Baiana de acarajé lidera espaço cultural de resgate do protagonismo negro em Fortaleza
Há mais de uma década, Pérola de Oyá se dedica a fortalecer a cultura afro-brasileira na capital cearense.
Na Avenida da Universidade, no Benfica, três casas vizinhas servem como uma ponte para a cultura afro-brasileira. À esquerda, está a sede do Maracatu Solar, que há quase 20 anos forma novos brincantes de maracatu. À direita, um terreiro de umbanda, local de espiritualidade e tradição. No meio dos dois, há um espaço que busca unir essas e outras vocações: o Ajeum de Oyá, restaurante e ponto de cultura que se destaca na cena cultural como um espaço de protagonismo negro.
Idealizado pela produtora cultural e empreendedora baiana Pérola de Oyá, 51, o Ajeum – cujo nome significa “comer juntos” em iorubá – nasceu em 2012 como uma forma de dar vazão a um desejo de Pérola de se sentir em casa em um território estrangeiro, após mudar de Salvador para Fortaleza em 2011.
“Eu ia para os eventos, ia para os espaços de diversão que tinha aqui e não me sentia representada. Me sentia um peixe fora d'água, sabe?”, lembra, em entrevista ao Verso. Amante do samba, conta que, na época, basicamente existia um evento voltado para o ritmo, o Pagode da Mocinha.
“Eu falava para uma amiga minha que é daqui: ‘pelo amor de Deus, onde é que tem um espaço de povo preto aqui, onde é que tem um samba bom aqui?’. Aí ela brincava: ‘mulher, se acostuma, porque além disso, você só vai encontrar forró, mais nada’”, ri.
“A gente saía de lá e ia pro forró, tudo de boa, mas ainda não era aquilo que eu queria, né? Aí pensei: não, minha gente, pelo amor de Deus, eu vou ter que dar um jeito nisso. E eu, como uma baiana atrevida que sou, disse: ‘peraí, que já vou resolver esse problema’”, completa.
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A solução foi criar um espaço para matar a saudade da cultura que a formou. Localizado inicialmente na rua Waldery Uchôa, próximo à Praça da Gentilândia, o Ajeum de Oyá migrou para a Avenida da Universidade há cerca de três anos e se consolidou junto a públicos diversos, dos mais jovens aos mais velhos, de cearenses a turistas e estudantes estrangeiros.
Com programação diversa, o espaço recebe eventos culturais e formativos, como noites temáticas dedicadas à culinária baiana e africana – por meio do projeto Culinária Ancestral, que ocorre tradicionalmente às quintas-feiras –, rodas de samba de terreiro, aulas de danças africanas, oficinas e mais.
A ideia, segundo a idealizadora, era agregar o máximo de expressões da cultura negra em um só espaço, para que outras pessoas que, como ela, sentiam falta de um espaço representativo de fato, pudessem se sentir em casa.
“É tudo num local só”, destaca Pérola. “Comecei a levar a capoeira, a trazer a capoeira, o jongo, o tambor de crioula, o samba – samba de terreiro, o samba raiz, o pagode. Fiz muita amizade com os meninos africanos que moram aqui em Fortaleza e a gente começou a fazer alguns eventos também, como o Afrobrasilidade”, detalha.
Gastronomia ancestral
Ao idealizar o Ajeum de Oyá, Pérola acabou reproduzindo um pouco de suas memórias afetivas no empreendimento. Nascida em uma família de artistas, como não podia deixar de ser, teve a infância e a adolescência embaladas por muita música e pelos sabores fortes dos temperos baianos.
“Lá em Salvador, minha família toda era praticamente de músicos, então, a casa sempre tava muito cheia, sempre tinha muita gente para ensaiar, para tocar ou ir a algum evento”, lembra. “Tudo aquilo era motivo pra gente – eu, minha mãe, minhas irmãs – estar sempre na cozinha, preparando muita refeição para poder receber aqueles amigos, para poder servir pro pessoal que a gente ia receber”, completa.
A mãe, que também era baiana de acarajé, a ensinou logo cedo a preparar a joia da culinária local e, com pouca idade, Pérola já a acompanhava para vender o quitute em algumas noites, em um tabuleiro no Campo Grande. No entanto, demorou um tempo para Pérola transformar a tradição familiar em vocação profissional.
“Sou enfermeira de profissão, já trabalhei como segurança, já tive um salão de beleza e trabalhei muitos anos como cabeleireira. Já trabalhei de recepcionista, de doméstica, um monte de coisa – mas tudo sempre com a gastronomia infiltrada no meio”, conta.
“Eu fazia o que fosse, mas tirava um horariozinho para trabalhar com a gastronomia. Até que chegou uma hora que disse ‘não, agora eu vou focar só na gastronomia e na cultura’”, completa. A decisão surgiu por volta dos 35 anos e incluiu uma dedicação especial à culinária de terreiro.
A ideia de se voltar para o acarajé surgiu pouco após a primeira vinda a Fortaleza, quando atuava como cabeleireira e foi convidada pela dona de uma marca de cosméticos cearenses para ministrar um curso de penteados afro. Por aqui, fez vários amigos baianos que reclamam da saudade do verdadeiro acarajé.
“Por uma brincadeira eu disse ‘gente, pelo amor de Deus, eu vim fazer cabelo, não vim fazer acarajé’, mas depois vi que não tinha pra onde correr. Então, de dia fazia cabelo, à noite vendia acarajé no Açaí do Jojó, na frente da FIC”, explica Pérola, que achou no empreendimento do amigo Jojó o primeiro espaço para divulgar seu trabalho gastronômico.
“O Ceará também tem ancestralidade, por mais que se negue”
Da decisão de fazer morada na capital cearense e se dedicar à culinária de vez, já se passaram cerca de 15 anos. “O que me fez ficar em Fortaleza foi realmente essa minha vontade de fazer essa junção da gastronomia com a cultura do povo preto, que eu sentia muita falta”, destaca Pérola.
“O menu do Ajeum é sempre uma surpresa. Eu procuro toda quinta-feira trazer um prato que – falando do povo preto – remeta à sua infância ou que remeta à vivência que você teve em algum terreiro, que te lembre o tempero da sua avó ou o tempero da sua mãe”, explica Pérola. “Ou, então, alguma comida diferente, que você ainda não conhecia. Aí a gente conta um pouco da história para você passar a conhecer”, completa.
A cada quinta-feira, dois pratos baianos e um prato de algum país africano é servido no espaço, por meio do projeto Culinária Ancestral. Mas Pérola afirma que o menu da casa, por vezes, é incrementado com algo da culinária cearense, afinal, “o Ceará também tem ancestralidade, por mais que se negue”.
A tríade que guia o Ajeum – gastronomia, arte e espiritualidade – está intrinsecamente ligada aos fundamentos do candomblé, religião de matriz africana da qual faz parte E que faz questão de tornar presente no espaço do Ajeum de Oyá. Referência na comida, mas também nos desenhos que ilustram o espaço e na ligação concreta do restaurante com a cultura dos terreiros.
“Muita gente chega no Ajeum e pergunta ‘Pérola, mas afinal aqui é um terreiro de candomblé, aqui é um ponto de cultura, é o quê?’, e eu digo ‘aqui é as duas coisas’. Aqui nesse espaço você tanto vai encontrar a energia de um terreiro de candomblé, você vai encontrar o acolhimento e você vai encontrar apoio, como também vai encontrar alegria, você vai encontrar diversão”, explica.
Tudo feito de forma leve e sem imposições, destaca, com viés quase educativo, já que uma das missões do espaço também é desmistificar questões que geram preconceito religioso. “Às vezes a gente senta, faz uma pauta, faz uma palestra, faz uma roda de conversa e convida os amigos mais chegados, que aí um vai reverberando para o outro e já vai passando adiante”, conta.
Há três anos, esse trabalho de divulgação e preservação de culturas afro-brasileiras foi reconhecido pelo Governo do Estado por meio de uma certificação que categoriza o Ajeum de Oyá como um Ponto de Cultura do Ceará.
“Pra mim, enquanto pessoa e enquanto uma fazedora de cultura, isso é muito importante. Acho que, no momento em que você recebe o certificado como Ponto de Cultura, e você tá numa terra que não é sua – como a gente costuma brincar, tá no país do outro –, isso quer dizer que você tá fazendo a coisa certa, que você tá no caminho certo e que tá sendo reconhecido”, pontua.
Para Pérola, o reconhecimento fez com que o espaço ganhasse mais visibilidade e despertasse a curiosidade nas pessoas. Hoje, ela afirma que costuma ouvir de muitas pessoas que não há outro espaço como seu restaurante na Capital, mas que ainda sonha em melhorias para conseguir manter a cultura negra em evidência.
No futuro, além do foco na gastronomia e na arte, Pérola visa ampliar o leque de atividades do espaço, com inclusão de cursos e palestras mais frequentes no cronograma. “O que eu penso pro Ajeum mesmo é ampliar ele um pouco mais e conseguir colocá-lo em outro patamar para o povo preto aqui de Fortaleza. Ainda não está do jeito que eu quero, mas eu ainda pretendo chegar nesse patamar”, conclui.
No próximo sábado (22), o Ajeum fará uma celebração especial. Em alusão ao Mês da Consciência Negra, o espaço recebe mais uma edição do projeto Afrobrasilidade, das 22h às 2h, com apresentação de danças africanas e som por conta dos DJs Tito e Wil Naba.
Na parte gastronômica, Pérola destaca que o menu será variado, com pratos da culinária ancestral afro-baiana e de países diversos da África. A entrada custa R$ 10.
Conheça o Ajeum de Oyá
Onde: Av. da Universidade, 2327 - Benfica
Mais informações: @ajeum.deoya