Espetáculo histórico da Edisca volta ao palco 27 anos depois
“Koi-Guera” reflete sobre grave situação dos povos originários enquanto convoca público à ação por meio de 40 bailarinas e bailarinos
Quando estreou nos palcos, em 1997, “Koi-Guera” tinha um objetivo claro: refletir sobre a aflitiva situação dos povos originários brasileiros. A motivação partiu da própria idealizadora da Edisca – companhia à frente do espetáculo – ao ter contato com a tribo Tapeba do município de Caucaia, Região Metropolitana de Fortaleza.
“Viviam numa condição de favelização”, lembra Dora Andrade, com pesar. Agora, 27 anos depois, ela e grande equipe retornam à histórica montagem de modo a novamente voltar o olhar sobre um panorama que, infelizmente, insiste em permanecer. As apresentações do retorno de “Koi-Guera” ao tablado acontecem de 2 a 5 de outubro no Cineteatro São Luiz.
Para a remontagem, a decisão foi manter o balé exatamente na íntegra. Não houve nenhuma alteração do ponto de vista coreográfico nem cenográfico – talvez alguma modernidade apenas na iluminação, com a inclusão de elementos tecnológicos. E, claro, no que diz respeito ao corpo de baile constitutivo do número, desta vez jovem e repaginado.
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São 40 bailarinas e bailarinos, alguns a partir dos 8 anos de idade. “Achei que era muito importante a Edisca iniciar, com montagem do balé, uma reflexão e um aprofundamento do conhecimento das crianças sobre os nossos pais e mães indígenas, e trazer esse tema à tona para gerar reflexão também nos espectadores”, conta Dora.
Segundo ela, remontar o clássico trabalho se sintoniza com o que o planeta assistiu, boquiaberto, frente à desumana situação dos indígenas Yanomami, no começo de 2023. À época, a desnutrição atingiu níveis extremos, especialmente entre crianças, com mortes relacionadas à fome e doenças evitáveis. Um horror.
“Em síntese, a ideia é oportunizar, além de uma vivência de um espetáculo esteticamente muito bacana, uma meditação sobre como nós estamos tratando nossa ancestralidade. Vinte e sete anos depois, a motivação dele segue a mesma, porque o que nós vimos com relação à condição de abandono e negligência dos Yanomami foi algo que chocou o mundo”.
Para além do entretenimento
Não à toa, ainda conforme a artista, a única novidade de fato sobre o trabalho de décadas passadas é a indiferença da sociedade com os povos originários – fato encarado com lamento. Por outro lado, essa mesma premissa faz com que o olhar da Edisca fique ainda mais atento à própria história, a fim de considerar a força dos projetos assinados pela casa.
“Koi-Guera” mesmo foi o segundo espetáculo aberto ao público da companhia – o primeiro foi “Jangurussu”. Já nesses primeiros instantes, a preocupação sempre foi transbordar o entretenimento por meio da impressão de uma marca singular: trazer à cena questões ligadas às minorias, à Ecologia e outros temas sociais pertinentes.
“Acho que é muito importante para um artista falar do que lhe afeta no tempo que lhe foi dado viver”, defende Dora. “Especificamente sobre ‘Koi-Guera’, considero um espetáculo muito belo, plástico, comovente e muito a tempo. Espero que possa promover reflexão, quiçá movimentação e ação”.
Para se ter ideia de como a primeira temporada de apresentações da montagem balançou o universo teatral, há 27 anos, até hoje a poesia, coreografia e trilha sonora são lembradas por amantes das Artes Cênicas. Além de Fortaleza, “Koi-Guera” também percorreu São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, arrebatando mais de 41 mil espectadores.
Neste retorno, também estarão de volta figurinos e adereços adquiridos junto à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), pertencentes a etnias como Ticuna, Gavião, Nambiquara e Wai Wai. Ao longo dos anos, o desgaste natural dos materiais exigiu um minucioso processo de restauração, realizado especialmente para esta temporada.
Vida transformada pela arte
Há 20 anos na Edisca – 17 como educanda e há três como coordenadora de dança da instituição, além de bailarina – Mayra Vasconcelos é uma das integrantes da nova versão de “Koi-Guera”. Emoção e responsabilidade são palavras-chave para compreender os sentimentos da jovem de 29 anos diante da empreitada.
“É indescritível. Cresci na Edisca vendo fotos e vídeos do ‘Koi-Guera’, ouvindo histórias desse espetáculo, vendo como ele é uma referência para a companhia e para a dança cearense. Fazer parte desse elenco agora é praticamente a realização de um sonho”, dimensiona.
A sensação, não sem motivo, é de carregar consigo a memória de todos que passaram pela casa e que fizeram parte do elenco da primeira versão. Ao mesmo tempo, sente-se privilegiada por abrir espaço para uma nova história a partir do elenco atual.
“É muito importante saber que faço parte dessa continuidade e que, por meio da dança, posso tocar outras pessoas, assim como fui tocada quando conheci e comecei a ensaiar para esse espetáculo”. Falando em ensaio, toda a preparação foi intensa e profunda. Mayra e os outros 39 bailarinos assistiram a vídeos da coreografia no YouTube, mas, devido à baixa qualidade da gravação naquela época, contaram com apoio especial.
O suporte veio de ex-bailarinas da Edisca, participantes do espetáculo de 1997. Neiliane Felipe, Wilma Lopes, Lídia Castro, Adriele Pereira e Nadiana Agostinho chegaram junto e tornaram tudo ainda mais sublime.
“Iniciamos o processo de remontagem em 2023, tivemos uma grande pausa devido a uma reforma da Edisca, e voltamos com toda a força. A ideia sempre foi que a nova versão não perdesse a sensibilidade e o respeito com o tema existente. ‘Koi-Guera’ não é só movimento: é memória, denúncia e resistência”.
Vai além da arte. Provoca, sensibiliza, mobiliza e faz pensar. Para Mayra, é completamente impossível sair do espetáculo se emocionar e refletir sobre nossa história e as feridas abertas do Brasil. “De certa forma, o ‘Koi-Guera’ de 1997 e o de hoje se encontram porque a luta é a mesma. Só que agora somos nós que precisamos carregar essa voz pra frente”.
Serviço
Espetáculo “Koi-Guera”, da Edisca
De 2 a 5 de outubro no Cineteatro São Luiz (Rua Major Facundo, 500, Centro). Horários: dias 2 e 3, às 19h; dia 4, às 16h e às 18h; dia 5, às 16h e às 18h. Ingressos neste link. Mais informações por meio do perfil da Edisca nas redes sociais