Mais da metade dos moradores de favelas do Ceará vive em locais sem arborização

Soluções baseadas na natureza têm sido apontadas como alternativas para territórios com pouco espaço.

Escrito por
Gabriela Custódio gabriela.custodio@svm.com.br
(Atualizado às 11:21)
Vista do Farol do Mucuripe com as casas da comunidade ao redor.
Legenda: Apenas 20,3% da população da Comunidade Serviluz/Titanzinho, no Cais do Porto, vive em domicílios com árvores no entorno.
Foto: Ismael Soares

Mais da metade das pessoas em favelas e comunidades urbanas do Ceará mora em trechos de vias sem nenhuma árvore. Enquanto a baixa arborização atinge 56% dos moradores desses locais, essa realidade afeta cerca de 31% da população que vive fora desses territórios no Estado. O indicador, revelado pelo Censo Demográfico 2022, sinaliza as desigualdades estruturais na ocupação urbana.

No levantamento censitário, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) investigou as características urbanísticas do entorno dos domicílios especificamente nas favelas e comunidades urbanas. Sobre a arborização, foi contabilizada a quantidade de árvores de pelo menos 1,70 metro nas vias públicas, fora de domicílios e condomínios.

Em relação às vias com arborização, o IBGE criou três grupos:

  • Trechos de via com 1 a 2 árvores;
  • Trechos de via com 3 a 4 árvores;
  • Trechos de via com 5 árvores ou mais.

Dentro e fora das comunidades urbanas, a dinâmica que se percebe na distribuição das pessoas que vivem nesses grupos é oposta. Enquanto a maior parte dos moradores das favelas do Ceará mora em vias com até duas árvores, fora delas a maior parcela da população está em trechos com pelo menos cinco árvores.

Para o Instituto, favelas e comunidades urbanas correspondem a “territórios populares originados das diversas estratégias utilizadas pela população para atender, geralmente de forma autônoma e coletiva, às suas necessidades de moradia e usos associados (comércio, serviços, lazer, cultura, entre outros), diante da insuficiência e inadequação das políticas públicas e investimentos privados dirigidos à garantia do direito à cidade”.

Na identificação desses territórios, o IBGE considera a predominância de domicílios com graus diferenciados de insegurança jurídica da posse e pelo menos um dos seguintes critérios:

  • Ausência ou oferta incompleta e/ou precária de serviços públicos (iluminação elétrica pública e domiciliar, abastecimento de água, esgotamento sanitário, sistemas de drenagem e coleta de lixo regular) por parte das instituições competentes;
  • Predomínio de edificações, arruamento e infraestrutura que usualmente são autoproduzidos e/ou se orientam por parâmetros urbanísticos e construtivos distintos dos definidos pelos órgãos públicos;
  • Localização em áreas com restrição à ocupação definidas pela legislação ambiental ou urbanística — como faixas de domínio de rodovias e ferrovias, linhas de transmissão de energia e áreas protegidas — ou em sítios urbanos caracterizados como áreas de risco ambiental (geológico, geomorfológico, climático, hidrológico e de contaminação.

Nem todos os moradores das favelas e comunidades urbanas estão presentes nesses dados do IBGE. Isso porque, para coletar informações sobre o entorno dos domicílios, foram consideradas apenas as áreas urbanizadas e os setores censitários em que há concentração de estruturas, edificações e domicílios, independentemente de serem classificados como urbanos ou rurais.

Ainda assim, essa seleção abrangeu quase a totalidade dos 749,6 mil moradores de favelas do Ceará e dos pouco mais de 578 mil em Fortaleza.

Na Capital, das mais de 577,6 mil pessoas vivendo nos setores selecionados, esse cenário é ainda mais acentuado e quase 60% delas moram em trechos de vias sem árvores. Além disso, mais da metade (52,3%) das que vivem em locais arborizados têm até duas árvores perto de casa. Fora de favelas e comunidades urbanas, 55,7% das pessoas moram próximo a vias com pelo menos cinco árvores.

Desigualdades estruturais

A redução de áreas verdes tem diversos impactos para a qualidade de vida da população. Em Fortaleza, especificamente, estudos da Universidade Federal do Ceará (UFC) mostram que, ao longo de sua história, a Capital perdeu quase 84% da cobertura vegetal nativa. E isso não ocorreu apenas nas comunidades periféricas, destaca Newton Becker, professor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo e Design da UFC.

“Essa perda não é distribuída de uma forma equivalente. Existem áreas com mais e outras com menos. Alguns bairros, como o Conjunto Ceará, o José Walter e o Centro, que são bairros planejados mas em situações inclusive sociais e econômicas diferentes, têm um acesso até favorável a essas áreas verdes”, contextualiza.

O docente explica que a substituição da cobertura arbórea de grande porte tem ocorrido tanto pelo próprio envelhecimento dessas vegetações quanto pela poda devido à presença de fiação aérea. Além disso, ele aponta que a escassez de verde no entorno das residências inclui a falta da vegetação de cobertura do solo — que, quando presente, o torna permeável e ajuda na infiltração da água.

Todo esse processo aponta para as desigualdades históricas na ocupação das áreas periféricas. Na maioria dos casos, o professor explica que ela ocorreu em locais “ambientalmente sensíveis” — como próximo a nascentes ou a dunas — que originalmente tinham cobertura vegetal que foi suprimida à medida que a presença da população foi se consolidando e crescendo.

Nessas ocupações que ocorreram de forma “mais orgânica”, segundo o docente, a quantidade de locais aptos a receberem vegetação arbórea de grande, médio e pequeno porte é reduzida pela presença de lotes menores, vias mais estreitas e infraestruturas próprias de drenagem e esgotamento.

Porém, Newton Becker pondera que os dados gerais do Censo Demográfico 2022 não permitem enxergar a situação de cada comunidade. E, para encontrar soluções, ele destaca a importância de conhecer o contexto local e os hábitos e costumes dos moradores.

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Em nota, a Secretária Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma) afirmou que “a arborização é uma diretriz permanente e transversal da gestão municipal”. Porém, aponta que os dados do IBGE refletem desafios históricos da urbanização das comunidades urbanas, cujas características estruturais limitam o plantio de árvores pela presença de vias estreitas, vielas e edificações muito próximas umas das outras.

“De acordo com o Manual de Arborização de Fortaleza, essas condições não oferecem espaço adequado e seguro para o desenvolvimento de indivíduos arbóreos, o que ajuda a explicar a diferença registrada entre esses territórios e outras áreas da Cidade”, informou.

A Pasta informou que, em 2025, a atual gestão iniciou um planejamento estratégico baseado em dados locais, incluindo a instalação de 10 monitores meteorológicos nas áreas mais quentes da cidade. Disponibilizadas em tempo real, essas informações têm orientado decisões e políticas públicas.

A Seuma também ressaltou que mais de 38 mil espécies vegetais foram plantadas e doadas entre janeiro e novembro deste ano, por meio de projetos coordenados pela Pasta., e que, em 2025, foram criados cinco novos parques urbanos municipais.

Para 2026, a Secretaria aponta que está prevista a implantação de um projeto específico de arborização voltado às áreas com maior déficit de cobertura vegetal, que já está em fase piloto. (Veja a nota completa abaixo).

Busca por soluções

O professor destaca que, atualmente, existe um direcionamento do Ministério das Cidades, por meio da Secretaria Nacional de Periferias, para a regularização fundiária com o incentivo da adoção das chamadas Soluções Baseadas na Natureza (SBN). Essas técnicas buscam imitar o funcionamento do ciclo hidrológico natural para oferecer respostas aos desafios causados pela urbanização desordenada e pela impermeabilização excessiva do solo.

“Caminhando na rota prevista, que é de regularizar, de manter essas pessoas nesses lugares, teremos que repensar como o desenho da arborização ou do esverdeamento pode acontecer”, afirma.

Um exemplo de Solução Baseada na Natureza são os jardins de chuva, áreas vegetadas que permitem a infiltração da água no solo. “Eles conseguem manter a vegetação com mais umidade por mais tempo do que um jardim tradicional. Estamos tentando desenvolver protótipos que se adaptem a essa situação de pouco espaço, e chegamos a soluções como as calhas verdes e os jardins de chuva em vasos”, exemplifica.

Esse tipo de estratégia tem sido utilizado no projeto “Bom Jardim para Todos”, desenvolvido por pesquisadores da UFC com apoio do Governo Federal, para enfrentar os desafios das mudanças climáticas, especialmente os impactos das inundações em territórios vulneráveis.

Mão sobre mapas urbanos com anotações e post-its em uma mesa.
Legenda: Construção de mapa de propostas para a rua Mirtes Cordeiro, no bairro Granja Lisboa, no Grande Bom Jardim.
Foto: Divulgação/Projeto Bom Jardim para Todos

A comunidade São Francisco foi escolhida como área piloto para o projeto. Mesmo em casas praticamente sem recuo frontal ou lateral, o professor pontua que algumas famílias conseguem cultivar uma vegetação ornamental que, além de se adequar à disponibilidade de espaço, pode ter impacto na temperatura.

“Precisamos olhar para os casos de sucesso que já existem. Não é propor algo do zero ou que a gente acha que é mais adequado, mas observar os hábitos, como as pessoas podem incorporar — ou se já incorporam — essas medidas de esverdeamento no cotidiano e no lugar onde moram, para que isso seja otimizado, melhorado, encorajado”, afirma.

Impactos na saúde

A redução de áreas verdes está ligada à formação de ilhas de calor e à piora da qualidade do ar. Além de todas as questões ambientais, em meio às mudanças climáticas, isso também tem impacto para a saúde da população. Segundo o médico sanitarista e gestor em saúde Álvaro Madeira Neto, o calor extremo provoca desconforto fisiológico e aumenta a incidência de problemas de saúde como desidratação, insolação e exaustão.

“É importante lembrar que a OMS (Organização Mundial da Saúde) reconhece temperaturas ambientais muito altas como agravantes para doenças cardiovasculares, respiratórias e até mesmo para transtornos mentais”, afirma.

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Além disso, ele aponta que as árvores atuam como “filtros ambientais”. “Sem isso, realmente temos uma uma incidência maior ainda de doenças respiratórias, como asma, bronquite crônica, alergia e doença pulmonar obstrutiva crônica”, complementa.

Nesse cenário, o médico sanitarista destaca que os seguintes grupos populacionais ficam ainda mais vulneráveis aos efeitos do calor:

  • Crianças: Especialmente até os cinco anos de idade, o corpo ainda não está plenamente desenvolvido, impactando na regulação adequada da temperatura interna. Com isso, crianças pequenas desidratam mais rápido.
  • Idosos: Com o envelhecimento, o organismo também passa a ter menos capacidade de equilibrar a temperatura corporal. Além disso, doenças crônicas podem descompensar com o calor exacerbado.
  • Gestantes: Os efeitos do calor também são mais sentidos durante essa fase da vida da mulher, uma vez que a gravidez eleva o metabolismo, o que as torna mais propensas a desconfortos, inchaços e processos de desidratação.
  • Pacientes com doenças crônicas: O calor também impõe um estresse adicional a pessoas com doenças cardiovasculares, respiratórias e renais, além de diabetes e obesidade, por exemplo.

Com isso, encontrar alternativas para o aumento das áreas verdes e da arborização urbana também pode ser considerado uma medida de prevenção em saúde pública. “Podemos entender como uma forma de ‘vacina ambiental’”, afirma o médico.

Além disso, ele aponta que a presença de parques e árvores promovem a prática de exercícios físicos. “É um convite ao movimento daqueles que ali habitam, o que é fundamental também para que você estabeleça uma saúde cardiovascular adequada e para que você também trabalhe o componente da questão da saúde mental”, finaliza.

Leia a nota da Seuma na íntegra

Em nota, a Secretária Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma), informa que a arborização é uma diretriz permanente e transversal da gestão municipal. Os dados do IBGE refletem desafios históricos da urbanização de áreas consideradas comunidades urbanas, que apresentam características estruturais que limitam o plantio de árvores. São territórios formados, em muitos casos, de maneira adensada, com vias estreitas, presença de vielas, ocupações em morros e edificações muito próximas entre si. De acordo com o Manual de Arborização de Fortaleza, essas condições não oferecem espaço adequado e seguro para o desenvolvimento de indivíduos arbóreos, o que ajuda a explicar a diferença registrada entre esses territórios e outras áreas da cidade.

É importante destacar que a cidade enfrentou, nos últimos anos, redução de áreas verdes em função da gestão ineficiente anterior. Em 2025, a atual gestão iniciou um planejamento estratégico baseado em dados locais, incluindo a instalação de 10 monitores meteorológicos nas áreas mais quentes da cidade. Os dados, disponibilizados em tempo real pelo Observatório dos Riscos Climáticos de Fortaleza, têm orientado decisões e políticas públicas para enfrentar desigualdades ambientais e ampliar a cobertura vegetal, especialmente nas regiões mais vulneráveis.

A Seuma ressalta que vem ampliando diversas iniciativas voltadas à arborização, com foco especial em territórios de maior vulnerabilidade socioambiental. Entre janeiro e novembro deste ano, foram plantadas e doadas mais de 38 mil espécies vegetais, por meio de projetos coordenados pela Secretaria Municipal do Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma). Além disso, foram criados 5 novos parques urbanos municipais em 2025, priorizando áreas periféricas.

Um dos projetos estruturantes em andamento é o Corredores Verdes, contemplado em dois editais nacionais de desenvolvimento urbano aliado à natureza e enfrentamento às mudanças climáticas. A proposta prevê o esverdeamento da infraestrutura urbana, conectando importantes vias ao Parque Rachel de Queiroz e impactando mais de 77 mil moradores. As intervenções incluem arborização estratégica, criação de áreas de sombreamento, aplicação de pavimentos permeáveis e requalificação de praças. Com os editais, o trabalho técnico está sendo aprofundado para futura submissão a financiamento.

O novo Plano Diretor Participativo e Sustentável de Fortaleza também reforça esse compromisso ao ampliar em 39% o Macrozoneamento Ambiental e aumentar em 38% as áreas protegidas do município.

Para 2026, está prevista a implantação de um projeto específico de arborização voltado às áreas com maior déficit de cobertura vegetal, já em fase piloto. A iniciativa será executada durante a quadra chuvosa e inclui técnicas como uso de hidrogel e seleção de espécies mais adaptadas, aumentando a taxa de sobrevivência das mudas. O projeto é coordenado pela Autarquia de Urbanismo e Paisagismo de Fortaleza (UrbFor), em parceria com a Seuma, com recursos do Fundo Municipal de Defesa do Meio Ambiente (Fundema).

Por fim, a gestão destaca que, sempre que a configuração espacial permite, os projetos incluem novas áreas arborizadas, visando conforto térmico, melhoria paisagística e promoção da biodiversidade.

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