Suposto vazamento do Enem pode resultar em prisão, multa ou perda de cargo público, dizem advogados

Previsão de questões é comum, mas investigação deve desvendar como análise do banco de questões foi feita.

Escrito por
Clarice Nascimento clarice.nascimento@svm.com.br
Visão em close de múltiplas capas de cadernos de prova e folhas de instrução do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem 2025. O design é padronizado, com o logotipo Enem 2025 em destaque e informações sobre a prova de Ciências da Natureza e de Matemática, Caderno Verde, Caderno Cinza, e as instruções de preenchimento.
Legenda: Três questões aplicadas no segundo dia de aplicação das provas do Enem foram anuladas pelo Inep após suposto vazamento.
Foto: Divulgação/Angelo Miguel/MEC

Suspeita de vazamento e similaridade de questões do Exame Nacional do Ensino Médio 2025 vem afligindo a vida de centenas de candidatos que prestaram a prova em todo o Brasil. Nesta terça-feira (18), três questões foram anuladas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). 

Desde segunda-feira (17), quando o episódio estourou nas redes sociais, estudantes manifestam suas opiniões exigindo anulação e investigação do caso, e questionam a isonomia do processo seletivo. Além disso, muitos levantam a seguinte dúvida: existem punições para quem se envolve em casos de vazamento como esse? 

Segundo especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste, ainda é cedo para determinar de quem é a responsabilização do suposto vazamento. O que se sabe, até o momento, é que um estudante de Medicina afirmou ter “previsto” questões das provas de Matemática e Ciências da Natureza, realizadas no domingo (17). Não há detalhes sobre envolvimento de servidores. 

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Prever o Enem não é de agora

Compreender e ‘desvendar’ como são cobradas e elaboradas as questões de concursos públicos é comum atualmente. “Existem diversos cursinhos preparatórios que estudam essas bancas organizadoras de concurso de forma cuidadosa e sistemática para verificar os assuntos mais cobrados. Isso não é passivo de qualquer punição, seja administrativa ou criminal”, explica o advogado e membro da Comissão de Estudos em Direito Penal da OAB-CE, Assis Carvalho. 

No entanto, é preciso entender de que forma foi realizada essa análise do banco de questões do Enem. Isso será viável por meio da investigação da Polícia Federal, que deve realizar diligências para possíveis esclarecimentos. 

“Os envolvidos devem dar suas versões do que aconteceu e, partir daí, a PF vai ter uma melhor compreensão e poder avaliar quais diligências podem ser realizadas”, afirma. E, se houver um indício de vazamento e fraude do certame, é possível que seja deflagrada uma operação, em algum momento, explica ele. 

O advogado especializado em Direito Educacional Célio Müller explica que o Enem tem como responsáveis diretas as autoridades públicas como MEC e Inep. Se for constatado, a partir das investigações, o descumprimento de regras e dos princípios da legalidade e moralidade, podem existir punições como perda de cargo público e punições criminais. 

Contudo, se for constatada a negligência da administração pública diante dos pré-testes, não há possibilidade de punição administrativa. “Se foi estudada e compreendida a forma como a banca cobra as questões no Enem, não vejo como seja possível a punição do suposto envolvido nem de quem eventualmente elaborou a questão ou aplicou”, completa Assis Carvalho. 

Imagem mostra reprodução de questão supostamente vazada do Enem 2025.
Legenda: Edcley publicou nas redes sociais comparativos entre as questões "autorais" e as "oficiais" do Enem.
Foto: Reprodução/Instagram

Célio Müller também reforça que a decisão de anular as questões foi “inevitável e sensata”, mas, até o momento, a resposta das autoridades públicas foi “inconclusiva e superficial”. “O Inep se limitou a informar que as três questões estariam canceladas devido a essas evidências, mas não apontou dentro da sua resposta o que aconteceu, quais são os responsáveis, qual a natureza da apuração”, pondera. 

O instituto afirmou em comunicado oficial, publicado junto ao anúncio da anulação das questões, que o órgão federal foi acionado para “apurar a conduta e autoria na divulgação das questões e garantir a responsabilização dos envolvidos por eventual quebra de confidencialidade ou ato de má-fé pela divulgação de questões sigilosas de forma indevida”.

Até a manhã desta quarta-feira (19) a PF disse em nota ao Diário do Nordeste que “não confirma nem se manifesta sobre eventuais investigações em andamento”.

O que diz o Código Penal?

O advogado Assis Carvalho explica que um dos crimes que pode ser imputado a quem pratica qualquer tipo de fraude em provas públicas é o previsto no artigo 311-A, introduzido no Código Penal pela Lei n.º 12.550 de 2011. 

O crime envolve utilizar ou divulgar indevidamente conteúdo sigiloso de um certame, com o objetivo de beneficiar a si ou a outrem, ou de comprometer a credibilidade da prova. Essa conduta punível vale para:

  • Concurso público;
  • Avaliação ou exame públicos;
  • Processo seletivo para ingresso no ensino superior;
  • Exame ou processo seletivo previstos em lei.

A pena para este crime é de um a quatro anos de reclusão e multa, e ela alcança tanto quem comete a fraude quanto quem permite ou facilita o acesso indevido a informações sigilosas. 

O Código também prevê agravantes que resultam no aumento da reclusão para dois a seis caso a ação ou omissão resulte em dano à administração pública, e acréscimo de um terço se o fato for cometido por funcionário público. 

Além disso, é possível que se desenrole outros tipos penais, como associação ou organização criminosa, a depender da investigação, das particularidades do caso e a habitualidade que é cometido, explica Assis. 

Foi dessa forma que um professor do Ceará foi condenado em 2011 após a constatação de que houve acesso antecipados a questões que seriam aplicadas na edição daquele ano e distribuiu um simulado aos alunos. Estudantes da instituição tiveram suas provas canceladas e reaplicadas dias depois. 

Na época, o episódio polêmico levou a uma investigação da Polícia Federal e denúncia do Ministério Público Federal. A sentença do cearense determinava reclusão de quatro anos e pagamento de multa com base no artigo 311-A e mais dois anos de reclusão pelo crime de estelionato, previsto no artigo 171. Anos depois, a condenação foi anulada

Investigação do caso

Em entrevista exibida na TV Verdes Mares, na noite desta terça-feira (18), o ministro da Educação Camilo Santana afirmou que a anulação das perguntas foi a medida tomada como providência técnica ao caso e para garantir a isonomia dos candidatos que realizaram a prova. Esse procedimento não é incomum e já faz parte da metodologia do exame. 

Quando uma questão é anulada pelo Inep, ela é retirada do cálculo final e deixa de impactar a Teoria de Resposta ao Item (TRI), modelo usado para definir a nota do Enem.

A TRI recalcula a nota com base nas demais respostas, sem gerar vantagem ou prejuízo. O peso das outras questões é redistribuído de forma equilibrada para manter a coerência do modelo.

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Denúncias no MPF

Conforme apuração do Diário do Nordeste, há pelo menos uma denúncia no Ministério Público Federal realizada contra a suspeita de vazamento. A queixa foi formalizada pela mãe de uma aluna cearense que prestou o Enem 2025-. 

“Estamos nos sentindo lesadas. Só Deus sabe o tempo que ela perdeu raciocinando, o esforço que ela teve para acertar uma questão dificílima – e que foi disponibilizada na live”, disse à reportagem. Ela opina que “é preciso que algo seja feito” em relação ao suposto vazamento. 

Nas redes sociais, o cearense publicou um vídeo na manhã desta quarta-feira (19) afirmando que estava tranquilo diante da repercussão e negou qualquer irregularidade. Em tom descontraído, Edcley Teixeira disse receber milhares de mensagens, mas garantiu que não teme o avanço das investigações. 

Horas depois, uma nota de esclarecimento foi enviada pela defesa de Edcley afirma que o estudante está “integralmente à disposição das autoridades competentes, ao mesmo tempo em que reitera seu compromisso com a verdade”. 

A defesa também informou que, até o presente momento, não obteve acesso formal a um inquérito policial ou a qualquer documentação do procedimento investigativo. “Tão logo tenha ciência e acesso, todos os elementos serão analisados com o rigor técnico exigido, a fim de que a verdade dos fatos seja restabelecida”, acrescenta.  

“A defesa técnica confia plenamente nas instituições e na Justiça, acreditando
que a apuração dos fatos confirmará a inexistência de qualquer ato ilícito por parte de Edcley de Souza Teixeira”, finaliza a nota.

Suspeita de vazamento

Um estudante de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) afirma que “previu” questões das provas de Matemática e Ciências da Natureza, realizadas no domingo (17). Edcley Teixera publicou nas redes sociais capturas de tela provando que adiantou a alunos questões idênticas às encontradas no Enem 2025.

Assuntos, abordagens e enunciados supostamente “autorais” do estudante apresentam os mesmos números e até a ordem das opções de respostas do Enem oficial. Cinco dias antes da prova, Edcley ministrou uma aula via Youtube resolvendo algumas das questões. Logo na segunda-feira (17), candidatos identificaram as similaridades e passaram a questionar o monitor. 

Imagem mostra reprodução de questão supostamente vazada do Enem 2025.
Legenda: Itens e gabarito da questão "autoral" de Edcley são idênticos aos da prova do Enem 2025.
Foto: Reprodução/Instagram

Em nota oficial publicada na terça-feira (18), o Inep informou que “ao identificar relatos de antecipação de questões similares às do Enem 2025, a equipe técnica que faz parte da comissão assessora responsável pela montagem das provas analisou as circunstâncias e decidiu, com base em informações sobre a montagem do teste, pela anulação de três itens aplicados na prova”.

Além disso, reforçou que “nenhuma questão foi apresentada tal qual na edição de 2025 do exame”, mas reconheceu que “na divulgação observada nas redes sociais, foram identificadas similaridades pontuais entre os itens”.

No X (antigo Twitter), candidatos impulsionaram a hashtag #ANULAENEM, afirmando que o episódio viola a isonomia do exame. Muitos afirmam que os alunos do cursinho tiveram vantagem indevida, em contraste com a rotina intensa de estudos enfrentada pela maioria ao longo do ano. 

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