760 famílias com casas afetadas por obra do VLT ainda aguardam receber novas moradias após 10 anos
O transporte projetado para as Copas - das Confederações e do Mundo - em Fortaleza, só foi inaugurado em 2018. A população atingida segue à espera da construção das residências
Um projeto cogitado antes de 2010, anunciado no final daquele ano, e iniciado só em 2012, quando faltava pouco para Fortaleza sediar a Copa das Confederações, em 2013, e a do Mundo, em 2014. Hoje, em pleno funcionamento, a linha metroviária do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) que percorre 13,2 km, indo da Parangaba ao Mucuripe e vice-versa em cerca de 38 minutos, guarda rastros de pendências.
Para existir, a obra afetou a moradia de 3.161 famílias, que moravam à beira do antigo trilho. Após mais de 10 anos do início do processo, 760 famílias afetadas pela obra, segundo a Secretaria das Cidades, ainda aguardam receber as novas moradias.
Casas derrubadas, imóveis partidos ao meio, mudanças para bairros distantes e ingresso no aluguel social, são alguns efeitos vivenciados pela população afetada. Atualmente, 690 famílias atingidas, conforme a Secretaria de Infraestrutura (Seinfra), vivem no aluguel social. A medida consiste na concessão, por parte da gestão estadual, de um valor padrão mensal, que agora é R$ 722,05, à população afetada enquanto a nova casa não é entregue.
Veja também
O mecanismo deveria ser uma saída provisória, mas vigora há mais de uma década. Os imóveis aguardados por essas 690 famílias e pelas demais atingidas (do total de 760, incluindo as que não estão no aluguel social) ainda serão construídos, explica o Governo.
Na chamada Rua Via Férrea, no bairro São João do Tauape, a dona de casa Maria da Penha de Jesus Sousa, de 58 anos, vê o VLT passar, várias vezes ao dia, a poucos metros da porta de casa. Metragem essa que hoje separa o início da residência da grade de proteção dos trilhos, espaço que forma a via pública. Até meados de 2016, a área era ocupada por compartimentos da casa.
“Nós moramos aqui há 42 anos. Mas esse terreno aqui era da minha sogra, herdado desde a bisavó dela, são mais de 70 anos. Ela deu uma parte para a gente. Essa parte era o quintal da casa dela. Nós fomos trabalhando e fizemos nossa casa. Antes, cabia minha família na parte de cima e na debaixo”.
No processo de negociação para estruturar a obra do VLT, ela conta que parte do imóvel, em que vive com o marido, o aposentado Francisco Alves da Silva Sousa, precisou ser removida. “Eram seis cômodos em cima e 7 em baixo. Morava, eu, meu marido, e meus quatro filhos, já com esposas e filhos. E dava para todo mundo. Aí foi muito transtorno porque eles tiveram que ir para o aluguel social”, relata.
No caso da residência de Maria da Penha, o Governo não removeu a casa toda. Derrubou uma parte, e segundo os moradores, pagou R$ 65 mil. Como ainda ficou uma área remanescente, ela e o marido passaram a habitar o que sobrou da antiga moradia. “A promessa era que quando assinamos (a negociação de desapropriação) em 2016, com três anos, eles (governo) entregariam os apartamentos”.
A espera continua tanto por parte do casal, como de 3 dos 4 filhos, que desde então vivem com o aluguel social concedido pelo Governo. “O dinheiro que recebemos não dava para comprar outro imóvel por aqui, que apesar de ser uma área pobre, fica bem próximo à área nobre, como a Aldeota, e os valores são muito caros”, destaca.
As primeiras 8 estações do VLT foram entregues em 2018. A obra completa funciona desde agosto de 2020. No total, a linha conta com 11 estações: Parangaba, Montese, Expedicionários, Vila União, Borges de Melo, São João do Tauape, Pontes Vieira, Antônio Sales, Papicu, Mucuripe e Iate. Por mês, segundo o Governo do Estado, são transportadas, em média, 280 mil pessoas pelo modal.
Confira fac-símile de edições do Diário do Nordeste no início da obra
Mais de 600 pessoas no aluguel social
Nesse percurso, a alguns quilômetros da casa de Maria da Penha, uma outra dona de casa, de 39 anos, que não quis ser identificada, contou ao Diário do Nordeste que também segue esperando. Desde a infância, ela morava nas proximidades da via férrea. Mas, o projeto do VLT alterou essa rota.
Quando teve início a negociação para a saída de alguns moradores, há quase uma década, ela morava em um imóvel acima da casa dos pais, no espaço doado por eles, na beira do trilho. Para a obra ocorrer, a edificação foi completamente removida. Os pais foram indenizados. Mas, como a residência que ela habitava pertencia a eles, ela optou por doar o dinheiro recebido a eles para complementar a compra de um novo imóvel no mesmo bairro.
Desde então, ela, o marido e os filhos vivem no aluguel social. “Ficamos muito preocupados. Mas nós saímos muito rápido. Muitas pessoas ficaram. Na época, a gente só recebia 400,00 reais de aluguel. E a gente tinha que colocar uns 250 reais e 200 reais do nosso dinheiro para poder conseguir alugar imóvel próximo onde estávamos acostumados a viver”, relata.
Ela também destaca: “fui tirada de um local que eu estaria lá até hoje. Isso afetou muito meu emocional. Dependo do Governo para pagar o imóvel. Quando o Governo atrasa, tenho que ficar dando explicações para o dono da casa”.
O reajuste do aluguel social das famílias afetadas pelo VLT tem sido um ponto de discussão no decorrer dos anos. Desde que foi estabelecido pela Lei Estadual 15.056, de 2011 foram feitos três atualização no valor:
- Em dezembro de 2011 - R$ 400,00
- Em abril de 2017 - passou para R$ 520,00
- Em maio de 2023 - passou para R$ 722,05
Hoje, segundo a Seinfra, 690 famílias recebem o aluguel social. Até o final de maio eram 703, mas 13 receberam habitação na última entrega feita no conjunto habitacional Cidade Jardim, no bairro José Walter.
“O Estado errou”, diz MP
A promotora de Justiça titular da 9ª Promotoria de Justiça de Fortaleza de Defesa da Habitação, Giovana de Melo Araújo, explica que no decorrer dos últimos anos, o Ministério Público instaurou um Inquérito Civil para acompanhar a questão das famílias impactadas pela obra do VLT, além de 7 Ações Civis Públicas.
De acordo com ela, as principais demandas levadas pelos moradores das comunidades afetadas e, por efeito, tratadas no Inquérito Civil, são:
- A construção dos empreendimentos;
- O valor defasado do aluguel social;
- A data do pagamento do aluguel e;
- A correção monetária de indenizações pagas.
Em relação à construção das moradias e a correção monetária, ela explica que as Ações Civis Públicas questionam, dentre outros, a construção de um empreendimento com a reserva do respectivo terreno e solicita a fixação de data para pagamento do aluguel social, frente aos constantes atrasos nos pagamentos.
“O Estado errou ao iniciar uma obra impactando moradias sem oportunizar o imediato reassentamento, seguindo o que determina a Lei Orgânica do Município de Fortaleza, a qual determina que caso seja necessária a remoção ela deverá ser realizada no mesmo bairro em que reside a família removida”.
Giovana destaca que o Ministério Público, além das demandas judiciais, segue “buscando a solução da questão através do diálogo com as comunidades que foram impactadas e com o Poder Público”.
Novas construções estão em análise
Em nota, a Seinfra informou que existe uma comissão composta pelo Governo do Estado, pela Assembleia Legislativa, pela Câmara dos Vereadores de Fortaleza, pelo MP Estadual, pela Defensoria Pública Estadual e pelos representantes das comunidades impactadas.
A Secretaria das Cidades (SCidades) indica que no decorrer desses anos, apenas 485 famílias afetadas pelas obras do VLT foram realocadas em conjuntos habitacionais, nos residenciais Cidade Jardim; no bairro José Walter; e no Alto da Paz, no bairro Vicente Pinzón.
Os aluguéis sociais, explica a pasta, “são pagos enquanto o imóvel comprometido no Termo de Acordo firmado com os desapropriados não é substituído por uma unidade do Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV)”. Porém, diz a nota, o programa habitacional federal realizou as últimas contratações em 2018, quando foram assinadas as construções dos Residenciais Alto da Paz e Aldaci Barbosa.
A pasta afirma que atualmente o Governo Federal analisa a contratação, pelo Programa Pró-Moradia, de dois novos conjuntos habitacionais: Horta, no bairro Aerolândia, e o Teodorico Barroso, no bairro Vila União, para a construção de apartamentos cujas beneficiárias são as famílias removidas.
Sobre as desapropriações, a Secretaria das Cidades reitera que nos casos em o imóvel foi avaliado em até R$ 40 mil, a lei prevê que o proprietário receba, além da indenização, uma unidade do MCMV. As prestações são assumidas pelo Estado. Se o beneficiário não optar pelo apartamento, recebe, além da indenização, auxílio social de R$ 6 mil.
Para os imóveis cujo valor fosse superior a R$ 40 mil, as regras são semelhantes. Mas, nesses casos o beneficiário fica responsável pela quitação da unidade habitacional cedida pelo Governo.