Bisneta de escravos ecoa voz de liberdade para novas gerações, em Porteiras
Maria Josefa da Conceição, 60 anos, ressignifica, entre crianças e idosos, a história que carrega no sangue por meio do canto e dança no Quilombo de Souza, no Cariri cearense
aria de Tiê ou Maria de Luiz é, antes de tudo, Maria. Num costume típico do interior, herdou primeiro o nome do pai, e anos depois, adotou como “sobrenome artístico” o apelido “Tiê” do marido. Mas é como a sua irmã mais nova, Francisca, refere-se a ela, simplesmente por Maria, que a trataremos. As duas têm uma diferença de três anos, já contando seis décadas a mais velha, porém a afinidade entre elas é tamanha que parecem ter nascido no mesmo dia, horário e lugar.
Nativas do Sítio Vassourinha, em Porteiras, descendem de um bisavô cuja história ajudou a definir o que são: negras e quilombolas. Raimundo Valentim de Souza fugiu do trabalho escravo, nos engenhos pernambucanos, e encontrou a liberdade na Chapada do Araripe. Lá, constituiu família e transmitiu saberes que as bisnetas reproduzem hoje na comunidade que leva seu sobrenome, o Quilombo de Souza. "Eu ainda conheci ele. Era um velhinho, baixinho, moreninho. Ainda tenho uma lembrança dele. Uma tia ensinava catecismo na casa de nosso bisavô, e quando chegava lá, ele pegava uma latinha, enchia de leite e aí nós ficava bem satisfeitinha, tomando leite que o ‘pai da rodagem’, como a gente o chamava, dava pra nós”, conta Maria.
Depois dele, vieram o avô, Manoel Raimundo de Souza, e o pai, Luiz Manoel de Souza, atuantes nos movimentos de banda cabaçal, reisado, dança do coco e maneiro-pau. Ainda na infância, Maria os acompanhava nas noites enluaradas, e participava de todas as atividades culturais que costumavam realizar após os bingos. Aprendeu a dançar, cantar e tocar instrumentos percussivos como tambor, pandeiro e ganzá.
“Por meu pai ser uma pessoa muito cultural, todo mundo gostava dele. Foi pela sua influência que eu resgatei aquilo que tava enterrado, que o povo já tava esquecendo, que eu fui atrás, trouxe e insisti”, destaca a filha que, em 2019, recebeu o reconhecimento estadual como mestra da cultura pelo Edital dos Tesouros Vivos.
Com o passar do tempo, Maria se viu herdeira desses saberes ancestrais e percebeu que cabia a ela salvaguardar o que aprendeu com seus antepassados. A certificação do quilombo pela Fundação Cultural Palmares, em 2005, incentivou-lhe a dar os primeiros passos: “Foi daí que eu levei em frente. Chamei o povo da comunidade, fomos ensaiar, lembrar aquelas cantigas, aquelas toadas que se cantava pra trás, e aí foi chegando aquela energia. Eu resgatei tudo que meu pai deixou e fiz as minhas também”, diz.
Identidade
Assumir-se quilombola, porém, não foi tarefa simples. Maria encarou a face mais cruel do preconceito nesse processo de autoidentificação. “Muitos achavam que era uma coisa ruim, criminosa. Tinha até gente do próprio sangue, que não se aceitava porque tinha vergonha. Eu não tive vergonha. Cheguei junto e disse: bote meu nome aí e diga que eu sou quilombola, porque eu sou filha de Luiz Manoel de Souza. Se é porque nós somos ‘de Souza’, negro, branco ou marrom, eu sou, eu aceito que sou”, enfatiza.
"Muitos achavam que era uma coisa ruim, criminosa. Tinha até gente do próprio sangue, que não se aceitava porque tinha vergonha. Eu não tive vergonha. Cheguei junto e disse: bote meu nome aí e diga que eu sou quilombola"
Não tivesse tomado essa afirmação para si, acredita que nada mais existiria hoje, “se acabava”. O envolvimento político com a causa a levou, inclusive, a criar uma Associação Comunitária e presidi-la, entre 2013 e 2018. À frente dessa organização, trouxe uma das maiores conquistas para a localidade: mais de 200 casas construídas pelo programa habitacional do Governo Federal Minha Casa Minha Vida.
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“Chegaram aqui atrás de mim, perguntando se eu tinha coragem de ir a Itapipoca (onde aconteceria uma solenidade de entrega de unidades) para trazer essas casas, porque se eu fosse lá e provasse como aqui na comunidade de Porteiras tinha quilombola, a gente recebia. E as primeiras 50 seriam nossas, como prioridade. Arrumei seis ‘pareias’ de quilombolas pra mostrar pra presidente Dilma, fiz uma música pedindo casa de tijolo e conseguimos”, conta Maria.
Liderar esse processo representou muitos desafios. Afinal, trabalhar em comunidade sempre é difícil. Houve quem achasse que a presidente do quilombo estava priorizando uns em detrimento de outros nas etapas de construção das casas. Disseram até que Maria poderia estar ganhando dinheiro com isso. E ainda ouviu de algumas mulheres ofensas por sua cor.
Nessas horas, só a irmã Francisca a acalmava. As palavras dela funcionavam como um grito de guerra para erguer Maria. “Você não vai parar. Erga sua cabeça, pense bem e lute pelo que você já começou. Uma tradição que já veio de nosso pai, e que você teve coragem de enfrentar, que outro não teve. Não é agora que você vai desistir”, orienta assim a inseparável irmã, sempre que se faz preciso.
Tradição
Envolver-se mais com a cultura e menos com a política também foi uma válvula de escape para Maria. No terreiro de casa, todo enfeitado com bandeirinhas de São João, ela reúne com frequência um grupo de 20 meninas das proximidades, todas com menos de 16 anos, para dançar coco, maneiro-pau, tocar instrumentos, cantar toadas e até fazer bonecas de pano negras de modo artesanal.
Sua filha mais nova, Cícera Vitória, de 12 anos, é uma das que acompanha a mãe nessa atividade. E, apesar da timidez, carrega a mesma força e habilidade da matriarca, que cobra dela uma postura que os outros oito irmãos não tiveram. “Já aprendi as músicas, danço, toco pandeiro e tambor”, orgulha-se a garota.
As colegas de vizinhança e de escola seguem no mesmo caminho, apesar de não contarem com a “professora” 24 horas por dia. “Mas essas meninas me dão trabalho, viu?”, brinca Maria com aquilo que fica evidente nas poucas horas de um ensaio.
O florescer da juventude vem acompanhado também da descoberta delas como quilombolas. E é preciso ser firme para que não escondam a própria identidade nem as características.
“O cabelo tem que ser volumoso mesmo. Nós temos que ser o que nós somos”, orienta a mestra em uma das lições diárias de pertencimento à raça.
Além do projeto com crianças e adolescentes, Maria comanda um grupo de coco com os mais velhos. “Os idosos estão renovando, mais idade, mais força. Esse povo dança, dança, dança e não cansa não. Mas tá certo, porque no tempo de meu pai, era a noite toda. Nossa brincadeira é saúde. Você tá doente da coluna, aí quando dá uma pisada, vai e não quer mais parar. O suor bate”, percebe.
A mestra reconhece, porém, que nem todos têm o desejo de perpetuar a tradição como ela. “Tem gente que diz: ‘não vou dançar coco mais não. Povo vem, tira foto, pra quê? Não tô ganhando nada’. Aí eu digo: ‘minha gente, dinheiro é bom, que a gente só faz viagem com dinheiro, mas não tem coisa melhor do que o conhecimento’”, argumenta.
Maria entende ser preciso articulação para conquistar aquilo que se almeja. E, nesse sentido, faz planos a fim de conseguir novos projetos para os grupos de cultura que coordena, uma sede para a Associação Quilombola, da qual hoje é vice-presidente, e um espaço para ser casa de memória da comunidade.
“Eu tenho fé em Deus e em Nossa Senhora Aparecida, que é pretinha como eu. Ela vai mostrar um caminho para eu dar as coisas pro meu povo”, diz. As respostas, não restam dúvidas, logo chegarão, afinal, como ela mesma diz: “o grito é das mulheres, mas os direitos são para todos”.
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