Diferentemente do que se pensa, a Semana de Arte Moderna de 1922 e a Padaria Espiritual foram movimentos bastante distintos. Não houve intersecções diretas ou influências entre os dois. O primeiro – cujo centenário acontece de 13 a 17 de fevereiro deste ano – foi um evento nos campos da literatura, pintura, escultura e música, organizado por jovens artistas e patrocinado pela elite cafeeira paulista.
O segundo, por sua vez, firmou-se como agremiação cultural surgida no final de maio de 1892 nas cadeiras do Café Java, quiosque estilo Art Nouveau localizado na Praça do Ferreira – Centro de Fortaleza. O espaço concentrava boêmios, artistas e literatos que debatiam as novidades das letras da época. Eles publicaram um jornal intitulado O Pão, com 36 edições, veiculado entre 1892 e 1896.
Redescobrir essas iniciativas – além de corrigir uma interpretação equivocada sobre a relação entre ambas – ajuda a ampliar olhares a respeito do Brasil contemporâneo. Afinal, onde reside a importância da Semana de 22 e da Padaria Espiritual hoje? É possível mensurar os reflexos em nosso cotidiano a partir da compreensão sobre o que, de fato, elas foram?
Professor, escritor, jornalista, publicitário e pesquisador da cultura cearense, Gilmar de Carvalho (1949-2021) refletiu sobre a agremiação local na apresentação da segunda edição do livro “Padaria Espiritual - Biscoito Fino e Travoso”, de Gleudson Passos. Segundo o estudioso, o grupo “vai representar a emergência das camadas médias”.
Nesse sentido, os padeiros – como eram chamados os integrantes do grêmio – eram herdeiros de uma tradição oriunda dos engajados na luta pela libertação dos escravos, dos que fizeram a República e sentiam o peso oligárquico. Para Gilmar, essas ideias “ainda hoje ecoam como um alvoroço impregnado da descoberta do mundo na República (velha) das Letras”.
Gleudson Passos corrobora a visão ao afirmar que a Padaria está intimamente ligada à atualidade, sobretudo no que diz respeito à participação da população nas decisões públicas, em questões relacionadas à democracia. “Naquele momento, a Padaria Espiritual estava preocupada com o novo regime político que estava surgindo no país, a República, para que não perpetuasse vícios oligárquicos – como foi o que, de fato, aconteceu”, examina.
O professor do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História, Cultura e Espacialidades da Universidade Estadual do Ceará conecta os ideais do movimento até mesmo à campanha de vacinação contra a Covid-19 no País. De acordo com Gleudson, o fato de termos demorado tanto a receber as doses é reflexo dos privilégios de parte da classe política, grupos militares e setores do poder Judiciário.
“A Padaria Espiritual denunciou isso, essa cultura de privilégios do passado que ainda hoje se perpetua. É algo que, mesmo 130 anos depois do surgimento da agremiação, temos necessidade de atualizar no debate contemporâneo”.
Perspectivas sobre o Brasil
Há mais. Passos defende uma nova leitura da produção estética da Padaria Espiritual a fim de compreendermos como outros intelectuais fora do circuito Rio-São Paulo pensaram o Brasil. Muitos cearenses foram admiradores da diversidade e da riqueza populacional tupiniquim, considerando as influências dos povos que nos formam.
Assim, revisitar a Padaria Espiritual, principalmente considerando a Semana de 22, é importante para fazer justiça a outros olhares que existiram sobre o país distante dos locais considerados hegemônicos.
“Do ponto de vista artístico, podemos considerar que, sim, os dois movimentos possuem similitudes – sobretudo envolvendo questões estéticas e preocupações relacionadas ao ambiente local, regional e nacional, da língua vernácula e da cultura popular. Porém, no que diz respeito a redescobrir a Padaria Espiritual, reitero que isso seja feito urgentemente. É outra perspectiva sobre a nação, quando a que prevaleceu foi a da Semana de 22”.
Doutor em Letras pela Universidade Federal do Ceará e roteirista de HQs, Charles Ribeiro Pinheiro destaca que a Padaria Espiritual não teve nenhum tipo de antecipação estética ou formal com o modernismo de 1922. “Ela foi um grêmio cujos escritores possuíam uma diversidade de estilos literários, indo do parnasianismo ao realismo, do naturalismo ao simbolismo”, descreve.
Citando o professor Sânzio de Azevedo, o estudioso também chama a atenção para o fato de a Padaria ter sido uma das grandes responsáveis por divulgar o simbolismo no Brasil. Ao examinar o Programa de instalação do grupo, Sânzio – que publicou vários livros e artigos sobre o tema – notou haver um item que exalta o emprego de termos da fauna e flora brasileira em detrimento de elementos estrangeiros, muito usados pelos poetas da época.
“O professor afirma que esse e outro item antecederam preocupações nacionalistas, ponto crucial no movimento modernista brasileiro. Porém, foi só essa menção relacionada a dois itens do Programa de instalação. Apenas isso não caracteriza uma suposta procedência modernista”, pontua Charles.
O desejo de expressar a natureza, a fauna e a cultura do Brasil, na verdade, remete mais ao projeto estético do Romantismo do que ao Modernismo. No século XIX, o Ceará desenvolveu uma forte tradição nacionalista/regionalista e telúrica. Há muitas obras ditas regionalistas, a exemplo da de Araripe Júnior (1848-1911), Rodolfo Teófilo (1863-1932) e Domingos Olímpio (1851-1906). Entretanto, tanto no jornal O Pão quanto na produção literária dos “padeiros”, nada há de modernista. “Eram essencialmente parnasianos, simbolistas, naturalistas e realistas”, reitera Charles Ribeiro.
Negação aos ideais da Semana de 22?
Levando em consideração esses aspectos, a principal relação existente entre a Padaria Espiritual e a Semana de Arte Moderna seria de negação. Conforme Charles, na década de 1920 os padeiros já eram homens maduros. Antônio Sales (1868-1940), por exemplo, tinha quase 60 anos quando tomou conhecimento do Futurismo e do Penumbrismo.
“Num primeiro momento, ele criticava e rejeitava os textos produzidos pelos jovens poetas cearenses que teimavam em escrever conforme essas ‘novas estéticas’. A Padaria Espiritual composta por realistas, naturalistas, simbolistas e parnasianos formava uma geração artística que foi combatida pelos iconoclastas modernistas de 1922”, compara.
Hoje, a agremiação cearense só não é tão conhecida no País devido às dificuldades editoriais em reeditar o jornal O Pão e os livros do padeiros, fazendo com que a circulação das obras de importantes escritores seja muitas vezes restrita ao nosso Estado. “São necessárias iniciativas particulares e públicas para fomentar, publicar e distribuir esse valioso tesouro literário”.
Historicamente falando, no começo da década de 1890 Fortaleza vivia outro clima cultural e político. O Brasil tinha acabado de proclamar a República e a cidade vivenciava a Belle Époque, de inspiração francesa. Havia a circulação de livros europeus. Logo, os escritores liam revistas, jornais e obras vindos diretamente da França e de Portugal. Estavam antenados com o que ocorria fora da terra-mãe.
Mas essa ideia da leitura e da pesquisa estética, dos debates e escritas de textos sobre livros literários e filosóficos da Europa, já ocorria no Ceará desde a década de 1870. Ou seja, não foi algo exclusivo da Semana de 1922. Em suma, a Padaria Espiritual foi a reunião de uma geração da boemia literária de Fortaleza, muito caracterizada pelo humor e pela irreverência.
“O riso era um mecanismo para escandalizar a sociedade e tirá-la do marasmo cultural – pelo menos na primeira fase da agremiação, até 1894”, situa Charles. “Eles escreviam no jornal O Pão textos engraçados, enigmas, paródias, poemas que tratavam do cotidiano da capital, crônicas ácidas. Havia muita festa nos saraus promovidos por eles, soltavam balões com frases e poemas, andavam com um enorme pão pela cidade, agitavam os bondes”.
Muito da irreverência da Padaria deve-se a uma característica da molecagem cearense, presente também na literatura, mencionada por Adolfo Caminha no romance “A normalista”. Já a ironia, paródia e iconoclastia dos artistas da Semana de Arte Moderna de 1922 – principalmente a leitura de poemas que ridicularizavam os poetas parnasianos e simbolistas – é algo oriundo dos programas estéticos, manifestos e até de uma postura filosófica e política.
O Dadaísmo, por exemplo, não é apenas uma anarquia estética, mas carrega um componente de ruptura política contra as convenções artísticas e valores da tradição. No fim das contas, cada movimento estético e literário, Padaria Espiritual e Semana de 22, foram relevantes à própria maneira nas respectivas épocas.
“A defesa dos temas e valores nacionais foi um ponto específico no Programa de instalação da Padaria Espiritual. Então, dizer que a Padaria antecipou a Semana de Arte Moderna pelo quesito do nacionalismo seria um equívoco. Ao lermos o jornal O Pão e os textos e livros publicados pelos padeiros, não há nada que se possa aproximar, no sentido do estilo e da forma, das vanguardas europeias”, percebe Charles. “A Semana de Arte Moderna foi importante para a cultura brasileira e deve ser comemorada nesse sentido”.
Padaria em quadrinhos
Focando na agremiação cearense, o legado dela é expressivo, sendo o principal a luta incessante para promover a literatura e a cultura, utilizando-se do livro e do humor como armas contra a ignorância e o menosprezo às artes.
Os próprios padeiros atuaram a fim de democratizar a publicação de obras em Fortaleza, mas a tarefa foi muito difícil. Eles reclamavam da dificuldade de trazer a público esses trabalhos, de lançar novos escritores e da falta de recursos e de leitores na Capital. Até hoje, como se percebe, essa peleja não cessou.
Mas existem tentativas de reverter o quadro. O próprio Charles Ribeiro promove campanha de financiamento coletivo para publicação do livro “Padaria Espiritual em Quadrinhos” – primeiro projeto de outros nesse formato que o professor pretende desenvolver, englobando a História do Ceará e os movimentos estéticos.
A campanha no Catarse atualmente conta com quase 70 apoiadores e chegou a 13% da meta estipulada. Ela servirá para financiar os custos de edição e publicação do livro – a ser lançado de forma independente e com envio previsto aos colaboradores a partir de agosto deste ano.
Além da pesquisa e roteiro de Charles, as artes são assinadas por Luís XIII (artista cearense com trabalhos nos EUA, Canadá e França) e Talles Rodrigues, ilustrador e designer gráfico, autor de “Cortabundas: o maníaco do José Walter” e vencedor do prêmio HQMix 2021 por “Mayara e Annabelle: hora extra”.
“Os quadrinhos podem ser um ótimo atrativo para fomentar novos leitores, principalmente crianças, adolescentes e jovens. Por isso, devido ao potencial expressivo, garantem a participação ativa do público e são excelentes meios de divulgar a literatura e a arte cearense”, festeja o roteirista.
Celebrar o momento
O professor Gleudson Passos finaliza as considerações sobre o tema ao responder à questão: de que forma podemos melhor celebrar a Padaria Espiritual em meio às comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna? Segundo ele, “conhecendo e rememorando os movimentos por meio de publicações, roteiros etc”.
“Há um vasto acervo sobre a Padaria Espiritual no que diz respeito a pesquisas já realizadas. O que carece agora – principalmente dos produtores culturais e profissionais ligados ao Cinema, ao Design e ao Jornalismo – é trazer à tona esse debate à população cearense e brasileira sobre o que foi o grêmio cearense de 1892. Assim, conheceremos a contribuição artística, estética, intelectual e cultural que a Padaria Espiritual deixou, não apenas para o patrimônio cultural cearense, mas para todo o Brasil”, conclui.