Indígenas Pitaguary mantêm tradições espirituais e dividem luta por terra em duas cidades do Ceará

Pinturas, trajes e ritos na mata fazem parte da cultura de povo que fugiu do litoral para a serra

Escrito por Nícolas Paulino , nicolas.paulino@svm.com.br
Legenda: Pintura corporal é uma das marcas de ancestralidade mantida pelos Pitaguarys
Foto: Kid Jr

Os “comedores de camarão”, significado de Pitaguary, são da linhagem dos indígenas potiguara, que habitavam o litoral do Ceará. Contudo, de tão acuados pelos colonizadores europeus, precisaram se refugiar ao pé da serra de Pacatuba - Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) -, dividindo território também com Maracanaú, onde permanecem até hoje. 

Esta é a terceira reportagem da série "Originários", que ouviu demandas e dilemas dos 4 povos indígenas da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) e presenciou danças e rituais que eles tentam conservar para as próximas gerações.

A ameaça de os Pitaguary deixarem suas terras continua devido à pressão empresarial pela instalação de pedreiras que colocam em risco a sustentação desse povo - tanto no sentido figurado, pela ocupação histórica, quanto no real, pelo potencial de abalar a infraestrutura das casas.

Legenda: Mobilização pela garantia do território é mostrada pelo Diário do Nordeste desde a década de 1990; em destaque, matéria de 1996
Foto: Cedoc/SVM

O aldeamento que resiste é matriarcal, comandado por mulheres, dentre elas Clécia Pitaguary, 53 anos. Mesmo recebendo ameaças à própria vida e à de familiares, a líder segue lutando pela homologação do território, já delimitado pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em 2000 e declarado de posse permanente em 2006.

1.735
hectares é o tamanho da terra Pitaguary oficialmente reconhecida. Nela, vivem cerca de 6 mil indígenas.

Embora seja um dos processos mais avançados entre as terras indígenas do Ceará, já decorreram quase 20 anos sem novidades. Segundo Clécia, os Pitaguary aguardam a indenização e desintrusão dos posseiros (que ocupam a terra sem serem donos dela) e a publicação do decreto de homologação. 

“O nosso território já é insuficiente porque não podemos desmatar a serra, construir lá. O pouquinho que tem tá com posseiros. O mais urgente é finalizar esse processo para retirá-los, e depois ter uma atuação mais ativa da Funai dentro do território. Ela tem o papel de fiscalizar e nunca fez isso direito”, reclama.

O Diário do Nordeste questionou à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), desde o dia 9 de fevereiro, como está o andamento do processo de demarcação desse povo; como monitora situações de ameaça/violência contra ele e que diagnóstico possui quanto à necessidade de saúde, saneamento e educação dessa população. Porém, decorridas três semanas, não houve resposta.

Mesmo sem atribuição direta sobre a demarcação dos territórios, a Secretaria Estadual dos Povos Indígenas (Sepince) declarou que "está comprometida com a aceleração do processo" para os povos cearenses. "Para essa demanda avançar, a Secretaria estará em constante diálogo com os povos indígenas do Ceará, Funai, Ministério dos Povos Indígenas e órgãos competentes", disse em nota.

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(In)segurança

As batalhas pelo território, porém, não se dão apenas no discurso ou nos trâmites judiciais. A violência é usada por empresários, invasores e grupos criminosos como forma de coagir os indígenas a permanecerem moderados.

Em 2017, por exemplo, um Pitaguary de 42 anos sofreu um atentado e teve o corpo queimado em uma vacaria onde trabalhava, na aldeia Santo Antônio, em Maracanaú. No ano anterior, uma liderança de lá foi atacada com golpes de facão e por pouco não faleceu.

O cotidiano de ameaças amedronta Clécia Pitaguary desde nova. Quando estava grávida, numa noite, a casa de apoio onde dormia foi metralhada. Ao fim dos disparos, recebeu uma ligação em que disseram: “Tu escutou os tiros? Na próxima vez, é tudo na tua cabeça”.

Legenda: Clécia Pitaguary: "Existe um projeto de destruição que a gente não permite"
Foto: Kid Jr

Esse foi apenas um dos três atentados que já sofreu. Contudo, o mais grave, considera, foi quando tentaram raptar sua filha. Mesmo se dizendo tão corajosa, ela chora nesse momento da entrevista. “Foi terrível, um dos piores momentos da minha vida”, lembra.

Depois de investigações e identificação de suspeitos por órgãos de segurança, Clécia foi informada de que estava segura, mas ainda se nega a acreditar totalmente nisso. Afinal, se reconhece alvo de “um projeto de destruição que a gente não permite”.

“Tenho esperança, mas vamos precisar de muita sabedoria e jogo de cintura. Os ataques já começaram para barrar as ações que estão para ser feitas nos territórios indígenas. Acho que vamos ter momentos de muito enfrentamento”, pensa ela sobre a criação da Secretaria Estadual e do Ministério dos Povos Indígenas.

Força espiritual

Parte da resistência dos Pitaguary contra esses contratempos vem da crença no poder da natureza e na ação dos encantados, entidades espirituais da tradição indígena. Para Clécia, a etnia é uma das mais espiritualizadas de todo o Estado.

Ela, por exemplo, aprendeu com a bisavó a se conectar com a mata e a chamar a força desses protetores, principalmente “nas horas de aperreio”. “Ela também me ensinou a andar no mato, a reconhecer o que podia me fazer mal, a estancar um corte, a achar comida, água, abrigo e remédios”, enumera.

Legenda: Juventude indígena é esperança de continuidade dos rituais e lutas dos Pitaguary
Foto: Kid Jr

O principal ponto de encontro dos indígenas é a Mangueira Sagrada, na aldeia de Santo Antônio, em Maracanaú, onde no dia 12 de junho é celebrado o Dia do Indígena Pitaguary. A ela é atribuída a figura da “mãe natureza”, que conforta e protege.

Temos em mente que nossos encantados estão plantados lá. Quando fazemos a passagem, a gente não enterra, a gente planta, porque ela deu frutos e vai crescer novamente. 
Vitória Pitaguary
Professora indígena da Escola Indígena Ita-Ara, na aldeia Monguba, em Pacatuba.

Esses conhecimentos tradicionais são repassados aos mais jovens, em quem a líder Clécia vê potência para continuar a luta. Quando parte para a serra em busca de energia, durante os rituais sagrados, ela os convida, mas com uma condição: devem estar limpos e puros.

“Fico muito feliz em ver esses meninos se pintando. Quando eles estão juntos, é uma força grande. E extrair isso de jovens é difícil, quando se está tão perto de tudo, de shopping, de festa, de balada. Mas não: estão todos lá, juntos e fortes”, orgulha-se.

Educação transformadora

É a juventude que guiará os próximos passos da demarcação, acredita Vitória Pitaguary. Ela própria cresceu num ambiente de mobilização, mesmo não entendendo tudo por causa da pouca idade. “Cresci sabendo que era indígena”, resume.

Hoje, ela reconhece que “a luta é bem mais complicada” e que é preciso politizar novas pessoas, até mesmo para conscientizar não-indígenas a evitar estereótipos. 

Legenda: Escola Ita-Ara é uma das unidades educacionais mantidas pelo Estado do Ceará
Foto: Kid Jr

“Éramos um povo isolado até a mestiçagem, mas não podemos ficar presos sendo que o mundo está se modernizando. Agora, usamos esses aparelhos para mostrar nossa cultura e desmistificar isso”, ressalta.

Na leitura da professora, ainda faltam oportunidades de empregos mais próximas das aldeias. O trabalho precisa ser buscado nos polos industriais das duas cidades, já que a agricultura é prejudicada pelo terreno pedregoso da serra.

O avanço das pedreiras na região também preocupa os indígenas. “Quando explodem, já tá tremendo tudo e isso é muito prejudicial. Vai danificar as casas, vai rachar, vamos perder local de moradia”, teme Vitória.

Assistência pública

Por ocuparem faixas de terra em duas cidades, os Pitaguary são assistidos por políticas públicas de duas Prefeituras.

Em Maracanaú, a gestão municipal declarou que possui a Secretaria da Agricultura Familiar e Assuntos Indígenas desde 2021. Nela, são articuladas ações multissetoriais:

  • Acesso à água: construção de adutora para a comunidade Pitaguary e isenção do pagamento “para os mais carentes”;
  • Habitação: construção e substituição de casas de taipa por alvenaria;
  • Construção do Novo Cemitério na Comunidade do Santo Antônio, com autorização da Funai;
  • Sustentabilidade: implantação de energia solar para famílias de baixa renda;
  • Trabalho: oferta de cursos de qualificação e aprimoramento de técnicas de artesanato, culinária e marketing para vendas;
  • Cultura: apoio aos eventos culturais e escolares do calendário Pitaguary;
  • Saúde: assistência de duas Unidades de Saúde da Família e um Polo de Saúde Indígena, em parceria com o Ministério da Saúde e Governo do Estado, além de ambulância exclusiva para levá-los para consultas fora da área indígena.

Por sua vez, a Prefeitura de Pacatuba informou que a comunidade é atendida “de forma integrada, envolvendo diversas secretarias”. Na saúde, existe a Unidade Básica exclusiva do distrito de Monguba.

Na assistência social, benefícios como atualização do cadastro único “são garantidos”. Na educação, “todos têm acesso à escola, fazendo parte do planejamento pedagógico o conhecimento sobre os povos indígenas com a realização de atividades internas e eventos escolares”.

Já os eventos de identidade cultural particular, realizados na comunidade, recebem o apoio da Secretaria de Cultura, diz a gestão.

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