, 34. Realizado em uma das salas da Biblioteca Pública Municipal Dolor Barreira, no Benfica, o cineclube ocorre semanalmente, às sextas-feiras, sempre com exibição gratuita de dois filmes.
A curadoria contempla clássicos do cinema mundial como O Massacre da Serra Elétrica (1974), Evil Dead (1981) e A Hora do Espanto (1985), mas também filmes menos conhecidos que foram alçados ao status de ícone cult, como A Volta dos Tomates Assassinos (1988). Mas mesmo quem prefere outros gêneros costuma ser contemplado na curadoria, explica Hemerson.
“Procuro fazer uma coisa muito aleatória. É um filme de comédia com um de terror, um sci-fi com um de ação. O Cine Trash não se apega só a terror, tem vários gêneros”, destaca.
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Segundo o idealizador, a ideia do projeto surgiu em 2018, quando ele começou a explorar o mundo do cinema trash e decidiu que queria compartilhar as experiências com outros entusiastas do estilo. “Queria juntar uma galera para ficar assistindo, rir junto, se assustar junto”, conta.
Na época, já frequentador assíduo da Dolor Barreira, ele sugeriu à direção do espaço a criação do cineclube, mas, por falta de equipamento adequado, o projeto ficou na gaveta por quase quatro anos. Só em julho de 2022, o artesão conseguiu, por conta própria, adquirir projetor e caixa de som para a exibição dos filmes, e a biblioteca cedeu o espaço.
Com a página do Instagram criada e curadoria inicial feita, a primeira sessão foi realizada – mas, assim como muitos dos filmes que fazem parte do cineclube, não teve apelo junto ao público. Apenas Hemerson e dois amigos compareceram.
“Era muito no comecinho, a página estava começando. Aí pensei: ‘tenho que fazer uma divulgação mais orgânica’. Imprimi algumas folhas com cartazes dos dois filmes que eu ia passar posteriormente e saí colando pelo Benfica”, lembra.
A estratégia deu certo. Já na segunda sessão, realizada duas semanas depois da estreia, mais pessoas compareceram ao cineclube e, pouco tempo depois, o projeto se tornou semanal. “Algumas pessoas que eu nunca tinha visto começaram a frequentar”, completa.
Atualmente, todo o projeto é tocado por Hemerson, que conta com o apoio de alguns amigos na curadoria – e na presença semanal, mesmo quando os títulos são os mais inusitados possíveis. Para manter a magia da experiência coletiva, o idealizador assiste a vários dos filmes pela primeira vez junto com os demais participantes, se baseando em sinopses e trailers para eleger novidades.
Por ter um público nichado e funcionar em um bairro universitário e boêmio, com ampla programação cultural, a plateia do Cine Trash varia bastante. Há dias em que Hemerson e um ou dois amigos compõem o público. Em outros, mais de 30 pessoas de diferentes grupos vão e vêm entre as sessões, muitas vezes após as aulas, trabalho ou antes de ir a bares da região.
Um dos entusiastas do cineclube, o músico Lucas Araújo, 23, conta que gosta de frequentar o programa inclusive nas noites em que são exibidos filmes “ruins” – ou, principalmente, por causa deles. “Filme trash é um filme de terror muito escrachado ou um filme ruim de fato, né? E é basicamente o que passa aqui. Slasher, terror, filmes clássicos brasileiros que são horríveis. Eu acho muito engraçado, muito divertido, e venho também para conhecer filmes novos”, comenta.
Em média, as sessões contam com um público de 10 a 12 pessoas, segundo Hemerson. Os frequentadores mais usuais costumam ir em duplas ou pequenos grupos de amigos. “Depende do filme também. Tem filme que é mais famoso, tem uns que chamam mais”, explica.
Na última sexta-feira do mês, por exemplo, é dia de exibir “medalhões” do cinema. Nesta sexta-feira (30), por exemplo, o Cine Trash exibe dois clássicos: a comédia O Pestinha (1990) e o terror Brinquedo Assassino (1988). A primeira sessão começa às 18h20 (com entrada até às 19h) e a segunda, às 20h (com entrada entre 19h50 e 20h).
“Produzido aos trancos e barrancos”, filmes trash são sinônimo de resistência
A definição do que pode ou não ser considerado um filme trash pode variar de acordo com quem opina. Há veja o estilo como um subgênero do terror e quem, como Hemerson, acredite que a definição vai muito além de um só gênero fílmico. Há quem pense que esse tipo de filme tem como premissa principal entreter, assustar, fazer rir; e também há quem defenda que existe, sim, algo de político no cinema trash.
Isso porque, além do sucesso entre os fãs, o ato de realizar produções simples, com poucos recursos e de forma propositalmente escrachada, também traz um significado simbólico, especialmente em um segmento caro e pouco inclusivo como o cinema.
“A minha opinião é que é uma arte que conseguiu ser terminada. Porque, geralmente, o filme trash é um filme que é produzido aos trancos e barrancos. O diretor às vezes nem sabe o que está fazendo, tira leite de pedra, não tem dinheiro e consegue terminar um filme, consegue fazer uma coisa quase coerente”, opina o fiscal Humberto Meireles, 41, frequentador assíduo do Cine Trash. “Por isso que não tem exatamente um gênero, não é só terror, não é só romance, é um estilo”, completa.
Também entusiasta do Cine Trash, o policial Israel Barreto, 29, acredita que os filmes trash deixam “transparecer essa coisa crua do cinema”, sem a pretensão do realismo. “Não é uma megaprodução, que você fica ‘meu Deus, parece de verdade’. São filmes que você vê mesmo que aquilo ali foi feito por pessoas”, comenta.
Amigo de Hemerson há mais de uma década, ele conta que costuma ir ao cineclube “no escuro, para ser surpreendido”. “Na grande maioria das vezes eu tento só ver qual é, e quase sempre o resultado é muito positivo”, brinca.
Para Barreto, o cineclube ocupa um espaço importante no calendário cultural da Cidade, já que ocorre semanalmente, “faça chuva, faça sol”. “É uma programação cultural gratuita e de qualidade – o que é difícil, a gente encontrar coisas de qualidade sem custo. E também, ele mantém o espaço da biblioteca Dolor Barreira ativo”, pontua.
Frequentador entusiasmado de cineclubes, o autônomo Alexandre Luiz da Silva, 52, também vê nas sessões de filmes trash uma atividade diferente – e importante – para a programação da Capital. “É um cinema que não está nas grandes salas, que não são blockbusters”, pontua. “É uma terapia, né? Toda sexta-feira você vem, desopila e sai um pouco daquele cinema das grandes salas”.
Serviço
Cine Trash
Quando: Sessões às sextas-feiras, a partir das 18h20
Onde: Biblioteca Pública Municipal Dolor Barreira (Av. da Universidade, 2572 - Benfica)
Acesso livre
Mais informações: @cinetrashce