Dança e medicina tradicional são preservadas por mestra quilombola, em Baturité
Na Serra do Evaristo, a mestra Maria do Socorro Fernandes Castro, 54 anos, preserva a tradição da Dança de São Gonçalo e da medicina tradicional. Além desses saberes, partilha com os jovens as experiências políticas no movimento
partir da Igreja Matriz de Baturité, avista-se uma serra ao longe. “Estão vendo aquelas torres ali em cima? É pra lá que vocês vão”, orienta um mototaxista. Na subida de 10 km até a Comunidade Quilombola da Serra do Evaristo, vaqueiros nos trajes tradicionais de couro e animais levando cargas de banana guiam a nossa equipe até Maria do Socorro Fernandes Castro, uma voz conhecida há 54 anos na região.
Com um abraço duradouro, ela nos recebe na entrada de casa, um dúplex com vista para a vegetação de um lado e para a comunidade do outro. O marido, Antônio Aldemir de Castro, completa a recepção: “É isso mesmo. Para conhecer a nossa história tem que vir aqui”. Dessa união de mais de três décadas, nasceram Ana Cássia, Felipe e Levi.
Quando o casal tinha a faixa etária dos rebentos, na casa dos 20 anos, já era ativo no Grupo de Jovens Unidos Venceremos, questionando a pobreza local. “Nós não éramos como hoje a gente é, não. Nós éramos pobres e muito pobres. Não tinha a moradia que a gente tem hoje. Da década de 1980 pra cá, a gente começou a ver que aquilo não era certo”, contextualiza dona Socorro.
Na época, a estrada até a Serra do Evaristo era carroçal, e as casas, de barro. Para chegar até Baturité, lugar mais próximo para atendimento médico, um enfermo precisava ser carregado numa rede, não existia outro meio de transporte. A própria Socorro chegou a ir a pé até o Centro para realizar o pré-natal dos filhos mais velhos, e fez isso, inclusive, em trabalho de parto.
Nesse contexto, passaram a se reunir. “Essa nossa libertação partiu da conversa entre jovens. Depois, fomos levando aos mais adultos e aí houve uma revolução pra gente deixar a comunidade como hoje ela se encontra. Quando entrava um prefeito muito ruim, a gente ia lá, não tinha medo não. Eles começaram a ver que não deviam brincar com a gente, porque tínhamos coragem de ir em busca de melhoria de vida”. Na descida para reivindicar direitos, ouviam: “Lá vem a negrada da Serra do Evaristo”, frase que ainda hoje escutam.
As conquistas foram aparecendo aos poucos e podem ser observadas em breve caminhada: calçamento de pedra, casas de tijolos e até um tradicional pau de arara, espécie de carro comunitário.
“Por meio da nossa luta, graças a Deus, melhorou muito, muito. A gente carrega no sangue. Eu não busco só pra mim, nem só pra minha família não, é pra todos. Aqui é resistência”, fala Socorro, enquanto empunha a mão num gesto político.
Referência
Associar a realidade em que viviam, trabalhando em fazendas da região num regime de semiescravidão, a um passado não registrado em livros ou documentos escritos, foi uma aposta alta do movimento jovem. Para isso, contaram com a transmissão da história oral pelos mais velhos.
“Até 2010 (ano de certificação pela Fundação Cultural Palmares), a gente não sabia se era quilombola, só que os nossos traços, a diferença não só de cabelo, nem só de cor, mas também porque nós sempre tivemos muita coragem de enfrentar a vida, ajudaram nesta compreensão”, diz Socorro.
Como membro do Conselho Fiscal no Quilombo da Serra do Evaristo, colabora com o segundo mandato do presidente da associação, Evandro Ferreira. Se ele é o representante oficial, Socorro é a referência de liderança para todos, inclusive para o dirigente, prova de que o protagonismo feminino e quilombola não carece de títulos.
Além de presença nas reuniões, é considerada a “madrinha” da comunidade. Trabalhar na terra, como agricultora; na igreja, como catequista; e na creche, como professora, proporcionou que se relacionasse com as famílias. E essa afinidade se comprova quando caminha pelo lugarejo dando a bênção a todos que a cumprimentam.
Socorro encontrou outras duas formas para “adotar” mais filhas e filhos. Tem formação em medicina tradicional e coordena o grupo da Dança de São Gonçalo. Essas habilidades renderam-lhe o reconhecimento de Mestre dos Saberes e Fazeres das Culturas Populares, em 2018, pela Câmara Municipal de Baturité. No caso da dança, começou de forma tímida, em 1994, e atua como guia.
Aprendeu com os antigos que a manifestação já foi elemento para tirar a juventude feminina da farra e até da prostituição, e reproduz a história. “Dona Naíde, já falecida, me dizia ser por isso que hoje a dança é mais completa de mulheres”. Atualmente, elas são 24 para apenas três homens, responsáveis pelos instrumentos musicais.
A guia se veste de azul e as demais, de branco. Faz dois anos desde a última apresentação completa da dança, que pode durar o dia todo, e é feita como pagamento de promessa. “Na minha casa, teve uma dança. Eu fiquei doente de pressão alta e tive um começo de depressão. Uma senhora ficou muito preocupada, fez a promessa, e eu fiquei boa, não senti mais nada não, graças a Deus”, atesta a mestre.
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A fortaleza de Socorro se reflete na fé da dança e na medicina tradicional. Desde que fez um curso em Baturité, produz remédios naturais para o seu povo. Mas o saber vem de muito antes. “Os nossos pais, as nossas mães já cuidavam de nós com o lambedor, a xaropada. Quando uma mulher tava grávida, que sentia um problema, elas também tinham remédio. Já é antigo esse trabalho delas. Até porque a gente não tinha acesso a médico. Tinha não. Médico, nesse tempo, não tinha”, reforça.
À medida que a própria mãe e a sogra foram envelhecendo, Socorro entendeu a necessidade de assumir mais essa função. Ela e outras três mulheres trabalham para que, com a renda desses remédios naturais, possam abrir uma “Farmácia Viva”. O prédio já existe, mas precisam de dinheiro para melhorar a estrutura.
A falta de uma unidade de saúde, de recursos hídricos e de saneamento é a principal demanda local.
“Quando a gente tiver nossa Farmácia Viva, bem ampliada, vai ter mais gosto ainda de trabalhar. E, no caso da Dança de São Gonçalo, eu queria muito e quero que os nossos jovens, com menos de 19 anos, pudessem também se engajar nessa tradição. Porque se eles não valorizarem, com o tempo pode acabar”, acredita.
Continuidade
Os parentes de Socorro sabem do que ela está falando. Alguns estudam na Unilab, em Redenção, e percebem nela uma referência viva de pesquisa. Caso de Levi, o filho caçula, que cursa Antropologia e identifica na mãe fonte preciosa para estudar sobre a Dança de São Gonçalo. A sobrinha Natália, estudante de bacharelado em Humanidades, a acompanha nas atividades da medicina tradicional.
“A nossa juventude novata tá toda aí com os tambores. Eles se comprometem em levar o nome da comunidade afora, mostrando a alegria deles e essa resistência que têm”, aponta Socorro orgulhosa, reforçando o discurso dos filhos, vinculados ao Grupo Unidos Venceremos, do qual ela e o marido fizeram parte.
Como diz a canção que costumam entoar nos encontros, “tem que acabar com esta história de negro ser inferior. O negro é gente e quer escola, quer dançar samba e ser doutor. Dança aí negro nagô, dança aí negro nagô”.
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