Samba Kanjerê celebra espiritualidade e ancestralidade negra
Grupo leva samba de terreiro e outros clássicos do gênero a palcos de Fortaleza.
Você já deve ter ouvido que todos os gêneros musicais surgiram, de um modo ou de outro, a partir da criação de pessoas negras e da influência de culturas africanas. Em Fortaleza, um grupo musical tem se dedicado a colocar essa herança em evidência, a partir de um dos ritmos que melhor representam essa conexão no Brasil: o samba.
Defensores do “samba de terreiro”, que tem como base batuques originários de giras de candomblé e umbanda, o Samba Kanjerê está prestes a completar dois anos em atividade, mas já se destaca na cena da Capital pela decisão de unir música e ancestralidade.
Isso porque, mesmo em um momento em que novas rodas de samba surgem com frequência na Cidade e o ritmo se torna cada vez mais abraçado pelas novas gerações, muitos grupos focam apenas nos repertórios mais comerciais, que por vezes se desconectam da história e do lado “espiritual” do samba.
Nas apresentações do Kanjerê, a espiritualidade está intrínseca ao ato de fazer música, e cada canção tocada é um convite a esse entendimento.
Oficializado no início de 2024, o grupo é formado por Diego Furtado, Jhon Morais, Mateus Sereno, Matheus Malheiros, Sávio Scuro e Victor Queiroz, além da produtora Brenda Lobo. O nome vem do termo 'Canjerê', que significa reunião de pessoas para celebrações de religiões afro-brasileiras.
“A gente tem vários sambas na cidade, mas às vezes não se sente tão representado. Então, acho que a gente trabalha bem nessa pauta”, pontua Matheus Malheiros, cantor e músico à frente do cavaquinho e do banjo no Kanjerê.
Foi do encontro dele com o multiartista Jhon Morais, o Jhon Moral, que surgiu a ideia de criar um grupo focado no “lado B” de artistas consagrados do samba, como dona Ivone Lara, Beth Carvalho, Jovelina Pérola Negra, Arlindo Cruz e Jorge Aragão, e que privilegiasse o “samba de macumba”.
“A gente passou a ser pesquisador disso que a gente faz, inclusive de buscar músicas do repertório que são velhas mesmo, são antigas pra caramba”, comenta Jhon. “Inclusive, elas nos conectam com uma velha guarda do samba, que olha pra gente com respeito, porque somos músicos jovens que cantam 'músicas de velho'”, brinca.
O artista conta que as referências de “samba raiz” e o aprofundamento em pesquisas musicais fizeram com que os membros do grupo compreendessem que o samba nasceu nos terreiros. “Antropologicamente falando, a matriz percussiva que dá chão pro samba caminhar e ser o que o samba e suas variantes são hoje é um samba que sai de dentro de um terreiro”, explica Jhon.
As batidas que moldaram o samba, destaca, vieram do toque cabula, ritmo executado em pontos de umbanda e originário de terreiros de Angola. Historicamente, as religiões de matriz africana unem celebrações espirituais e elementos festivos, como a dança e a música.
No Ocidente, a gente aprendeu a dividir demais essas relações do que é espiritual e do que que é festa, mas o samba sempre foi uma coisa sagrada-festiva, né? Não necessariamente religiosa, mas que tem sua reverência à ancestralidade, a esses espíritos que já não estão mais aqui.”
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Ancestralidade na prática
Segundo Malheiros e Jhon, a relação do grupo musical com a ancestralidade negra vai muito além do repertório, da fé e da base de pesquisa artística: se demonstra na relação que o Kanjerê tem com Pérola de Oyá, idealizadora do Ajeum de Oyá, Ponto de Cultura e restaurante de comida africana e afro-brasileira onde o grupo se apresenta com frequência.
Baiana de acarajé e articuladora cultural, Pérola é também a “madrinha” do grupo, atuando como eixo fundamental do projeto. “Todos os integrantes são acolhidos por essa mulher, e a gente sente que quando a gente toca aqui [no Ajeum de Oyá] é diferente”, comenta Malheiros. “A gente se apega ao projeto e a gente também se apega a quem nos deu uma casa”, completa.
A relação entre uma mulher negra que atua como matriarca e um grupo de sambistas não é novidade. Jhon lembra que, há um século, quando o gênero musical ainda sofria represálias por sua relação direta com as religiões de matriz africana, músicos eram “protegidos” por mulheres negras mais velhas, que os orientavam “como grandes mães”.
“Sempre gosto de lembrar que isso parece ser a história sendo recontada no tempo atual”, explica. “É a ancestralidade sendo vivida na prática, de a gente se preocupar com a saúde dela, de ela se preocupar com a saúde da gente, de ter esse cultivo – tudo regido pelo eixo que é o samba. O samba dá tudo isso pra gente”, destaca Jhon.
O artista destaca que o Ajeum de Oyá e o Samba Kanjerê se conectam por outro propósito em comum: ser um espaço em que o povo de axé pode expressar sua espiritualidade à vontade, mas que também busca ser local de acolhimento para um público mais amplo.
“A ideia de segregação vem da branquitude. Então, a gente busca, nesse espaço, traçar uma outra rota para essas relações”, pontua.
Para Jhon, o espaço busca apresentar, de forma respeitosa e “menos litúrgica”, a cultura afro-brasileira para quem deseja conhecê-la. “Só que numa festa, no jeito de sambar, bebendo uma cerveja, conhecendo, comendo um acarajé, conhecendo pessoas novas, sem estar necessariamente no terreiro”, completa.
Desafios no diálogo com o mercado
Se a originalidade da roda de samba do Kanjerê tem feito com que o grupo ocupe cada vez mais palcos em Fortaleza, ela também traz desafios. Em muitos espaços culturais, o preconceito religioso ainda impera, muitas vezes acompanhado pelo racismo, tornando a já difícil carreira na música mais desafiadora.
No entanto, para Jhon, o grupo encontrou um caminho possível, ainda que tortuoso, para crescer e chegar a um público cada vez maior sem desviar do propósito político do samba.
“Dizer que a gente não enfrenta essa realidade difícil não dá, porque vai enfrentar – inclusive de tocar no lugar e a gente evitar certas letras musicais para não confrontar”, destaca. “O que a gente faz também, com muita inteligência, é se aliar e se aproximar de quem gosta do nosso trabalho”, completa.
“E não é fácil você afirmar pro mercado uma ideia de trabalho – pelo mesmo motivo de intolerância religiosa e preconceito racial. Ele vai tentar te convencer a mudar um pouquinho, a ‘melhorar’. E a gente diz ‘não, pera, nosso trabalho é assim’. Não é fácil pra gente que trabalha com arte recusar trabalho, mas em algum momento isso é político também”, segue o cantor.
Apesar dos desafios, Jhon acredita que o samba vive um momento de prosperidade e saber “aproveitar essa maré alta é importante” para o fortalecimento do trabalho defendido pelo Samba Kanjerê. “O que penso mais sobre o nosso trabalho é como que a gente vai continuar o trabalho mesmo quando a maré baixar, sabe? O que a gente vai construir, quais são os alicerces?”, questiona.
Ocupar os espaços, portanto, é uma missão constante e ainda em disputa. Mas o artista avalia que há espaço para todos e que, quanto mais grupos tocando samba – dos mais diversos subgêneros –, melhor.
“Para mim, quanto mais grupos de samba, melhor, porque movimenta mais a cultura, a gente tem mais espaços com samba. Isso vai banhando a sociedade com uma cultura que é nossa, que é brasileira”, conclui.
Novo show e lançamento de EP
No momento, o Samba Kanjerê se prepara para, em paralelo às rodas de samba, incluir um novo formato de show no portfólio, pensado como espetáculo de palco, intitulado “Mãe de Samba”. Além disso, o grupo deve lançar, nos próximos meses, um registro audiovisual de uma das Giras do Kanjerê e um EP com composições autorais, ambos previstos para o primeiro semestre de 2026.
Atualmente, o Samba Kanjerê segue com agenda fixa em dois espaços gastronômicos de Fortaleza: às terças-feiras, tocam no Samba pra Seu Zé, no Boteco Mauá, no Dionísio Torres. Às quintas, ocupam o Ajeum de Oyá, no Benfica, como parte da programação do projeto Culinária Ancestral.
Outros palcos entram na agenda a depender da demanda. A cada três meses, também no Ajeum de Oyá, os músicos realizam a “Gira do Kanjerê”, projeto que já teve oito edições e é considerado a “pérola sagrada” e marco inicial do grupo.
“É um evento de samba – até porque na umbanda existe o toque de samba na própria ritualística – que é sempre alicerçado por uma temática afrocentrada. A gente homenageia tanto entidades espirituais, como pode ser um tema de cunho ancestral”, destaca Jhon.
Próximos shows
Festival Ajeumbó - En(Canto) Negro
Quando: Sábado, 1º de novembro
Horário: 12h às 14h
Onde: Mercado AlimentaCE (Complexo Cultural Estação das Artes - rua Dr. João Moreira, 540 - Centro)
Acesso gratuito
Samba Pra Seu Zé
Quando: Terça-feira, 4 de novembro
Horário: Abertura da casa às 17h, apresentação a partir das 19h
Onde: Boteco Mauá (rua Visconde de Mauá, 3099 - Dionísio Torres)
Culinária Ancestral com Samba Kanjerê
Quando: Quinta-feira, 6 de novembro
Horário: Abertura da casa às 19h
Onde: Ajeum de Oyá (av. da Universidade, 2327 - Benfica)
Acesso gratuito