Trilha de ecoturismo resgata memória e ancestralidade da Sabiaguaba; conheça o percurso

Passando por mar, rio, mangue, dunas e um vale de cactos, passeio é oportunidade de lazer e aprendizado para cearenses e turistas

Escrito por Ana Beatriz Caldas , beatriz.caldas@svm.com.br
Vista de um dos pontos mais altos do passeio
Legenda: Vista de um dos pontos mais altos do passeio
Foto: Ismael Soares
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Quando se fala na Sabiaguaba, geralmente o que vem à mente é a vista privilegiada para um pôr do sol inesquecível nas dunas da região. Porém, a localidade reúne muitas paisagens e histórias que vão além do conhecido pela maioria dos cearenses, especialmente no que diz respeito à memória e ancestralidade do território.

Foi pensando nisso que o pescador Roniele Suíra, liderança da comunidade tradicional Boca da Barra da Sabiaguaba, começou a realizar trilhas que resgatam a memória e compartilham as vivências de seu povo para pequenos grupos.

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Segundo Roniele, há documentos que comprovam a presença do povo Suira na Sabiaguaba há pelo menos 150 anos, mas a oralidade conta uma história que remonta há um tempo ainda mais antigo. 

Em meio à luta da comunidade para garantir a sobrevivência do território e dos costumes passados pelos mais velhos, as trilhas organizadas pelo pescador são uma oportunidade de turismo que visa não só o lazer, mas também o aprendizado e a reflexão.

Roniele Suira é uma das lideranças do povo Suira e realiza diversas atividades educativas
Legenda: Roniele Suira é uma das lideranças do povo Suira e realiza diversas atividades educativas
Foto: Ismael Soares

As trilhas costumam começar cedo da manhã, com grupos de até 15 a 20 pessoas por vez, incluindo crianças e idosos. As datas são frequentes e divulgadas no Instagram de Roniele (@roniele.suira).

O trajeto tem duração de uma hora a uma hora e meia, em média, mas pode se estender. É cobrada uma taxa simbólica de R$ 30 por pessoa, para dar conta dos custos de alimentação no fim do passeio.

“Não é uma coisa que é padrão, porque a ideia da trilha não é controlar, e sim proporcionar uma reflexão em todos os aspectos, um olhar para si mesmo”, explica Roniele. Ele reforça que o momento é de troca de saberes, e que não é “mestre” ou “professor”, apenas organiza e repassa o conhecimento de gerações que o antecederam.

E cada grupo dá o tom do passeio: dependendo da curiosidade do grupo, o pescador e guia foca mais nas plantas, nos bichos, na história ancestral da região ou em todos esses aspectos juntos. “A história vai se complementando, porque cada um traz uma contribuição”, conclui.

O Diário do Nordeste percorreu com o líder Suira algumas das diversas paisagens da Sabiaguaba. Confira a seguir os principais pontos da trilha:

O mar, início de tudo

O início e o fim da trilha incluem a contemplação do mar e dos bancos de pedras, lugares de conexão e memória para o povo Suira
Legenda: O início e o fim da trilha incluem a contemplação do mar e dos bancos de pedras, lugares de conexão e memória para o povo Suira
Foto: Ismael Soares

A trilha começa na Palhoça da Boca da Barra, pertinho do mar, um lugar sagrado para o povo Suira. É lá que Roniele introduz a história da comunidade tradicional e suas relações com o território.

Andando um pouco em direção ao mar – preferencialmente de chinelo, já que há trechos em que usar tênis pode atrapalhar –, se chega aos bancos de pedras da praia, lugares que representam convivência, afeto e segurança alimentar. 

Roniele conta que esses espaços são lugar de memória, afeto e subsistência. É no campo de pedras, por exemplo, que muitas mulheres dão continuidade à tradição da pesca de mariscos, ensinando o ofício aos pequenos.

“Há uma diferença entre o explorador ambiental e o nativo originário que se relaciona, olha para o mar e consegue partilhar o alimento. É uma relação de de olhar o mar como parceiro e como contribuição de existência", lembra o pescador.

Em toda a faixa de praia, o banho é permitido – mas a cautela com as ondas e o respeito ao ambiente são esperados, especialmente no período de desova das tartarugas.

Mangue e memória

Belezas escondidas: área de mangue é rica em vegetação e espécies de animais
Legenda: Belezas escondidas: área de mangue é rica em vegetação e espécies de animais
Foto: Ismael Soares

Voltando para a área de rio, onde há um pequeno porto feito para a pesca de subsistência da comunidade, que hoje é formada por 80 a 90 pessoas, a terra vai se mostrando molhada e o manguezal começa a aparecer.

"O mangue tem relação com a nossa segurança alimentar, porque a gente também extrai alimento daqui, desde a lenha-seca, o aratu, o caranguejo, o siri. Mas ele também é memória", destaca Roniele.

Ali está, entre outros espaços relevantes para a memória da região, a Camboa da Dona Vilma, lugar demarcado simbolicamente em homenagem a uma liderança Suira que "se encantou". Assim como esse espaço, existem muitos outros, nomeados a partir "dos mais velhos" que, através da tradição oral, seguem vivos na memória da comunidade.

Diante da riqueza do mangue, Roniele Suira lembra que "educação ambiental" vai além de pequenas ações no dia a dia, mas tem a ver com a busca de um novo estado de consciência. Lembrar da força do saber coletivo é uma das propostas da trilha, lembra o ativista, que reforça que a relação dos humanos com o ecossistema não pode ser "de cima para baixo".

O mangue que ali está, aliás, foi obra da própria natureza, conta Roniele, que "se organizou" após um período de devastação. Andar pelo mangue e contemplar, com calma, aquele que é o berçário de diversas espécies de peixes e aves, é um lembrete importante de que "nada está desconectado".

Dunas vegetadas e um outro olhar

Trilha dura cerca de uma hora e meia e pode ser feita por pessoas de qualquer idade
Legenda: Trilha dura cerca de uma hora e meia e pode ser feita por pessoas de qualquer idade
Foto: Ismael Soares

A caminhada continua por uma área de dunas vegetadas e chega a um campo que outrora foi devastado pela ação humana. O líder Suira conta que o local é uma área garantida ao povo tradicional, que inicia um plano de reflorestamento para resgatar frutas nativas como o araçá, o trapiá, o murici, a ubaia e a ameixa-braba, entre outras.

O projeto encontra-se na fase inicial, de refazer o solo. Na etapa de reintrodução da mata nativa, que será feita aos poucos, a sociedade será convidada para atividades voluntárias de reflorestamento. Uma forma, lembra Roniele, de fazer com que as pessoas se tornem conhecedoras e defensoras da causa dos povos tradicionais.

Um vale de cactos pertinho das ondas do mar

Sabiá-da-praia foi a ave responsável por
Legenda: Sabiá-da-praia foi a ave responsável por "distribuir" sementes e criar vale de cactos na região
Foto: Ismael Soares

Uma bela surpresa aguarda em meio às lagoas interdunares, conhecidas pelos mais velhos do povo Suira como baixas, que também são espaços de memória e afetividade para a comunidade.

Vale de cactos: um tesouro escondido pertinho da praia
Legenda: Vale de cactos: um tesouro escondido pertinho da praia
Foto: Ismael Soares

O vale de cactos formado pela ação de sabiás-da-praia, que levavam sementes de outras regiões para a área, ocupa uma grande extensão de terra e passa quase despercebido por muitos cearenses e turistas.

Uma paisagem inesquecível, especialmente para quem acredita que a vegetação habita apenas lugares mais secos, como o Sertão. Ao andar por ali, é possível observar diversas espécies de aves, como o próprio sabiá e algumas corujas.

É preciso apenas olhar para baixo e ter cuidado com os "ais" – apelido divertido que Roniele deu a pequenos cactos que ocupam parte do caminho. Essa parte da trilha fica ainda melhor na quadra chuvosa, a partir de janeiro, quando uma diversidade de flores nativas ressurge junto às lagoas.

Tudo em um só lugar

Pesca é uma das principais atividades econômicas dos moradores da região
Legenda: Pesca é uma das principais atividades econômicas dos moradores da região
Foto: Ismael Soares

De volta ao início de tudo, o mar, a trilha vai levando ao encontro com o rio Cocó. Pouco depois de uma das maiores barracas de praia da região, a Sabiaguaba Park, há um trecho em que o banho é mais tranquilo, e a água é rasa e cristalina, ideal para vislumbrar diferentes tipos de peixes, além de caranguejos e siris.

Encontro do rio com o mar na praia da Sabiaguaba
Legenda: Encontro do rio com o mar na praia da Sabiaguaba
Foto: Ismael Soares

O retorno ao mar e o encontro com o rio é um lembrete, segundo Roniele, de que o território da Sabiaguaba não é formado por diversos espaços diferentes, mas um só território com diversas paisagens, já que tudo ali se conecta: o mar ao rio, o rio ao mangue, o mangue às dunas, às dunas aos cactos. É uma pequena mostra da diversidade da fauna e da flora cearense.

Para finalizar o passeio, além de um banho refrescante (mesmo nos dias mais quentes), pratos tradicionais do povo Suira te esperam: peixe assado com tapioca, uma celebração à cultura da Sabiaguaba.

"A gente vive uma era do não-lugar, que é tudo a mesma coisa, que tá tudo padronizado, não tem nada diferente", reflete Roniele. E faz um convite irrecusável: "A trilha proporciona algo diferente: você identificar que existe uma vida dentro de outra vida”.

Esta reportagem encerra a série Viva o Verão, que em oito matérias explorou o potencial cultural, turístico, gastronômico e de lazer em Fortaleza. 

Serviço
Trilha pela Comunidade da Boca da Barra da Sabiaguaba
Mais informações: @roniele.suira
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