Por déficits de saúde e educação, crianças do CE perdem 39% do potencial de produzir na vida adulta
Estudo do Banco Mundial calcula como o acesso a políticas públicas na infância influencia no futuro dos cearenses
Criança com saúde plena e adolescente bem desenvolvido, com tempo e nível de educação ideais, formam um adulto saudável e 100% produtivo no mercado. No Ceará, porém, 39% desse potencial se perde devido a déficits no acesso às políticas públicas.
Um cearense nascido em 2019 deve alcançar, em média, apenas 61% do potencial que poderia ter ao completar 18 anos. O resto é desperdiçado, como calcula o Relatório de Capital Humano Brasileiro (RCHB) do Banco Mundial, divulgado nesta semana.
“O que aconteceria com a produtividade do trabalho se o Brasil oferecesse educação e saúde de qualidade a todas as crianças, em todas as partes do país?”
Para calcular o Índice de Capital Humano (ICH), que varia de 0 a 1, o estudo considera três indicadores:
- taxa de sobrevivência infantil até os 5 anos e ausência de déficit de crescimento (saúde infantil);
- anos de escolaridade ajustados pela aprendizagem (educação);
- taxa de sobrevivência na idade adulta (saúde).
O Ceará obteve ICH de 0,61 (61%), se igualando a estados como o Rio Grande do Sul e ultrapassando a média nacional, que chegou a 0,60. O Estado, inclusive, teve um dos melhores desempenhos: aumentou o ICH em 17,9%, entre 2007 e 2019.
Educação como caminho
O trunfo do Ceará para se aproximar de um cenário que favoreça o alcance do pleno potencial pelas crianças, é, sem dúvidas, o estudo, como pontua Ildo Lautharte, economista da Prática Global de Educação do Banco Mundial.
“O estado tem um indicador próximo aos governos do Sul, mas num contexto de vulnerabilidade social grande. Superar essas amarras é muito raro: baixo nível de renda e problemas estruturais de saúde andam juntos. Mas o Ceará conseguiu por causa da educação”, destaca.
O ICH surgiu da ideia urgente de ter uma medida que nos oriente sobre uma questão fundamental pros países pobres, que é ‘quais são os gargalos que as crianças enfrentam pra desenvolver suas habilidades?’. O sucesso de um país está nas pessoas.
Ildo explica que infância e adolescência são fases para adquirir habilidades “que servem de andaime para o crescimento profissional”. Para isso, é necessário haver, ao longo dos anos, “uma boa nutrição, um processo educacional completo e uma vida adulta livre de doenças”.
“Quando acumula capital humano, a criança ascende socialmente. Isso é necessário para que consiga escolher a vida que gostaria de viver. O relatório é importante para entender os gargalos para isso e conseguir reduzi-los”, pondera o especialista.
é o ICH de Fortaleza, mas a cidade é a 12ª entre as capitais. Para Lautharte,isso mostra que o principal crescimento de capital humano do Ceará se dá no interior.
Pandemia fez capital humano regredir
A evolução do ICH foi calculada considerando os anos de 2007 a 2019. Mas a chegada da pandemia pode ter alterado os resultados de forma significativa: segundo o relatório do Banco Mundial, o ICH brasileiro caiu de 60% para 54%, entre 2019 e 2021.
Com isso, cerca de 80 mil crianças podem sofrer déficit de crescimento no Brasil devido à pandemia. A estimativa também vale, com ressalvas, para os estados, de modo que o ICH do Ceará também deve ter caído do patamar de 61%.
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Quando a pandemia acabar é que poderemos mensurar os impactos. Mas eles vêm em 2 eixos do capital humano: na nutrição infantil, já que as escolas fecharam, e na mortalidade adulta, principal impacto da Covid. Todos os estágios da vida foram afetados.
Apesar disso, Ildo Lautharte pontua que o Ceará “tem algumas vantagens”, como “um sistema educacional bastante flexível e forte, que foca nas habilidades estruturais” das crianças. Outra vantagem “é a reforma do ICMS, que disponibiliza a maior parte dos recursos à saúde”.
O que é preciso, então, para reduzir esses efeitos negativos que fizeram áreas estruturais como saúde e educação regredirem?
“Grande parte das ações o Ceará já conhece, principalmente na educação básica. Talvez o principal desafio seja o ensino médio, que não tem o mesmo desempenho dos anos iniciais. É preciso um plano que entrelace várias áreas”, analisa o especialista do Banco Mundial.
“Nossas crianças, certamente, terão problemas no futuro”
Para entender os impactos da pandemia e como a pobreza na infância afeta a produtividade na vida adulta, o Diário do Nordeste conversou com Alesandra Benevides, doutora em Economia e coordenadora do Laboratório de Estudos da Pobreza (LEP) da Universidade Federal do Ceará (UFC) em Sobral.
Confira a entrevista completa:
De forma prática, como um repertório de pobreza na infância pode influenciar na vida profissional?
Vários estudosmostram que a primeira infância, até 5 anos, é uma fase crítica na nossa vida. Muitas habilidades se formam nessa fase. Nosso QI, por exemplo. Aumentamos o QI até 10 anos, depois disso, ele é o mesmo.
O adulto que passou por uma educação infantil, como creche ou escola, consegue uma produtividade maior. Alguns estudos mostram até que o salário pode ser maior.
Mas o que vale para termos uma produtividade maior na vida adulta não é simplesmente ter passado pela pré-escola – a qualidade da educação é o que importa. Então temos dois problemas: o acesso e a qualidade. O acesso no Ceará aumentou, mas e a qualidade?
É preciso habilidades não só cognitivas, de saber português, matemática, mas socioemocionais, cuja formação também tem uma fase crítica na primeira infância. Saber lidar com frustrações, ser resiliente, ter foco, saber trabalhar em equipe.
Sobral é citada pelo Banco Mundial como referência em educação, mas o cenário não se repete nos outros 183 municípios. Quais os desafios do Ceará em relação à garantia de educação igualitária?
Em Sobral, há uma preocupação com a continuidade das políticas públicas, o que é importante para que a cidade tenha esse destaque. Não só foram implementadas políticas acertadas, com base em ciência e dados, mas teve continuidade.
Hoje, 12 municípios participaram de um projeto piloto de monitoramento da educação infantil, em que observadores certificados acompanham as aulas para verificar que oportunidades a rede oferece àquelas crianças, a segurança, a inclusão e a acessibilidade.
É uma fotografia de como está a educação infantil, para que as redes municipais tenham um norte de que área precisa melhorar. O plano é estender para todos os municípios cearenses. É o primeiro passo para termos acesso de qualidade.
Que atrasos a pandemia pode ter provocado nessa relação educação da criança x produtividade do adulto?
As crianças tiveram que ficar em casa, perderam uma parte importantíssima da escola que é a sociabilidade, trabalhar em equipe, convívio com os professores, a hora do lanche. Tudo isso é trabalhado na escola.
A pandemia traz, além dessa falta de convívio, um reforço das desigualdades. As crianças precisaram ficar em suas casas, onde não tinham alimento, muitas vezes. Porque a escola é também lugar de se alimentar.
Esse déficit educacional, de convívio, de troca de habilidades, traz um prejuízo pra vida adulta. Essas crianças, certamente, terão problemas no futuro.