Por que a bruaca, receita afetiva cearense, não ocupa destaque nos cardápios?
Comida tem origem desconhecida e é querida no paladar, sobretudo na merenda doméstica.
Você não precisa pesquisar onde vende cuscuz e tapioca antes de sair de casa. Basta ir a uma banquinha de esquina ou a qualquer cafeteria. O mesmo não acontece com a bruaca. Tão tradicional na merenda quanto os outros dois pratos, esse querido alimento, contudo, não tem destaque nos cardápios Ceará afora. Há motivos para isso acontecer, e fomos atrás de saber.
Pesquisadores têm diferentes perspectivas a respeito. Para alguns, por ser um prato que remete à pobreza, à dificuldade e à escassez, a bruaca não está nas prateleiras das confeitarias por sofrer certo preconceito. Ou porque esses estabelecimentos não têm visão do quão importante é a oferta de itens da nossa cultura alimentar e de memória afetiva.
“Comida de afeto sempre é bem aceita quando a ofertamos”, diz Telma Carvalho, defensora da tese. Graduada em Gastronomia pela Universidade Federal do Ceará, ela é professora da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco e percebe que a tapioca e o cuscuz ganharam maior recorrência na rua e nos estabelecimentos, diferentemente da bruaca, porque caíram no gosto popular em outras partes do Brasil, além do Nordeste.
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“Há também isso de esperarmos que os outros valorizem o que é nosso, para só depois nós as enxergarmos como valiosas”, palpita. Há quem acredite, porém, que o amplo alcance da bruaca no comércio alimentício não acontece porque ela é feita de farinha de trigo, matéria-prima da qual o Ceará não é produtor – em contraste com o milho e a mandioca, por exemplo, bases alimentares do cuscuz e da tapioca, respectivamente.
A opinião é de Gio Frapiccini, coordenador de Pesquisa em Culturas Alimentares do Mercado AlimentaCE, especialista em Gestão Cultural, mestrando em Gastronomia pela UFC e integrante da COMTÚ, agência de turismo gastronômico comunitário. Segundo ele, mesmo com essa lacuna produtiva, ainda há crença no poder da bruaca de ganhar os cardápios.
“Devido à globalização e ao comércio de diversas espécies, a farinha de trigo foi incorporada ao cardápio da cultura alimentar cearense, e por isso existe, sim, a possibilidade de esse prato ter mais protagonismo fora de casa. É uma preparação que tem muita relação com a memória afetiva das pessoas”.
Origem da bruaca
Embora seja a cara de nosso povo, a bruaca não tem origem definida. Ela certamente é nordestina, mais precisamente do Ceará, mas acredita-se ser uma variação dos costumes dos europeus que se instalaram aqui, notadamente holandeses e franceses.
A hipótese é de que, na época em que foi criada, o Ceará passava por grande escassez – ou seja, foi um alimento nascido para matar a fome dos que não tinham meios de ir à cidade em busca de mantimentos. A saída para a mazela pareceu perfeita: fazer um pão achatado e frito, inspirado nas panquecas, cuja base era apenas água, farinha de trigo, sal, açúcar e ovo.
“Depois foram modificando, colocando leite em substituição à água, e também margarina, suco de laranja etc. No início não era usado o fermento – insumo que hoje é preferido pela maioria das pessoas”, explica Telma Carvalho.
“Mas a bruaca é nordestina, sim. Em outras partes do Nordeste ela é conhecida com outros nomes e com alguma variação na receita – como no Rio Grande do Norte, que a chamam de ‘ureia de pau’, com a adição do flocão de milho”.
Buruaca, bolo de caco ou chapéu de couro também são outros codinomes da delícia, conforme Gio Frapiccini. Os estudos do pesquisador apontam ainda para a grevista – receita específica de bruaca, citada no livro “Mistura quilombola: comida, identidade e cultura no Ceará”, organizado e publicado pelo Mercado AlimentaCE.
Esta surge no quilombo do Cumbe, em Aracati, no mesmo contexto de escassez já mencionado – a diferença é que com adição de coco ao preparo, o que denota a variação, de família para família, de território para território, da concepção da iguaria.
“Assim, podemos pensar também na origem da bruaca ligada à cultura alimentar quilombola no Estado do Ceará. É um alimento muito querido mesmo. Antigamente, para se ter ideia, era comido substituindo refeições, e havia um consumo frequente, bem maior que hoje, quando ficou mais associado ao momento da merenda”.
Outro fato interessante é que, uma vez ser uma receita tão fácil, encontra na oralidade um modo de perpetuar a tradição. Em suma: sabor capaz de traçar nossa identidade cultural a partir da memória afetiva de nossos antepassados. E que ainda tem valor nutricional.
“É um alimento que dá energia por ser rico em carboidratos da farinha de trigo (amido) e do leite (lactose). Além disso, ela tem a proteína do leite e do ovo, cálcio e lipídios. Para quem não tem restrições alimentares (diabéticos, intolerantes, alérgicos, celíacos), diria que é uma ótima maneira de começar o dia”, sugere Telma Carvalho.
Bruaca, panqueca ou crepe?
Apesar de muito semelhantes, bruaca, crepe e panqueca são bem diferentes. A bruaca tradicional é feita com farinha de trigo sem fermento, uma pitada de sal, açúcar, água e frita com óleo ou margarina. Apenas com o tempo foram adicionados enriquecedores a ela, a exemplo de leite, fermento, ovo, suco de laranja. Nosso costume, como bem sabemos, é apreciá-la com café, sem recheio ou cobertura.
O crepe francês, por sua vez, geralmente é recheado com doces, queijos ou caldas, como o crepe Suzette – fininhos e grandes, com calda de laranja. Embora tenha quase os mesmos ingredientes, a bruaca não é tão fininha quanto ele. Por fim, a panqueca americana é mais alta e menor, leva fermento, e é servida com doces, pastas, mel e outros insumos.
Um dos poucos lugares que a reportagem identificou, no bar O Cajubá, localizado no Meireles, a escolha foi incluir a bruaca no cardápio para representar a regionalidade e a memória afetiva que a iguaria traz.
“Achamos muito importante mantê-la no menu para representar a força e a riqueza dos nossos ingredientes e receitas locais”, celebra Gabriel Aguiar, sócio-proprietário do estabelecimento. As bruacas por lá são servidas como entrada – três discos de mini-bruacas recheadas com caju assado, castanha, cebola roxa e redução de acerola. O valor é R$ 31,90.
Na avaliação de Gabriel, o quitute tem maior procura entre o público mais saudável e por aqueles que já consumiram e possuem recordação ligada a algum familiar, sobretudo avós. Agora, no segundo ano de funcionamento da casa, há possibilidade de incluir mais uma variação de recheio daquilo que faz brilhar os olhos da clientela.
Bruaca também é ofensa
Esta reportagem finaliza com outra curiosidade acerca da bruaca. Diz respeito ao modo como esse nome pode ser atribuído não somente ao alimento, mas a algumas mulheres, em tom de ofensa. Você sabe a origem desse comentário jocoso e, muitas vezes, agressivo?
Telma Carvalho contextualiza o ponto. “A bruaca é uma palavra portuguesa que significa saco ou bolsa de couro. Durante o período colonial, era utilizada para transportar mercadorias, alimentos e até escravizados no lombo dos cavalos”, explica.
Não à toa, alguns historiadores acreditam que a palavra se referia a mulheres escravizadas que transportavam a bruaca – saco ou bolsa – nas costas. O termo pejorativo vem daí, referindo-se a mulher feia, grosseira, vulgar, ignorante ou fofoqueira.
Entre o sabor genuinamente caseiro até ressonância no comportamento social, a bruaca segue tímida, mas querida. Singela e tão poderosa quanto.