É possível transformar os gatilhos do passado em trampolins para um futuro mais saudável e feliz
Uma situação traumática pode ficar “presa” nessa rede, e gatilhos cotidianos, como um cheiro ou tom de voz, reabrem a ferida, mesmo décadas depois

Você já ouviu a expressão? “Em casa de enforcado, não se fala em corda”. Essa frase ganha um novo significado se você vivenciou um suicídio por enforcamento na infância. Essa lembrança dolorosa fica gravada na mente. Na vida adulta, uma simples palavra como “corda” pode reavivar essa memória, causando um desconforto inexplicável. Embora o evento seja antigo, a reação emocional volta à tona como se fosse recente. Por que isso acontece?
Esses gatilhos são como interruptores invisíveis que ligam emoções do passado, fazendo com que o corpo reaja como se o perigo ainda existisse. Os “gatilhos” são estímulos que nos conectam ao mundo através dos nossos cinco sentidos: visão, audição, olfato, tato e paladar. Eles podem reativar memórias dolorosas, provocar reações emocionais ou comportamentais, especialmente em relação a experiências significativas ou traumáticas. Nosso cérebro é um arquivo vivo. Diferentes partes do cérebro reagem a traumas; por exemplo, a amígdala está associada ao medo, enquanto o hipocampo lida com a memória.
Uma situação traumática pode ficar “presa” nessa rede, e gatilhos cotidianos – como um cheiro ou tom de voz – reabrem a ferida, mesmo décadas depois. Estamos sempre recebendo esses estímulos, que impactam nosso estado emocional. A neurociência demonstra como o estresse crônico afeta tanto a estrutura quanto a função do cérebro, integrando conhecimentos de psicologia e biologia. Reconhecer nossos próprios gatilhos é essencial para desenvolver estratégias de enfrentamento e melhorar o bem-estar emocional.
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Ao identificá-los, podemos gerenciar melhor nossas reações e buscar apoio quando necessário. Confrontar memórias traumáticas pode auxiliar as pessoas a reinterpretar essas experiências, alterando a narrativa interna e diminuindo a carga emocional. Reviver lembranças em um ambiente seguro, como em terapia, permite que a pessoa processe emoções reprimidas. A terapia ensina a lidar com gatilhos controladamente, reduzindo a resposta emocional ao longo do tempo.
Recentemente, em uma roda de Terapia Comunitária Integrativa (TCI), discutimos os gatilhos. Duas perguntas guiaram nossa reflexão: "Já descobri os gatilhos que despertam memórias do meu passado?" e "Como as memórias que afetam o presente podem ser transformadas em força?" Aqui estão alguns depoimentos:
Um participante compartilhou: “Descobri que meu gatilho para crises de ansiedade eram os finais de semana. Quando eu tinha 8 anos, minha mãe saía para farrear e me deixava sozinho com meus irmãos. Agora, tenho uma filha da mesma idade, e isso me deixa ansioso nos finais de semana. Compreendi que minha tendência a superprotegê-la era uma forma de compensar a negligência da minha mãe. A terapia me ajudou a separar as memórias das emoções do passado e do presente. Hoje, quando esses sentimentos surgem, converso com minha criança interior, dizendo serem somente lembranças do passado, lembrando que hoje estou bem e que minha família está segura.”
Outra mulher disse: “Meu gatilho é a mudança. Na infância, sempre que queria fazer algo diferente, minha mãe dizia que não ia dar certo. Esse medo de fracassar me invade até hoje. Agora, quando sinto esse medo, que vem da minha criança insegura, converso com ela, lembrando que é apenas uma memória do meu passado e tento acalmá-la, dizendo que já passou e que hoje sou inteligente e capaz de mudar em segurança. E está dando certo".
Uma terceira participante compartilhou: “Na minha infância, não era ouvida pela minha mãe e me sentia invisível. Como adulta, agia como aquela criança invisível de ontem, buscando reconhecimento dos outros, fazendo mais do que devia, o que me levou a um ‘burnout’. Percebi estar agindo como uma criança em busca de validação. Hoje, olho mais para mim e crio expectativas que correspondem aos meus anseios. Quando ouço pessoas falando sobre suas rejeições e sendo tratadas como invisíveis, me lembro da minha história. Isso desperta minha criança interior, mas consigo lidar com esses gatilhos. Foi libertador compreender esse mecanismo.”
Outra pessoa comentou: “Meu gatilho é receber elogios ou presentes. Sinto que não mereço. Na infância, só recebia críticas, e quando ganhava um presente, era cobrada. Quando compreendi que a mulher adulta de hoje agia como a criança de ontem, foi libertador. Tive que fazer as pazes com essa criança, libertando-a desse sentimento de incapacidade.” Esses depoimentos: “Finais de semana me davam pânico!” “Mudança me paralisa!” “Elogios me assustam”, mostram que pessoas que sofreram traumas podem ter reações intensas a gatilhos relacionados a esses eventos.

Identificar gatilhos e suas reações permite aprender estratégias de enfrentamento mais saudáveis. Trabalhar com memórias traumáticas pode aumentar a sensação de controle e empoderamento, promovendo recuperação e resiliência. Falar sobre esses gatilhos em ambientes seguros, como nas rodas de Terapia Comunitária Integrativa, ajuda a reduzir a intensidade das respostas emocionais, tornando as memórias menos impactantes.
É essencial que esse processo ocorra com o apoio de profissionais capacitados, como terapeutas, para garantir um ambiente seguro e fornecer a orientação necessária. Reconhecer e entender os gatilhos é um passo importante para o autoconhecimento e a cura. Muitas vezes, as pessoas não percebem que suas reações emocionais são influenciadas por experiências passadas. Ao se tornarem conscientes desses gatilhos, elas podem começar a trabalhar em estratégias que ajudam a lidar com suas emoções de forma mais saudável.
As terapias oferecem um espaço seguro para explorar essas memórias e sentimentos. Profissionais treinados podem guiar os indivíduos a enfrentar seus traumas, ajudando a criar uma narrativa que não esteja mais presa ao passado. Esse processo pode incluir técnicas que ajudam a focar no presente e a reconhecer emoções sem julgamento, permitindo que a pessoa observe seus gatilhos sem se deixar dominar por eles. Isso pode envolver identificar e desafiar pensamentos negativos, substituindo-os por crenças mais saudáveis e realistas.
Gradualmente, enfrentar situações que causam desconforto pode ajudar a dessensibilizar a resposta emocional associada a esses gatilhos. Um recurso muito importante é conversar com a criança interior ou criar afirmações positivas que promovam a autoaceitação e a autoconfiança. Essas técnicas podem ser adaptadas às necessidades de cada indivíduo, sempre com o suporte de um terapeuta. A jornada de cura não é linear e pode envolver altos e baixos, mas cada passo dado em direção ao entendimento dos próprios gatilhos é um passo em direção à liberdade emocional. Além disso, é importante lembrar que o suporte social desempenha um papel vital nesse processo.
Compartilhar experiências com amigos, familiares ou grupos de apoio pode proporcionar um senso de pertencimento a um grupo. Saber que não se está sozinho em suas lutas pode ser um grande alívio e motivação para continuar a trabalhar em si. Essa é uma das grandes contribuições da Terapia Comunitária Integrativa, que oferece espaços públicos onde as pessoas aprendem umas com as outras, a partir da partilha de experiências em um ambiente seguro e protegido por regras que garantem o respeito à fala do outro.
Ao aprender a enfrentar e processar memórias traumáticas, as pessoas podem não apenas reduzir a intensidade das respostas emocionais, mas também ganhar força e confiança para lidar com os desafios da vida. Cada história de superação é única, e cada pessoa consegue reescrever sua narrativa, transformando dor em crescimento. O caminho para a cura pode ser desafiador, mas é repleto de oportunidades para se reinventar e encontrar um novo significado. Com paciência, autocompaixão e o apoio adequado, é possível transformar os gatilhos do passado em trampolins para um futuro mais saudável e feliz.
E você? Já parou para pensar qual gatilho te acompanha? Pode ser uma música, um lugar ou até um cheiro. Quando o identificar, experimente dizer: Isso é uma memória, não meu presente. Ao identificá-lo, faça dele um trampolim para dar um salto de qualidade em sua vida. Com tempo e apoio, é possível transformar dor em crescimento e dar um salto em direção à liberdade emocional.
Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.