A maioria dos conflitos familiares surge porque as pessoas não estão ocupando seus lugares corretos
Muitas pessoas se sentem sobrecarregadas, tentando realizar uma missão que parece impossível

Muitas vezes, sentimos que nossa missão é unir e trazer paz para nossa família. Queremos consertar as desavenças e as falhas que existem entre nós. Às vezes, assumimos o papel de pais para nossos irmãos ou tentamos preencher a ausência física, ou simbólica, de um membro da família. Agimos como arqueólogos, tentando unir os cacos de um objeto quebrado encontrado nas ruínas do que restou de um passado distante, sem saber exatamente o que era ou como aconteceu. Por que algumas pessoas sentem essa necessidade de reconstruir o que a geração anterior destruiu? De onde vem essa força que nos empurra a consertar o que foi quebrado e a cuidar do que foi negligenciado? Por que sentimos que devemos arcar com responsabilidades que não são nossas? Esse é um tema recorrente nas nossas rodas de terapia comunitária.
Muitas pessoas se sentem sobrecarregadas, tentando realizar uma missão que parece impossível. E por que é impossível? Porque tentamos resolver problemas que não criamos. Quando assumimos um papel que não é nosso, começamos a perder nossa identidade. Por exemplo, se meus pais se separam ou um deles falece, posso sentir que preciso ocupar o lugar do pai ou da mãe ausente. Isso gera uma perda dupla para meus irmãos: eles não somente perdem um dos pais, mas também a irmã ou o irmão que eu era. E, ao mesmo tempo, eu perco a conexão com eles. Essa situação pode gerar desentendimentos e conflitos na família. Quando assumo um lugar que não é meu, essa nova missão, que muitas vezes não escolhi, se torna impossível de ser cumprida.
Se não estou no meu lugar certo, perco a direção e confundo todos ao meu redor. Por exemplo, se agir como pai ou mãe do meu irmão, ele pode reagir com raiva, dizendo coisas como “você não é meu pai” ou “você não é minha mãe”. Isso pode criar uma sensação de ingratidão, mesmo quando estamos apenas tentando ajudar. A maioria dos conflitos familiares surge porque as pessoas não estão ocupando seus lugares corretos. Um adulto pode agir como uma criança insegura, enquanto uma criança pode assumir comportamentos de um adulto, como um pai ou avô ausente, ou falecido. Quando esses papéis se confundem, a dinâmica familiar fica comprometida, se torna confusa e difícil.
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Após a perda de um membro da família, não é fácil encontrar um novo equilíbrio. Todos sofrem e tentam compensar a ausência. No entanto, isso pode levar a exageros nas funções de cada um, gerando um desconforto, sobrecarregando uns e deixando outros livres de responsabilidades. Muitas vezes, as falhas de gerações passadas tentam ser compensadas, corrigidas pela geração atual, como uma negligência que leva a um comportamento superprotetor. É como se as novas gerações tentassem corrigir as falhas antigas. Só conseguimos perceber isso quando analisamos nosso contexto familiar. Então entendemos que estamos tentando agir no lugar de alguém que não assumiu suas responsabilidades.
Isso gera um esforço excessivo e exaustivo, sacrificando nossos próprios sonhos para consertar os de outra pessoa. É quando se percebe que esse comportamento de compensação nos esgota e, muitas vezes, não traz o resultado esperado. Ao tentar viver a vida de outra pessoa, acabo não vivendo a minha. Isso torna minha missão impossível e gera frustração. Como me libertar dessa missão possível? Preciso me libertar da ideia de agir no lugar do outro. Os erros dos outros podem me ensinar a não repetir os mesmos passos no futuro. Não posso ser pai e mãe ao mesmo tempo; posso ser apenas um deles. A ausência de um dos pais pode abrir espaço para a criança encontrar apoio em outra pessoa, como um tio ou avô.
Uma carência pode se transformar em uma nova habilidade. Muitas vezes, damos melhor aquilo que não recebemos. Os que foram rejeitados se tornam grandes cuidadores. Um erro não justifica outro. Um erro não deve ser compensado com outro sacrifício, mas sim servir como uma fonte de aprendizado. Identificar uma carência pode nos motivar a buscar o que realmente precisamos. Quando assumo um papel que não é meu, fico deslocado de minha real função e confuso. É essencial ter clareza sobre meus limites. Quando fazemos mais do que podemos, muitas vezes é porque nos sentimos menos. Mas não somos menos; somos seres com potencial para viver em harmonia.
Não posso fazer mais para compensar o que alguém não fez. O importante é ser uma presença acolhedora e amorosa. Não se sabe as razões que levaram alguém a não assumir seu papel, sua função. Por isso, não podemos julgar e muito menos repetir a falha por uma solidariedade negativa. Podemos aprender com as imperfeições dos que vieram antes de nós e superá-las, sem repetir os erros. Isso seria um grande passo para todos nós. Quando reconhecemos nossos limites e aceitamos a realidade das nossas relações familiares, começamos a trilhar um caminho mais saudável. Precisamos entender que cada pessoa na família tem seu papel, e quando todos ocupam o seu espaço, a harmonia se restabelece. É natural querer ajudar, mas é fundamental saber até onde podemos ir sem nos sobrecarregar.
Ao invés de tentar consertar o que está quebrado, podemos focar em criar laços e fortalecer os existentes. Isso significa ouvir, apoiar e estar presente, sem assumir responsabilidades que não são nossas. Compreender a dor e as falhas do passado é um passo importante. Ao fazer isso, abrimos espaço para a empatia. Podemos reconhecer que cada um de nós tem suas próprias batalhas e que nem todos têm as ferramentas necessárias para enfrentar seus desafios. Em vez de carregar o peso das falhas dos outros, podemos oferecer apoio e compreensão, criando um ambiente onde todos se sintam seguros para expressar suas emoções. A comunicação aberta é fundamental. Conversar sobre sentimentos, medos e expectativas pode ajudar a esclarecer mal-entendidos e a evitar conflitos.
Quando falamos sobre o que nos afeta, criamos um espaço de acolhimento e compreensão, permitindo que cada membro da família se sinta ouvido e respeitado. Se um dos pais está ausente, isso não significa que a criança deve viver essa ausência em solidão. Podemos buscar referências em outras pessoas que possam oferecer apoio e amor. Um tio, avô ou até mesmo um amigo próximo pode ser essa figura que preenche a lacuna, mostrando que o amor e a conexão não têm limites. Devemos olhar para o passado não como um peso, mas como uma oportunidade de aprendizado. Cada falha nos ensina algo valioso, e ao reconhecê-las, podemos evitar repetir os mesmos erros. A história da família pode ser um guia, mostrando-nos o que funcionou e o que não funcionou.
Assim, conseguimos construir um futuro mais saudável e equilibrado. Por fim, é essencial redefinir o que consideramos nossa missão. Ao invés de tentar consertar o que está quebrado, podemos nos concentrar em criar um ambiente onde todos se sintam amados e apoiados. Isso envolve reconhecer que cada um tem suas próprias responsabilidades e que, juntos, podemos construir uma família mais unida e forte. Quando conseguimos ver nossa missão como uma oportunidade de crescimento e aprendizado, ao invés de um fardo, tornamos possível o que antes parecia impossível. E assim, encontramos um caminho para a paz e a harmonia, não apenas em nós, mas também entre aqueles que amamos.
**Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.