Aos 79 anos, Lia de Itamaracá, 'rainha da ciranda', segue em plena atividade no Brasil e no exterior
Após passagem por Fortaleza, a artista pernambucana se prepara para série de homenagens e novidades em 2024, ano em que completa 80 anos
Prestes a completar 80 anos, a cantora, compositora e dançarina pernambucana Lia de Itamaracá se prepara para viver um dos anos mais intensos de sua carreira. O 2024 de Lia promete ser cheio de música, dança e reverência às contribuições da artista à cultura popular brasileira. O aniversário será, também, oportunidade para celebrar os mais de 40 anos de carreira da cirandeira, que segue evoluindo musicalmente e cativando novos fãs.
O novo ano começará com um festival que celebra sua trajetória artística, em janeiro, na Ilha de Itamaracá. Depois, Lia protagoniza uma série de homenagens no Carnaval: abre o festejo e é homenageada em Natal (RN); é tema de samba-enredo das escolas de samba Império da Tijuca (RJ) e Nenê de Vila Matilde (SP) e encerra o Carnaval do Recife (PE), onde também é homenageada.
Veja também
E esse é só o começo. Ao longo de todo o ano que vem, a rainha da ciranda realiza diversos outros eventos, de ações temáticas alusivas aos 80 anos de vida a turnês internacionais nos Estados Unidos e na Europa. Uma série televisiva sobre a vida da artista também está nos planos de gravação para 2024, com previsão de lançamento para o mês de dezembro.
Entre os títulos que Lia recebeu ao longo das últimas décadas estão o de Patrimônio Vivo de Pernambuco e o de Doutora Honoris Causa da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Receber “flores em vida”, como pontua o empresário e produtor Beto Hees, que acompanha Lia há quase 30 anos, é de grande importância não só para Lia, mas também para a equipe que faz todas essas atividades acontecerem – cerca de 30 pessoas – e para o legado da cultura popular nordestina.
“É uma mulher negra, da cultura popular, de uma ilha do Nordeste. [É importante] que ela vivencie isso, não que depois que ela morra alguém coloque o nome dela numa rua, numa praça de Itamaracá. Não: ela está vivenciando essas homenagens todas”, celebra Beto.
As flores parecem ter se multiplicado nos últimos quatro anos, após o lançamento de “Ciranda sem Fim” (2019), álbum mais recente da artista. Mesmo com a interrupção das apresentações presenciais por conta da pandemia de covid-19, o disco foi responsável por uma nova fase na carreira de Lia, tanto pela sonoridade moderna, que une a tradição da ciranda e do coco de roda a batidas eletrônicas e uma produção musical refinada e moderna, feita pelo DJ Dolores, quanto pelo reconhecimento mundo afora.
A ciranda não se acaba não. É um ritmo forte, é uma música forte, né? O pessoal gosta muito. Essas músicas de agora, o pessoal pouco se liga. Se liga mais na ciranda, em ver como é o ‘andamento’. Principalmente os jovens de hoje, que querem ver uma coisa diferente
Para Lia, a mistura de ritmos é o segredo do sucesso do disco. “Teve muita mistura. Foi gravado em eletrônico e para mim foi muito bom, porque eu aprendi mais coisa ainda, além do que eu já sabia”, destaca. “O que mudou para mim [depois do lançamento] foi ganhar o mundo, sair com a música pro mundo pra mostrar ao povo que Lia existe”, completa.
A turnê de divulgação do trabalho, que segue no Brasil e no exterior, levou a artista para lugares que ela nem imaginava conhecer. Além de dezenas de shows pelo País, “Ciranda sem Fim” foi apresentado na Alemanha e França, por exemplo, resgatando e ampliando a relevância de ritmos tradicionais sem deixar de entregar um frescor necessário para que a cultura popular se destaque em meio às novas formas de consumo de música.
“Como tem eletrônico, é diferente da ciranda de ritmos. E aí vem muita música, bolero, muita coisa boa”, explica Lia, que conta que o trabalho mais recente tem trazido novos fãs, “um público amado, gostoso”. “A ciranda não tem preconceito, dança todo mundo. Também tem esse lado”, conclui.
Duas mil pessoas na ciranda de Lia
Em passagem por Fortaleza, onde participou da conferência de abertura do Seminário Sesc Etnicidades, ao lado de Cacique Pequena, e fez um show na Estação das Artes, em parceria com a cantora Daúde, Lia conversou com o Diário do Nordeste sobre a rotina agitada pós-pandemia.
“O meu esposo já disse a mim: ‘ó, Lia, tua casa é o avião, tu não para em casa’. Eu digo a ele: meu filho, quando você me conheceu, eu já era artista, agora aguente”, brinca, sobre a reação de seu José Antônio, companheiro há 37 anos, e a intensa agenda de viagens para shows, seminários, entrevistas e outros projetos.
Se depender dela, o descanso e a vida tranquila a dois ainda demorarão um pouco para chegar. “Daqui pra frente, Deus é quem sabe. Eu quero ver até onde eu posso chegar. Sonho tem demais”, afirma.
É no palco que Lia abre seus maiores sorrisos e esbanja bom humor. Na Estação das Artes, dois mil fãs – a lotação da casa – prestigiaram Lia, Daúde e a banda que compõe o projeto “Ciranda do Mundo”, uma das três formações de músicos que acompanham a artista, a depender da logística.
Lá, cantou ciranda, coco e maracatu, disse que não vê a hora de tomar mais doses de vacina contra a covid-19 e ressaltou que “vai se amostrar bem muito” nas escolas de samba do Rio e de São Paulo em fevereiro do próximo ano.
O público refletiu a animação e a diversidade das músicas: pessoas de todas as idades, inclusive crianças e bebês, davam as mãos em cirandas e pisavam forte na levada do coco. Lia encerrou o show com a música “Minha Ciranda”, um clássico de seu repertório, lembrando que a ciranda, em qualquer lugar do mundo, "é de todos nós".
Guardiãs da Ciranda
"Minha Ciranda", um dos momentos mais aguardados dos shows de Lia de Itamaracá, ficou ainda mais especial na apresentação em Fortaleza. Isso porque a artista cantou e dançou com o grupo de cirandeiras cearenses mirins “Guardiãs da Ciranda”, que Lia conheceu na última vinda à Capital, em março de 2020, antes do primeiro lockdown ser decretado.
“Agora já tão tudo grande, menina! Tudo dançando ciranda, fizeram uma festa grande quando me viram. Eu vi elas pequenininhas e já estão tudo mocinha”, comemorou a artista. “Essa é a continuação do Brasil mais tarde. As meninas estão prontas. Coloquei no palco para todo mundo ver”.
Criado em 2017, o grupo "Guardiãs da Ciranda" reúne 40 meninas e jovens mulheres que, em ensaios na escola Maria Dolores Petrola de Melo Jorge e no Conjunto Habitacional Leonel Brizola, celebram a obra das grandes cirandeiras brasileiras.
O projeto é coordenado pelo estudante de serviço social Helber Rocha e a estudante de pedagogia Juliana Lima, ambos da Universidade Estadual do Ceará (Uece). "É um trabalho único em Fortaleza, na escola pública", destaca Helber, que se interessou pelo ritmo a partir da vivência em territórios quilombolas de Caucaia, onde cresceu e aprendeu a perpetuar tradições.
"É a ciranda da inclusão, porque o trabalho que a gente realiza da ciranda não é só botar as meninas para dançar. A gente tem as oficinas, a gente trabalha contra a intolerância religiosa, a gente trabalha a questão do preconceito, contra o racismo, isso tudo dentro do ambiente escolar", explica.
Quando as meninas saem da escola de Ensino Fundamental, acabam passando o conhecimento para outra escolas e espaços. Assim, uma rede de cirandeiras tem se formado. "Isso contribuiu muito para o crescimento do grupo, o que é muito gratificante", completa Helber.
Para ouvir
Além de “Ciranda sem Fim” (2019), dois outros álbuns de Lia de Itamaracá, “Eu Sou Lia” (2000) e “Ciranda de Ritmos” (2008) também estão nas plataformas digitais de streaming. O primeiro disco, “Rainha da Ciranda” (1977), pode ser conferido no canal do YouTube da artista.