Samba de Natal reúne centenas de pessoas em Fortaleza e vira patrimônio da cidade
Festa que antecede ceia ocorre há mais de 20 anos.
O que começou como uma simples reunião entre amigos há 23 anos, após uma partida de futebol, tornou-se um dos marcos culturais mais expressivos de Fortaleza. O Samba de Natal do bairro Pio XII, realizado anualmente todo dia 24 de dezembro, transbordou a comunidade para se consolidar como um evento que une música, identidade local e impacto social.
A semente do evento foi plantada por músicos e jogadores de futebol do bairro que buscavam uma forma de confraternizar no encerramento do ano. O empresário e músico JP Carvalho, de 40 anos, um dos organizadores que acompanha o movimento desde o início, relembra que a escala era mínima: o grupo não passava de 20 pessoas.
"A nossa reunião iniciou quando a gente tinha muitos amigos aqui que são jogadores, que jogavam fora, e os sambistas daqui do Pio XII. A gente se reunia para bater um racha de final de ano e depois vinha aquela resenha, né? Juntava os instrumentos e acabou começando a história que é hoje", explica.
Com o tempo, a festa que terminava no meio da tarde passou a se estender até o início da noite devido à alta adesão - mas, claro, com tempo de sobra para o início da ceia familiar.
Moradora do bairro, Kelma Parente é presença garantida no evento desde o início. Para ela, o fato de o movimento ser composto por vizinhos de longas datas cria a familiaridade necessária à sobrevivência da tradição.
"A gente tem muita cria do samba aqui no Pio XII, uma galera que gosta muito do samba. A gente nasceu com eles dentro de casa, literalmente. Era meu irmão com eles, na esquina de casa, no barzinho, estudando no mesmo colégio. Temos um carinho, um afeto muito grande", comenta.
Já Luan Brasil é a prova de que o Samba de Natal do Pio XII cresceu o suficiente para ultrapassar os limites do bairro.
"Um vai chamando o outro, e esse evento vem crescendo e se propagando ao longo dos anos. É só alegria e felicidade. Eu não moro aqui, já sou convidado dos amigos, mas já aproveito com eles há três anos", relata.
Maior visibilidade ao samba
O evento ganhou maiores proporções ao atrair talentos do samba cearense que nasceram ou possuem raízes no bairro, como Felipim, Dipas e Kildare Ferreira. Essa concentração de nomes conhecidos transformou a esquina da Rua Cruz Abreu em um polo de atração para fãs de toda a cidade.
Para JP Carvalho, essa adesão é fundamental para fortalecer o gênero em um estado onde o forró predomina, ajudando a profissionalizar e desmistificar a figura do sambista.
“Isso valoriza tanto o músico nascido aqui no bairro quanto aqueles que iniciaram. O samba hoje está rentável porque chegou essa qualidade e responsabilidade. Mostramos que temos talentos e qualidade para absorver essa demanda, que não é algo isolado de Rio e São Paulo”, destaca o organizador.
O cantor e compositor Dipas, na cena artística de Fortaleza desde 2003, conta que sua geração foi influenciada diretamente pela tradição de sambistas do Pio XII, que se tornaram referência para os músicos mais jovens.
“Eu tenho 37 anos, mas quando comecei a tocar não tinha a internet como tem hoje, que a gente procura os vídeos, acha e já aprende a tocar. Então, a gente aprendia a tocar indo ver os shows”, lembra.
Segundo Dipas, a festa se popularizou especialmente nos últimos anos, depois que o período crítico da pandemia da Covid-19 foi superado. “A gente obviamente não fez na pandemia, e de repente a galera foi vendo os stories na internet e voltou cheia de saudade do samba de Natal, começou a lotar”, conta.
Solidariedade e impacto social
Além da música e do lazer, o Samba de Natal possui um viés filantrópico. Embora o acesso seja gratuito e aberto ao público, a organização promove uma arrecadação de alimentos não perecíveis. O montante arrecadado é destinado a instituições locais, como o Patronato São João Batista e Lá Perto do Céu.
Mesmo com o crescimento, a estrutura mantém sua essência comunitária. O evento acontece de forma espontânea na calçada de um dos organizadores, conhecido como Neném, e conta com apoio operacional da Prefeitura de Fortaleza para a interdição da rua e instalação de banheiros químicos.
Patrimônio da cidade
Em novembro deste ano, a relevância do movimento foi oficializada pela Câmara Municipal de Fortaleza, que reconheceu a Roda de Samba do Pio XII como patrimônio cultural imaterial. Para os organizadores, o título é um divisor de águas que traz tanto alegria quanto um novo nível de dever com a comunidade.
"Foi um misto de alegria e muita felicidade, porque a gente trabalhou muito como músico para ter esse reconhecimento. É uma valorização, mas traz a responsabilidade de manter a essência de algo que é da comunidade, que não tem dono", afirma JP Carvalho.
Ele ressalta que o segredo do sucesso é manter o caráter público e democrático da festa: "Se a gente tornar algo muito privado, vai perdendo a essência da rua, do povo participar, daquele amigo que passou o ano todo longe e vem pelo samba. Envolve muito sentimento".
Agora, o projeto de lei Nº 160/2025 será encaminhado para análise do prefeito Evandro Leitão e, em caso positivo, se tornar legislação municipal.
Serviço
Samba de Natal
Rua Cruz Abreu, nº 993 - Pio XII
Entrada gratuita.