Sotaque de cearenses no BBB 25 conquista reality: entenda origem do modo de falar de Fortaleza

Para pesquisadoras, sotaque da Capital recebeu influências indígenas, africanas e portuguesas, mas se diferencia em muitos aspectos da fala de outras cidades do Nordeste e mesmo do Ceará

Escrito por
Diego Barbosa diego.barbosa@svm.com.br
(Atualizado às 07:18)
Legenda: Renata e Eva têm se destacado no BBB 25 pelo sotaque fortalezense e carregado da cultura comportamental do Ceará
Foto: Reprodução/Instagram

Bastou Renata Saldanha e Eva Pacheco cruzarem o portão do Big Brother Brasil 25 para um jeito todo próprio de falar ganhar o país. “O povo quebrando o pau”, “o pau comendo”, “siem” e “bicha”, além da clássica vaia cearense, arrancam risadas e dizem muito sobre o lugar de origem da dupla de bailarinas. É o sotaque de Fortaleza na rota nacional de audiência.

Não importa se em conversas informais ou durante momentos mais decisivos do programa. A linguagem das duas tem movimentado a internet e comprovado a força cultural da capital do Ceará, repleta de gírias, aglutinações e entonações específicas. Mas, afinal, como nasceu o sotaque fortalezense? Que influências recebeu para chegar ao atual estágio de oralidade?

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O Verso conversou com especialistas no assunto e situa curiosidades interessantes. Em primeiro lugar, a pronúncia da cidade em geral é referida como “fala cantada”, mas tem especificidades que diferem da fala de outras regiões do Ceará, a exemplo do Cariri, e de municípios que fazem divisa com Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte.

“Neste último caso, é comum a população incorporar traços da fala desses outros Estados, como o ‘t’ e o ‘d’ mais dentais – quando falamos ‘tia’ ou ‘dia’, por exemplo. Essas consoantes são palatais na fala de Fortaleza. Outra característica são as vogais, que tendem a ser mais abertas, como em ‘cooperar’”, explica Maria Elias Soares, professora do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do Ceará.

Segundo ela – autora do livro “A linguagem falada em Fortaleza: diálogos entre informantes e documentadores” – a  fala da Capital recebeu influências indígenas, africanas e portuguesas ao longo da história da cidade. Contudo, reitera, é diferente em muitos aspectos da fala de outras cidades do Nordeste e mesmo do Ceará. 

Até nos próprios bairros da cidade a variação linguística é sentida. Isso pode ocorrer devido à heterogeneidade da língua e deve ser analisado conforme os tipos de variantes linguísticas: diatópicas (geográficas), diacrônicas (históricas), diastráticas (grupos sociais) e diafásicas (formal x informal). Para ilustrar, um bom exemplo é comparar os diferentes estratos populacionais habitantes dos bairros da Capital.

Localidades onde residem pessoas que vêm de cidades do interior, com pouca escolaridade, mas com renda muito alta, podem falar de modo diferente de pessoas que nasceram e se criaram em Fortaleza, estudaram em bons colégios e em boas universidades, têm bons empregos, vida social e cultural intensa e viajam muito. “Mas é importante ressaltar que a pronúncia não muda muito”, destaca Maria Elias.

Professora do Departamento de Letras Vernáculas da UFC, Maria Clara Cavalcanti, por sua vez, diz que até mesmo um único indivíduo inserido na comunidade de falantes, com as características próprias dele, também realizará a língua de maneira diferente. “Ou seja, o próprio falante manifesta a língua de maneira variável”, explica a pesquisadora. 

“A depender do contexto em que ele se insere, do gênero discursivo e textual que está entregando – se é um contexto formal ou informal de uso da linguagem oral, se é a modalidade escrita ou falada – também haverá variação”.

O que é sotaque

Todos esses pontos levam a uma reflexão maior sobre o que é sotaque. Maria Elias Soares é enfática: quando falamos desse assunto, é de variação linguística que tratamos. O termo se aplica a uma característica da própria natureza das línguas humanas, a já citada heterogeneidade – marcada, sobretudo, pela pluralidade.

Para designar a expressão, ela cita o Dicionário Ceale, desenvolvido pela Universidade Federal de Minas Gerais. Nele, consta que “a palavra ‘língua’ nos dá uma ilusão de uniformidade, de homogeneidade, que não corresponde aos fatos. Quando nos referimos ao português, ao francês, ao chinês, ao árabe etc., usamos um rótulo único para designar uma multiplicidade de modos de falar decorrente da multiplicidade de sociedades e culturas em que as línguas são faladas. Cada um desses modos recebe o nome de variedade linguística”.

Legenda: Livros com estudos sobre a fala de Fortaleza, sobretudo dissertações, teses e artigos, servem como fonte de pesquisa e reflexão
Foto: Divulgação

Além disso, existem os já mencionados tipos de variantes linguísticas. Desse modo, é possível falar do sotaque de Fortaleza de quatro modos diferentes. “Em geral, o que mais se destaca em qualquer sotaque é a pronúncia e o vocabulário. Tanto que já foram publicados dicionários tratando desse último tipo, como o Dicionário Cearês, com palavras e expressões populares, tipicamente do registro informal, exploradas sobretudo em programas de humor”.

Abirobado, Agora deu, Baitola, Checho, Desarnar, Enxerido, Futrica, Guaribada, Jaburu, Loréu, Mundiça e outras figuram na lista quase infinda de expressões nossas. Apesar de se descrever como alguém não-especialista na descrição da variante regional fortalezense ou cearense, Maria Clara Cavalcanti pontua que algumas características são típicas da realização da Língua Portuguesa no contexto de Fortaleza.

Legenda: “O povo quebrando o pau”, “o pau comendo”, “siem” e “bicha”, além da clássica vaia cearense, são expressões correntes na boca de Renata e Eva
Foto: Reprodução/Instagram

Por sinal, frisar a Capital é importante porque, dada a extensão do Ceará, são muitas as manifestações do dizer. Especificamente em Fortaleza, a nasalização é um atributo típico, bem como alguns itens lexicais. Expressões muito nossas, como “frescar”. 

“A ciência da linguagem descreve, concebe e marca essas características para ter uma visão mais ampla de como a língua funciona. Não significa, porém, que o Português realizado em Fortaleza é melhor ou pior que o realizado em qualquer outra localidade do Brasil ou lusófona”, demarca Maria Clara.

Não ao preconceito

É o que justifica a importância de falar sobre preconceito linguístico, observado desde ambientes formais – escola, trabalho, meios de comunicação de massa – até lugares informais de convivência. O comportamento pode acontecer em qualquer cidade brasileira, tendo como ponto fulcral de discriminação o fato de os falantes não dominarem a norma culta.

A professora Maria Elias Soares cita um estudioso para refletir sobre a questão. “Marcos Bagno, que publicou muitos trabalhos sobre o assunto, afirma: É preciso garantir, sim, a todos os brasileiros o reconhecimento da variação linguística, porque o mero domínio da norma culta não é uma fórmula mágica que, de um momento para outro, vai resolver todos os problemas de um indivíduo carente”.

Legenda: Vindas da escola Edisca, dupla cearense tem representado o comportamento de Fortaleza no reality
Foto: Reprodução/Instagram

Não sem motivo, escolas devem ficar muito atentas para políticas linguísticas que considerem essa questão. Para Maria Clara Cavalcanti, a forma como entregamos a língua – a variante que usamos para nos expressar – traz elementos de nossa identidade. Uma das formas de nos identificarmos é a forma como significamos o mundo, interagindo por meio da linguagem. 

“A questão do preconceito diz respeito à identidade, tendo a língua usada como matéria, como instrumento. Parte-se dela para criticar a identidade cultural do nordestino, do cearense… É uma questão mesmo de relação de poder, de construção de um discurso de dominação do eixo Sul-Sudeste do país em face do eixo Nordeste”, explica.

“Isso tem raízes históricas, envolve questões econômicas e estruturais mais amplas, mas que vão acabar, digamos assim, com o sintoma lá na ponta. Qual a materialidade sintomática? A linguagem. Por isso o uso dela é empregado para fazer uma piada ali, um comentário pejorativo ou preconceituoso acolá, mas na verdade isso é só sintoma. A doença mesmo é o preconceito identitário e a vontade de exercer poder, de se afirmar como aquele que tem mais autoridade em face do outro”.

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