Por que a bruaca, receita afetiva cearense, não ocupa destaque nos cardápios?

Comida tem origem desconhecida e é querida no paladar, sobretudo na merenda doméstica.

Escrito por
Diego Barbosa diego.barbosa@svm.com.br
(Atualizado às 07:02, em 19 de Novembro de 2025)
Na imagem, uma foto de estúdio em ângulo baixo mostra uma pilha solta de aproximadamente sete a oito bruacas (ou panquecas grossas) em um prato branco simples. As bruacas têm uma forma oval ou ligeiramente irregular, são grossas e têm uma borda bem dourada e caramelizada. O centro tem uma cor dourada mais clara, com uma fina camada de polvilho ou um leve tom de marrom claro.
Legenda: Para pesquisadora, bruaca não está nas prateleiras das confeitarias por sofrer certo preconceito.
Foto: Alla Vasylenko/Shutterstock.

Você não precisa pesquisar onde vende cuscuz e tapioca antes de sair de casa. Basta ir a uma banquinha de esquina ou a qualquer cafeteria. O mesmo não acontece com a bruaca. Tão tradicional na merenda quanto os outros dois pratos, esse querido alimento, contudo, não tem destaque nos cardápios Ceará afora. Há motivos para isso acontecer, e fomos atrás de saber.

Pesquisadores têm diferentes perspectivas a respeito. Para alguns, por ser um prato que remete à pobreza, à dificuldade e à escassez, a bruaca não está nas prateleiras das confeitarias por sofrer certo preconceito. Ou porque esses estabelecimentos não têm visão do quão importante é a oferta de itens da nossa cultura alimentar e de memória afetiva. 

“Comida de afeto sempre é bem aceita quando a ofertamos”, diz Telma Carvalho, defensora da tese. Graduada em Gastronomia pela Universidade Federal do Ceará, ela é professora da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco e percebe que a tapioca e o cuscuz ganharam maior recorrência na rua e nos estabelecimentos, diferentemente da bruaca, porque caíram no gosto popular em outras partes do Brasil, além do Nordeste.

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“Há também isso de esperarmos que os outros valorizem o que é nosso, para só depois nós as enxergarmos como valiosas”, palpita. Há quem acredite, porém, que o amplo alcance da bruaca no comércio alimentício não acontece porque ela é feita de farinha de trigo, matéria-prima da qual o Ceará não é produtor – em contraste com o milho e a mandioca, por exemplo, bases alimentares do cuscuz e da tapioca, respectivamente.

A opinião é de Gio Frapiccini, coordenador de Pesquisa em Culturas Alimentares do Mercado AlimentaCE, especialista em Gestão Cultural, mestrando em Gastronomia pela UFC e integrante da COMTÚ, agência de turismo gastronômico comunitário. Segundo ele, mesmo com essa lacuna produtiva, ainda há crença no poder da bruaca de ganhar os cardápios.

Na imagem, uma foto de close-up mostra uma panela de metal sobre um fogão a gás. Dentro da panela, há óleo quente onde quatro unidades de bruaca, ou um tipo de bolinho/panqueca frito, estão sendo preparadas. A bruaca tem uma forma redonda e irregular, com uma cor dourada clara.
Legenda: A mistura de água, farinha de trigo, sal, açúcar e ovo forma a bruaca tradicional.
Foto: Camila Lima.

“Devido à globalização e ao comércio de diversas espécies, a farinha de trigo foi incorporada ao cardápio da cultura alimentar cearense, e por isso existe, sim, a possibilidade de esse prato ter mais protagonismo fora de casa. É uma preparação que tem muita relação com a memória afetiva das pessoas”.

Origem da bruaca

Embora seja a cara de nosso povo, a bruaca não tem origem definida. Ela certamente é nordestina, mais precisamente do Ceará, mas acredita-se ser uma variação dos costumes dos europeus que se instalaram aqui, notadamente holandeses e franceses. 

Na imagem, uma foto de cima e em close-up mostra uma pilha de bruacas (ou panquecas) em um prato decorado, que está apoiado sobre um jogo americano redondo e de textura trançada (possivelmente de vime ou palha). As bruacas são douradas, com bordas irregulares e manchas escuras da fritura ou chapa.
Legenda: Bruaca certamente é nordestina, mas acredita-se ser uma variação dos costumes de europeus.
Foto: Aline Conde/Arquivo pessoal.

A hipótese é de que, na época em que foi criada, o Ceará passava por grande escassez – ou seja, foi um alimento nascido para matar a fome dos que não tinham meios de ir à cidade em busca de mantimentos. A saída para a mazela pareceu perfeita: fazer um pão achatado e frito, inspirado nas panquecas, cuja base era apenas água, farinha de trigo, sal, açúcar e ovo.

“Depois foram modificando, colocando leite em substituição à água, e também margarina, suco de laranja etc. No início não era usado o fermento – insumo que hoje é preferido pela maioria das pessoas”, explica Telma Carvalho. 

Na imagem, uma foto de close-up, com ângulo ligeiramente elevado, mostra uma pilha alta de quatro ou cinco bruacas (ou panquecas) em um prato branco com uma discreta decoração floral. As bruacas são redondas, grossas e fofas, com uma cor dourada nas bordas e nas laterais. O topo da pilha está bem bronzeado com manchas marrons mais escuras, indicando que foram bem cozidas.
Legenda: Buruaca, bolo de caco ou chapéu de couro também são outros codinomes da bruaca Brasil afora.
Foto: Jéssica Welma/Arquivo pessoal.

“Mas a bruaca é nordestina, sim. Em outras partes do Nordeste ela é conhecida com outros nomes e com alguma variação na receita – como no Rio Grande do Norte, que a chamam de ‘ureia de pau’, com a adição do flocão de milho”.

Buruaca, bolo de caco ou chapéu de couro também são outros codinomes da delícia, conforme Gio Frapiccini. Os estudos do pesquisador apontam ainda para a grevista – receita específica de bruaca, citada no livro “Mistura quilombola: comida, identidade e cultura no Ceará”, organizado e publicado pelo Mercado AlimentaCE.

Na imagem, duas bruacas (panquecas grossas e douradas) empilhadas em um prato com bordas marrons, colocadas sobre uma tábua de madeira rústica. Em primeiro plano, há coco ralado espalhado. No fundo, fora de foco, há uma xícara de café escura sobre outro pedaço de madeira, um coquinho partido e uma garrafa térmica antiga. A mesa é coberta por uma toalha xadrez em tons de azul e verde.
Legenda: Bruaca grevista, no quilombo do Cumbe, em Aracati, é adicionada de coco.
Foto: Camila de Almeida.

Esta surge no quilombo do Cumbe, em Aracati, no mesmo contexto de escassez já mencionado – a diferença é que com adição de coco ao preparo, o que denota a variação, de família para família, de território para território, da concepção da iguaria.

“Assim, podemos pensar também na origem da bruaca ligada à cultura alimentar quilombola no Estado do Ceará. É um alimento muito querido mesmo. Antigamente, para se ter ideia, era comido substituindo refeições, e havia um consumo frequente, bem maior que hoje, quando ficou mais associado ao momento da merenda”.
Gio Frapiccini
Coordenador de Pesquisa em Culturas Alimentares do Mercado AlimentaCE

Outro fato interessante é que, uma vez ser uma receita tão fácil, encontra na oralidade um modo de perpetuar a tradição. Em suma: sabor capaz de traçar nossa identidade cultural a partir da memória afetiva de nossos antepassados. E que ainda tem valor nutricional.

Na imagem, uma foto em plano médio captura uma família reunida em torno de uma mesa, desfrutando de uma refeição. Várias pessoas de diferentes idades, incluindo crianças, adultos e idosos, estão sentadas ao redor da mesa coberta por uma toalha branca estampada com flores amarelas. No centro da mesa, um prato com pequenas porções de bruaca (ou bolinhos/panquecas) é compartilhado. As mãos das pessoas estão estendidas para pegar os pedaços. Um homem de camisa azul, no centro, está distribuindo a comida.
Legenda: Bruaca tem poder de unir famílias em torno da mesa na hora da merenda.
Foto: Camila Lima.

“É um alimento que dá energia por ser rico em carboidratos da farinha de trigo (amido) e do leite (lactose). Além disso, ela tem a proteína do leite e do ovo, cálcio e lipídios. Para quem não tem restrições alimentares (diabéticos, intolerantes, alérgicos, celíacos), diria que é uma ótima maneira de começar o dia”, sugere Telma Carvalho.

Bruaca, panqueca ou crepe? 

Apesar de muito semelhantes, bruaca, crepe e panqueca são bem diferentes. A bruaca tradicional é feita com farinha de trigo sem fermento, uma pitada de sal, açúcar, água e frita com óleo ou margarina. Apenas com o tempo foram adicionados enriquecedores a ela, a exemplo de leite, fermento, ovo, suco de laranja. Nosso costume, como bem sabemos, é apreciá-la com café, sem recheio ou cobertura. 

O crepe francês, por sua vez, geralmente é recheado com doces, queijos ou caldas, como o crepe Suzette – fininhos e grandes, com calda de laranja. Embora tenha quase os mesmos ingredientes, a bruaca não é tão fininha quanto ele. Por fim, a panqueca americana é mais alta e menor, leva fermento, e é servida com doces, pastas, mel e outros insumos.

Um dos poucos lugares que a reportagem identificou, no bar O Cajubá, localizado no Meireles, a escolha foi incluir a bruaca no cardápio para representar a regionalidade e a memória afetiva que a iguaria traz.

Na imagem, três bruacas douradas e enroladas, servidas sobre um guardanapo branco em um prato retangular. As bruacas estão guarnecidas com um raminho de endro ou coentro no topo e são acompanhadas por um pequeno recipiente branco com molho vermelho (geleia ou calda) ao fundo. O prato está sobre uma superfície de madeira escura.
Legenda: No O Cajubá, o cardápio traz discos de mini-bruacas recheadas com caju assado, castanha, cebola roxa e redução de acerola.
Foto: Ismael Soares.

“Achamos muito importante mantê-la no menu para representar a força e a riqueza dos nossos ingredientes e receitas locais”, celebra Gabriel Aguiar, sócio-proprietário do estabelecimento. As bruacas por lá são servidas como entrada – três discos de mini-bruacas recheadas com caju assado, castanha, cebola roxa e redução de acerola. O valor é R$ 31,90.

Na avaliação de Gabriel, o quitute tem maior procura entre o público mais saudável e por aqueles que já consumiram e possuem recordação ligada a algum familiar, sobretudo avós. Agora, no segundo ano de funcionamento da casa, há possibilidade de incluir mais uma variação de recheio daquilo que faz brilhar os olhos da clientela.

Bruaca também é ofensa

Esta reportagem finaliza com outra curiosidade acerca da bruaca. Diz respeito ao modo como esse nome pode ser atribuído não somente ao alimento, mas a algumas mulheres, em tom de ofensa. Você sabe a origem desse comentário jocoso e, muitas vezes, agressivo?

Telma Carvalho contextualiza o ponto. “A bruaca é uma palavra portuguesa que significa saco ou bolsa de couro. Durante o período colonial, era utilizada para transportar mercadorias, alimentos e até escravizados no lombo dos cavalos”, explica.

Na imagem, uma foto de estúdio em close-up escuro foca nas mãos de uma pessoa segurando um feixe de correntes de ferro pesadas e enferrujadas. As correntes estão firmemente enroladas nos pulsos da pessoa, que estão algemados com cadeados dourados brilhantes, simbolizando a escravidão. A pele da pessoa é escura.
Legenda: Utilização da palavra bruaca como ofensa remete ao passado colonial brasileiro.
Foto: ThalesAntonio/Shutterstock.

Não à toa, alguns historiadores acreditam que a palavra se referia a mulheres escravizadas que transportavam a bruaca – saco ou bolsa – nas costas. O termo pejorativo vem daí, referindo-se a mulher feia, grosseira, vulgar, ignorante ou fofoqueira.

Entre o sabor genuinamente caseiro até ressonância no comportamento social, a bruaca segue tímida, mas querida. Singela e tão poderosa quanto.

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