Criança de Crateús é a primeira a ser registrada com sobrenome totalmente indígena no Ceará

Pais iniciaram mobilização para que cartório realizasse o registro civil com as etnias das duas famílias

Escrito por Nícolas Paulino , nicolas.paulino@svm.com.br
Legenda: Lua Maara completou dois meses de vida na última terça-feira (26)
Foto: Arquivo pessoal

Lua Maara Jenipapo-Kanindé Kariri nasceu no dia 26 de outubro deste ano, em Crateús. Com apenas dois meses de vida, a pequena mal sabe, mas já carrega uma conquista importante para o movimento indígena no Ceará: após intensa mobilização com o cartório responsável, ela se tornou a primeira pessoa do Estado com sobrenome oficial formado somente pelas etnias da família.

Lua é filha do produtor cultural Lucas Sipya Kariri, coordenador do Memorial dos Povos Indígenas Vicente Kariri, e da professora e artista Janaína Jenipapo-Kanindé. Engajado na mobilização pelos direitos indígenas cearenses, o casal decidiu homenagear as origens de seus povos desde o nascimento da menina.

“Tem outras etnias que mantêm o sobrenome familiar, mas já colocamos o nome das duas etnias para apresentar essa força, resistência e memória que tentaram apagar. Quando colocamos a etnia, a gente apresenta para o Estado que somos resistentes ao tempo e à luta”, conta Lucas.

Legenda: Certidão foi emitida após quase três semanas da solicitação
Foto: Arquivo pessoal

No entanto, os pais enfrentaram resistência do cartório que procuraram. “Como era algo novo, que ninguém tinha colocado antes, estavam na dúvida. Sugeriram que ela só mudasse a partir dos 18 anos, mas fomos atrás dos nossos direitos”, detalha.

O casal buscou o apoio de organizações e autoridades, como a secretária dos Povos Indígenas do Ceará, Juliana Alves; Luciano Kariri, presidente da Associação Indígena Kariri; Erasmo Jenipapo-Kanindé, presidente do Conselho Indígena Jenipapo-Kanindé; e Valdivino Neto Kariu-Kariri, historiador e especialista em etnologia indígena.

Durante o processo, precisaram apresentar documentos de pertencimento étnico das duas aldeias: Maratoan, em Crateús, e Lagoa Encantada, em Aquiraz. Só depois de quase três semanas é que eles finalmente receberam a certidão de nascimento da criança. “Foi algo bem angustiante, a gente tava indo quase todos os dias lá”, confessa o pai. 

Queremos mostrar que nós estamos vivos e quebrar esse silenciamento que se teve há 523 anos.
Lucas Kariri
Pedagogo e produtor cultural

Legenda: Janaína e Lucas quiseram homenagear as raízes de seus povos no sobrenome da filha
Foto: Arquivo pessoal

A secretária Juliana Alves, a Cacika Irê, lembra que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) prevê, desde 2012, a inclusão da etnia no registro de nascimento, caso haja interesse. “Infelizmente, muitos desconhecem esse direito, tanto por parte da população quanto por parte dos cartórios de registro. O reconhecimento é fundamental”, entende.

No caso de Lua, a gestora afirma que interviu em parceria com a Defensoria Pública do Estado para que o direito fosse garantido.

Despertar um povo

O nome “Maara” vem de uma lenda indígena Kariri, referente a uma princesa amaldiçoada pelo rei Manacá a se transformar em serpente. “Nas nossas lendas, quando Maara nasce, ela vai despertar o povo Kariri”, garante o pai.

É representativo que a menina viva na aldeia multiétnica Maratoan, que reúne indígenas pertencentes a diversos povos: Kariri, Jenipapo-Kanindé, Potiguara, Kalabaça, Tabajara e Guarani.

“Foi algo inédito e queremos encorajar outras pessoas a serem resistentes. Os ataques são constantes, diários. Já chega, temos que parar com esse medo e lutar de verdade pela nossa identidade”, defende a mãe, Janaína.

“Amanhã será a Lua que vai defender as nossas etnias e de todas as do Ceará”, complementa Lucas. “Colocando esse nome, estamos indo contra o Marco Temporal porque mostramos que nossa etnia veio muito antes dele e é uma forma de luta dos nossos troncos velhos”.

Para confirmar o processo identitário, Maara será batizada seguindo o ritual indígena no dia 5 de junho de 2024, data que marca o Ano Novo para a nação Kariri. Nessa tradição, o período simboliza o fim do inverno e a chegada da primavera, época de renovação da flora e da fauna.

Veja também

Mutirão de registro

Em 2023, a Secretaria dos Povos Indígenas do Ceará (Sepince), em parceria com a Defensoria Pública, deu início ao mutirão “Povos do Siará”. A iniciativa permitiu o ingresso de ações judiciais para inserir “Jenipapo-Kanindé” no registro de nascimento de 56 indígenas, pertencentes à etnia e moradores de Aquiraz. Várias sentenças já foram emitidas favoravelmente às solicitações.

“Em 2024, vamos ampliar e dar continuidade a essa importante política para nossos povos”, garante a titular, Juliana Alves.

O Censo Demográfico 2022 revelou que o Ceará tem 56.353 habitantes com autodeclaração indígena, o que representa 0,64% dos 8,7 milhões de habitantes.  

Conforme a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o Ceará tem hoje 20 povos: Anacé, Cariri, Gavião, Jenipapo-Kanindé, Kalabaça, Kanindé, Kariri, Kariri-Quixelô, Karão, Paiacu, Pitaguary, Potiguara, Quixará-Tapuia, Tapeba, Tabajara, Tapuia-Kariri, Tremembé, Tubiba-Tapuia, Tupinambá e Warao.

Os destaques das últimas 24h resumidos em até 8 minutos de leitura.
Assuntos Relacionados