Orson Welles no Ceará: os bastidores da passagem de um ícone do cinema por aqui há 80 anos

Com direção de Firmino Holanda e Petrus Cariry, documentário “A Jangada de Welles” estreia nesta quinta-feira (23), abordando detalhes do histórico episódio

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Na telona, a memória da Fortaleza de 1942 quando visitada pelo gênio criador de “Cidadão Kane”
Foto: Chico Albuquerque

Era junho de 1942 quando Orson Welles (1915-1985) desembarcou em Fortaleza. A Praia de Iracema e as dunas do Mucuripe foram o destino. Para George Fanto (1911-2000), fotógrafo do filme cearense realizado pelo icônico cineasta americano, as semanas que Orson passou aqui  “foram as mais felizes de sua vida”, por admirar a natureza e as pessoas nativas.

Quem divide essas impressões é Firmino Holanda. Ao lado de Petrus Cariry, ele dirige o documentário “As Jangadas de Welles”, cuja estreia acontece nesta quinta-feira (23). A produção esmiuça os bastidores da passagem de Orson pelo Brasil, quando filmou os jangadeiros no Ceará e o Carnaval no Rio de Janeiro.

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Será possível conferir na telona não só a memória da Fortaleza de 1942 – quando visitada pelo gênio criador de “Cidadão Kane”, o que já seria muito (comparável à ida de Serguei Eisenstein no México, uma década antes) – como também reflexões sobre o momento histórico mundial (a Segunda Guerra Mundial, por exemplo). Naquele instante, a ditadura do Estado Novo ainda flertava com o nazifascismo enquanto tentava controlar a classe trabalhadora, penalizando camponeses e pescadores. 

Falas da historiadora Berenice Abreu e do geógrafo Eustógio Correia dão margem para esse terreno de conflitos e da formação de nossa sociedade litorânea. Há ainda um diálogo com o próprio Cinema, citando vários filmes. Problemas sempre pertinentes e atuais nele também se inserem, a exemplo do racismo e da especulação imobiliária – no caso, afastando jangadeiros da própria zona de trabalho. 

Apesar do fruto do trabalho de Welles não ter sido concluído – “It’s All True” abordaria a América do Sul e a parte descoberta era referente ao Brasil, num episódio que se chamaria Jangadeiros – há, portanto, farta documentação disponível. “Começamos a rodar em meados de 2018, com pesquisa e roteiro iniciados no ano anterior”, divide Firmino.

Petrus dispunha de recursos para rodar um longa, mas suficiente apenas para um documentário com a qualidade técnica que ele exige nos próprios filmes. Então, propôs ao colega retomar o tema do média-metragem “Cidadão Jacaré” (2005) – produção de baixo orçamento, vencedora do prêmio Doc.TV por Holanda.

Com possibilidade de gastar um pouco mais – obtendo arquivos fotográficos (still de Chico Albuquerque para “It’s all true”, por exemplo) e de cinema e vídeo, em registros daqui e de fora – a dupla conseguiu dar ainda melhor tratamento às imagens na pós-produção. O que o público verá é a dimensão exata da passagem de Welles por nosso chão.

“Para [o cineasta] Rogério Sganzerla, Welles ‘abrasileirou’ seu modo de produção, pois teve de improvisar muito – e isto lhe serviu para futuros filmes, como atesta outro colaborador do norte-americano. Ele chegou aqui ignorando o que era o samba e aprendeu a gostar do gênero, assim parece; se embebeu de nossa cultura e também de cachaça, com o amigo de Grande Otelo. Era um gringo descobrindo o ‘Brasil terra de constrastes’”.

Welles traidor?

Orson veio para o Brasil, conforme Firmino Holanda, por força da Política da Boa Vizinhança, feito um embaixador cultural dos Estados Unidos – à época cada vez mais se afirmando como nação hegemônica. Mas o papel do cineasta, aos olhos desse poder e da ditadura do Estado Novo, foi o de traidor, por não filmar o que dele se esperava: a visão turística do Brasil

“Ele incomodou os produtores ao colocar muitos negros em cena. De certo modo, se poderia criticar a idealização que seu olhar estrangeiro fez dos jangadeiros – a julgar pela montagem póstuma, de terceiros, feita a partir das suas filmagens”, observa. Além disso, Welles coloca o Mucuripe apartado da cidade, com os pescadores dissociados de um movimento que os inseria num contexto social e político mais amplo.

Legenda: Apesar do filme "It's All True" não ter sido concluído, há farta documentação disponível sobre ele
Foto: Chico Albuquerque

Neste momento, ganha projeção a história de Jacaré. Nascido Manuel Olímpio Meira, se alfabetizou já adulto para melhor cumprir a própria missão, tornando-se o líder da colônia da Praia de Iracema. Carismático, impressionou Welles, ao passo que causava certa desconfiança nas autoridades. Morreu acidentalmente nas filmagens de “It’s All True”, no Rio de Janeiro. 

O fato – sublinhado na sinopse oficial de “As Jangadas de Welles – evoca memórias do Estado Novo, da atribulada passagem de Orson pelo Brasil e da luta dos jangadeiros por direitos trabalhistas. 

Legenda: Orson veio para o Brasil, conforme Firmino Holanda, por força da Política da Boa Vizinhança, feito um embaixador cultural dos Estados Unidos
Foto: Chico Albuquerque

“Orson fez imagens da solidariedade coletiva, que não querem edulcorar a miséria humana, mostrando a face do povo mestiço. Retratou a vida dura e arriscada dos marítimos. Mas, atrelado às coordenadas estratégicas do governo dos EUA, ele certamente não faria de ‘It’s all true’ um libelo social que denunciasse o Estado Novo. Cumpria um papel diplomático, na prática. Porém é difícil julgar um filme cujo autor não concluiu”.

Assim, o documentário lançado agora resulta de um longo fluxo de conhecimentos acumulados desde que Firmino Holanda escreveu o primeiro texto sobre o tema – na revista Nação Cariri, em 1987. Depois, vieram dezenas de outros escritos para jornais, além de um livro, do média-metragem e das aulas ministradas sobre o tema. Basta dizer que a coisa não cessou com “A Jangada de Welles”. 

Legenda: Firmino Holanda é um dos diretores do documentário, juntamente a Petrus Cariry
Foto: Divulgação

Hoje, o roteirista, montador e pesquisador revisa um capítulo sobre o longa cearense de Welles para o segundo volume de “Ceará no Cinema” (obra assinada por ele) acerca da década de 1940. Holanda achou novas informações e desenvolveu interpretações ausentes nos próprios textos e nos filmes feitos junto a Petrus Cariry. O capítulo já está com 50 laudas, sem contar as outras dezenas com capítulos correlatos, uma vez que o livro é centrado no tema do Sertão-Mar – “equação” que permeia o filme agora em cartaz.

Pensar o momento histórico

“A Jangada de Welles” circula em festivais desde 2019. Coincidiu de junho de 2022 ser o mês no qual, há 80 anos, Orson iniciou as filmagens no Ceará, onde trabalharia até meados de julho. Ao evocar memórias na produção, Firmino Holanda e Petrus Cariry utilizaram a estratégia de lançar os dados e sugerir que o público faça a costura entre eles. 

“Por razões já expostas, o tema do filme é complexo, como a própria vida se mostra para todos nós. Aqui, tratamos de cinema, políticas nacionais durante a Segunda Guerra, ditadura, lutas trabalhistas, racismo, lutas sociais por moradia e trabalho, tudo permeado por canções da época – fornecidas pelo amigo Nirez – que também trazem carga ideológica, por idealizar a dura vida dos jangadeiros”.

Livro assinado por Firmino, “Orson Welles no Ceará” (2001) foi a base de tudo. Denso, o material, para além das temáticas já citadas, dialoga com o Brasil contemporâneo por também versar sobre a pesca industrial, arruinando a economia dos pobres pescadores artesanais.

Legenda: Cartaz oficial do documentário, lançado nesta quinta-feira (23)
Foto: Divulgação

Acima de tudo, há a miséria do trabalhador, problema que se perpetua e que tende a ser naturalizado pelo olhar da classe média – refletido inclusive no cancioneiro popular, que tendia a romantizar a vida dos jangadeiros. 

“Era uma visão atenuante da labuta diária e arriscada deles. No filme, nosso saudoso pesquisador Cristiano Câmara lança uma ironia nesse sentido, ao mencionar o verso famoso  alusivo à ‘alegria de um barco voltando’. Seria algo poético, mas cheio de incerteza, pois nessa volta não se sabe se pesca foi boa ou se alguém morreu durante a perigosa tarefa”.

Intervalo documental entre duas obras praianas ficcionais dirigidas por Petrus Cariry – “O Barco” (2018) e “A Praia do Fim do Mundo” (2021) – “A Jangada de Welles” forma uma espécie de “trilogia do mar”, capaz de gerar presentes e futuras análises. Um filme-mergulho, em amplos aspectos.


Serviço
“A Jangada de Welles”, documentário de Firmino Holanda e Petrus Cariry
75 minutos. Classificação indicativa: 12 anos. Em cartaz a partir desta quinta-feira (23), no Cinema do Dragão e nos Cinemas Benfica

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