'Recusei emprego, não tinha com quem deixar meu filho': creches fechadas impactam educação e renda

Além de atrasos no desenvolvimento das crianças, falta dos espaços prejudica renda das famílias – principalmente de mães solo

Legenda: Ensino infantil presencial em Fortaleza será retomado gradualmente a partir de setembro
Foto: JL Rosa

Crianças matriculadas em creches públicas de Fortaleza devem retornar aos espaços, gradualmente, em setembro. A previsão é alívio para famílias – que têm visto o desenvolvimento dos pequenos e a renda das casas serem impactados há 17 meses.

Em meio à crise sanitária, social e econômica, Lucielia Santos, 48, precisa recusar as escassas ofertas de trabalho que recebe. O filho Isaac, de 2 anos, está matriculado em uma creche pública desde o início de 2020, mas nunca chegou a frequentá-la.

Creches fechadas Ceará
Legenda: Isaac, de 2 anos, está matriculado na creche desde o início de 2020, mas nunca chegou a frequentar a instituição
Foto: Arquivo pessoal

“Corri pra conseguir a vaga, consegui, mas ele não chegou nem a ir, porque começou a pandemia. A maioria das mães está como eu, sem sair pra trabalhar, porque não têm com quem deixar. Já recusei emprego por causa disso”, expõe a dona de casa.

54,3%
das crianças de 0 a 3 anos de domicílios mais ricos estavam nas creches em 2019, número que cai para apenas 27,8% entre as mais pobres, segundo o Anuário Brasileiro da Educação Básica 2021.

O sustento da casa vem dos bicos que o marido faz como pedreiro e servente, “mas não é todo dia, só quando aparece”. Quando a família toda adoeceu, recentemente, foi o auxílio emergencial de R$ 150 que “segurou as pontas”.

“Meu filho está com atraso na fala”

A todas as preocupações de Lucielia, soma-se mais uma: o desenvolvimento de Isaac. “Moro numa casa em cima, ele fica muito tempo trancado comigo, não interage com outras crianças. Sinto dó. Na escola, ele ia se desenvolver melhor”, opina.

O receio é compartilhado por Sílvia Freitas, 41, mãe de Jair, de 3 anos. O pequeno já passou mais tempo em casa do que na creche – só frequentou a instituição entre 1 e 2 anos de idade, e a pandemia chegou.

Em casa, sufocada com os problemas pessoais, financeiros e da própria pandemia, não consigo atender uma rotina adequada pro desenvolvimento do meu filho. Ele tem um atraso na fala, acredito que lá teria desenvolvido melhor.
Silvia Freitas
Mãe do Jair

Mãe solo de Jair e de um adolescente de 13 anos, Sílvia está sem emprego desde o nascimento do caçula, e a busca foi dificultada pela pandemia. Diante da falta de onde deixar os filhos, o desemprego fincou raízes ainda mais profundas na rotina.

Creches fechadas Ceará
Legenda: Mãe solo, Silvia tem dificuldades em buscar emprego por não ter com quem deixar Jair (2) e o irmão
Foto: Arquivo pessoal

“Pra nós, mães solteiras, é muito complicado: até acontece de ter uma vaga, mas como a gente vai, se não tem onde deixar eles? O que me mantém é esse auxílio, que é muito pouco. Conto várias vezes com a ajuda da minha família, senão seria mais uma pedindo comida nos sinais”, reconhece.

“A retomada exige acolhimento”, frisa especialista

Em Fortaleza, a retomada das atividades presenciais na educação infantil está prevista para iniciar em 8 de setembro, já na primeira fase, com os infantis III, IV e V. Na segunda etapa, serão incluídas as séries iniciais: infantis I e II.

Diante dos múltiplos impactos que o fechamento prolongado das creches tem sobre as crianças, um conceito se torna chave no planejamento da volta ao presencial: o acolhimento, como pontua Mariana Luz, CEO da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal (FMCSV).

O conteúdo programático é importante, mas não se pode ignorar que estamos há 1 ano e meio sem ver essas crianças. O nível de interação no ensino remoto não é suficiente. Precisamos estar abertos pra escutar ativa, empática, sobretudo na educação infantil.
Mariana Luz
CEO da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal

A FMCSV promove, no Brasil inteiro, a campanha #TáNaHoraDaEscola, defendendo que “a necessidade da volta às aulas presenciais é urgente”. Mariana justifica que “a etapa de educação infantil é de estruturação do cérebro e de criar bases como indivíduo”, possibilidade restrita às crianças durante a pandemia.

Sala de aula
Foto: Thiago Gadelha

“Os protocolos sanitários conhecidos já se provaram suficientes para fazer com que a sala de aula não seja um ambiente de proliferação da Covid. Precisamos priorizar quem mais precisa: não só as crianças, mas as famílias em vulnerabilidade”, reforça.

A especialista alerta que o adoecimento, a perda de familiares e da renda têm gerado um ambiente de estresse, sobretudo para as classes mais pobres, impactando diretamente as crianças. Além disso, a perda da escola como ambiente de proteção também preocupa.

Regressões no desenvolvimento, na expressão oral, nos relacionamentos sociais e até na nutrição foram notadas entre crianças na pandemia, aponta a FMCSV.

“A escola oferece segurança alimentar, muitas vezes a principal refeição de uma criança ou jovem é lá; além de auxiliar no aspecto socioeconômico, porque é onde o adulto deixa a criança para conseguir trabalhar. Há ainda a questão da violência doméstica, que cresceu imensamente na pandemia, e a escola é um importante canal de denúncia”, lista a CEO.

“Paciência, amor e carinho”

A Secretaria da Educação do Ceará (Seduc) lançou, na última quinta-feira (5), um guia estratégico para implementação do “contexto híbrido” e retorno ao ambiente escolar na Educação Infantil, para orientar os municípios em como proceder.

O documento prevê algumas das diversas situações com que os profissionais da educação devem se deparar no reencontro com os pequenos.

“O tempo de pandemia ampliou a relação e intensificou o vínculo das crianças com os familiares, e o retorno à escola é uma ‘pausa’ nesse vínculo. Há os que conhecerão as escolas pela primeira vez”, lembra o texto.

Creche em Fortaleza
Foto: Camila Lima

A Pasta orienta que “é preciso redobrar os cuidados com a adaptação” dos pequenos, e que “paciência, amor, carinho, olhar sensível, empatia e o não julgamento devem ser o norte para os planejamentos e o fazer pedagógico”.

A Seduc pontua, ainda, que “garantir os direitos de aprendizagem das crianças e promover equidade nas ações de retorno ao presencial e implementação do contexto híbrido” são algumas das ações prioritárias.

A reportagem questionou a Secretaria de Educação de Fortaleza (SME) sobre quais estratégias têm sido planejadas para garantir o retorno seguro das crianças aos centros educacionais, se elas diferem dos protocolos já conhecidos para os mais velhos e quantos pequenos aguardam vaga, hoje, na Capital. Não houve resposta até esta publicação.

 


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