Em 70 anos de trajetória na TV brasileira, as novelas reúnem um seleto grupo de personagens que vão "além da imaginação". Dessa lista inusitada emergem seres mágicos dos mais diversos tipos e origens. Em meio ao sucesso da refilmagem de "Pantanal", o público se depara mais uma vez com uma ficção repleta de elementos fantásticos.
A lenda de Juma (Alanis Guillen) e Maria Marruá (Juliana Paes) voltou a causar nas telinhas. Em cena, a saga da mãe e filha que se transformam em onça quando estão ameaçadas. Além das poderosas felinas da história, “Pantanal” ainda reserva a participação do Velho do Rio (vivido por Osmar Prado).
Capaz de se metamorfosear em sucuri, esta misteriosa figura circula pelas matas, como uma espécie de entidade protetora. Estas ideias saíram da caneta de Benedito Ruy Barbosa, autor original da obra.
Além de proximidades com o folclore pantaneiro é possível pinçar referências do cinema com a obra “Sangue de Pantera” (1942). Este filme ganhou remake em 1982 e fala de uma linhagem de mulheres-pantera, que, quando emocionalmente excitadas, mudam fisicamente para criaturas assassinas.
Transilvânia brasileira
"Mistérios da Meia-Noite. Que voam longe. Que você nunca. Não sabe nunca. Se vão se ficam. Quem vai quem foi...". Bastava a voz de Zé ramalho anunciar ecoar em "Roque Santeiro" (1985) para o susto ser garantido. "Mistérios da Meia-Noite" era o tema do professor Astromar Junqueira (Rui Resende).
Em noites de lua cheia, o lobisomem atacava as mulheres de Asa Branca e a explicação do caso só veio no capítulo final. O sensível e misterioso professor era realmente a vil criatura. Os licantropos também fizeram escola em "Saramandaia" (falaremos mais daqui a pouco desse sucesso). Entretanto, mesmo com o apelo lendário, foram os vampiros que tiveram uma novela exclusiva.
Diretamente dos Balcãs, os sugadores de sangue (não confundir com ano eleitoral) desembarcaram no horário das 18h. "Vamp", de Anônio Calmon dominou as atenções da juventude anos antes da "Saga Crepúsculo". Transmitida originalmente em 1991, a comédia protagonizada por Natasha (Claudia Ohana) e Vlad (Ney Latorraca) ganhou inúmeras reprises. Em cena, tempero pop, homenagens ao cinema de vampiros e personagens fora da casinha.
Falsos fantasmas
Ao longo das décadas, seres exóticos conquistaram o carinho do Brasil. Dos roteiros saltaram fantasmas, vampiros, lobisomens, mutantes, telepatas, assombrações... Boa parte destes fenômenos costuma não ser explicado por autores e autoras. Em contrapartida, as novelas também exploram personagens que são pessoas comuns na história, mas fingem se passar por alguma visagem.
É o caso da Mulher de Branco (novela "Tieta") e Cadeirudo ("A Indomada"). Ambos atacavam homens e mulheres das fictícias Santana do Agreste e Greenville. A semelhança possui uma explicação. Os personagens foram criados por Aguinaldo Silva e Ricardo Linhares e os bons índices de audiência demarcavam a curiosidade acerca da real identidade da dupla.
A volta dos que não foram
Sim, almas teimaram em retornar do além para garantir o burburinho do público. Desse grupo constam dois populares e antagônicos personagens. Enquanto Jorge Tadeu (Fábio Júnior) tinha a missão de garantir o amor das mulheres em "Pedra Sobre Pedra" (1992), o Alexandre (Guilherme Fontes) de "A Viagem" (1994) queria vingança a todo custo.
Refilmagem de uma produção de 1975 (escrita por Ivani Ribeiro), "A Viagem" conduz elementos da doutrina espírita para contar uma história de perdão, amor e redenção. Na versão anos 1990, Alexandre cria toda categoria de assombração para concretizar seus planos. Até uma moto possuída pelo mal fez parte da novela.
Menos amargurado, o fotografo Jorge Tadeu (Fábio Júnior interpretando ele mesmo, diga-se) reencarnava de maneira inusitada. As mulheres de Resplendor voltavam a receber os carinhos do fantasma quando comiam a “Flor de Jorge Tadeu”. A presepada se popularizou e os antúrios (nome real da planta) ganharam destaque sem igual na teledramaturgia.
Poderes da mente
Com o sucesso garantido em "Vamp", a Rede Globo quis manter a fatia dos jovens em frente da TV. "Olho por Olho" (1993) trouxe uns paranormais bizarros, cujo poder era perceptível a partir de luzes nos olhos. Os efeitos especias ganharam destaque, porém a história que ainda misturava uma organização criminosa, padres e demônios não engatou como esperado.
Em sua última novela, Dias Gomes (1922-1999) trouxe Joazinho de Dagmar (Paulo Betti) em "O Fim do Mundo". O vidente previu a extinção do planeta e a revelação alterou todo o cotidiano da cidade Tabacópolis. Destaque para o tema musical assinado por Paulinho Moska.
Realismo fantástico
“Saramandaia” (1976) é considerado um marco na tradição noveleira de explorar elementos mágicos e inexplicáveis. Da cria do romancista Dias Gomes saíram, entre outros personagens, um professor que vira lobisomem, um protagonista com par de asas, a mulher que come até explodir e um coronel que põe formigas pelo nariz.
Em plena Ditadura Militar (1964-1985), estes aspectos mágicos aproximavam a inexistente Bole-Bole da realidade do País naquele momento. “Inspirado no realismo fantástico, Dias Gomes apresentou um painel de personagens exóticos para, por meio da ficção, abordar questões políticas, culturais e socioeconômicas, transformando a cidade fictícia da novela em um microcosmo do Brasil”, explica sinopse do site Memória Globo”.
A partir de “Saramandaia”, uma nova linguagem passou a fazer parte da teledramaturgia brasileira. Estilo literário em ascensão na América latina, o realismo fantástico foi a forte influência na construção do universo imaginado por Dias Gomes. Especialmente o livro “Cem anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez (1927-2014).
Da literatura à TV
No artigo "A subjetividade do Fantástico na Literatura" (2005), o professor e escritor cearense Batista de Lima traz conceitos e observações a respeito da possibilidade de explorar esse mágico ou fantástico na ficção.
“O chamado realismo fantástico permite que a realidade e fantasia andem juntos. Geralmente, a porta de entrada para o mergulho no fantástico se instaura numa situação real. Mas no momento em que ocorre a ruptura das leis naturais e se entra em um mundo que só nossa imaginação pode conceber, aí ocorre o fantástico”.
Para Batista de Lima, outros expoentes são “Macunaíma” (Mário de Andrade) e “Grande Sertão: Veredas” (Guimarães Rosa). Em chão cearense essa força literária conta com a pena de José Alcides Pinto (1923-2008), Nilto Maciel (1945-2014) e Carlos Emílio Correia Lima (1956-2022).