Da janela de casa, artista cearense transforma trabalhadores em pintura

Iury Simões aprendeu a desenhar sozinho e registra do gari ao jardineiro.

Escrito por
Diego Barbosa diego.barbosa@svm.com.br
(Atualizado às 07:01, em 19 de Novembro de 2025)
Na imagem, uma foto em primeira pessoa, de cima, mostra uma pessoa segurando um pequeno bloco de notas com um esboço em aquarela de uma figura humana em pé, vestindo uma camisa rosa e calças cinzas, e olhando para o telefone. A mão segura um pincel de água transparente, aplicando tinta. O bloco está preso com um grande clipe de fichário preto. Em primeiro plano e ao fundo, há outros pequenos cartões com esboços em aquarela de figuras humanas em movimento ou paradas. Um estojo de ferramentas e uma paleta de plástico branco estão visíveis à direita. O ambiente é uma superfície de madeira clara.
Legenda: Processo criativo de Iury Simões é mostrado na internet do começo ao fim, e rende obras feito essa.
Foto: Arquivo pessoal.

Janelas podem ser só janelas. Sob o olhar de Iury Simões, elas são portais para a beleza. É que esse cearense residente em São Paulo registra, por meio da pintura, os transeuntes que passam do lado de fora do apartamento. A maioria são trabalhadoras e trabalhadores, gente capaz de atrair pouca atenção – mas que, nas mãos certas, vira arte, cor, poesia.

Os traços finos, delicados e repletos de personalidade acumulam significado. Para Iury, é forma de se conectar com algo muito valioso em si: a paixão pelas pessoas e pelo próprio ofício. Não à toa, o que antes começou em espaço fechado, entre as quatro paredes do lar, hoje alcança a rua. Passou a ilustrar populares ao ar livre, sentadinho num canto. O jardineiro, o gari, o vendedor de beiju. Um casal de idosos de mãos dadas, avó e neto.

“Durante a pandemia, eu não sabia desenhar pessoas. Então, a cada dia daquele período, estudei várias técnicas diferentes e aproveitei pra gravar o que estava estudando. Os seguidores foram simpatizando com isso também. Foi quando comecei a olhar pela janela para pegar modelos rápidos”, explica a gênese da prática pela qual ficou conhecido.

Na imagem, um artista barbudo de meia-idade, vestindo uma camiseta marrom-rosada e calças cáqui largas, está de pé em um estúdio bem iluminado, de frente para uma grande janela. Ele está olhando para baixo e segurando um instrumento de desenho ou pincel. A janela oferece uma vista para a rua, mostrando um edifício clássico de vários andares com varandas em estilo Art Déco e a folhagem verde de uma árvore. À direita, um cavalete de madeira exibe dois pequenos painéis de arte, ambos representando figuras históricas em uniformes coloridos. A mesa de trabalho em primeiro plano está cheia de materiais de arte, incluindo pincéis, paletas, e uma luminária articulada preta.
Legenda: Observações da janela de Iury Simões acontecem a qualquer hora do dia.
Foto: Arquivo pessoal.

Agora, seja nos diferentes endereços da capital paulista, seja quando retorna a Fortaleza e ao interior do Ceará para visitar a família, ele colore tudo. Criou uma mini-paleta – espécie de aquarela em miniatura – e vai longe com ela na imaginação. Há um detalhe importante: ao término da ilustração, feita em cerca de sete minutos, o inspirado criador costuma dar o desenho de presente para o modelo registrado no papel. As reações, claro, emocionam.

“É algo muito impactante, que fica cravado na alma. Não sei se a pessoa vai lembrar do que aconteceu ali, porque não foi nada combinado… Mas fica na minha memória quando consigo presenteá-las. Na maioria das vezes, são trabalhadores”. 

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Esse apreço pelo operariado tem sentido: Iury se enxerga ali. Outrora também já foi alguém que ocupou a rua para tentar sobreviver do próprio trabalho artesanal. Ao chegar em São Paulo, há seis anos – após trancar o curso de Arquitetura em Fortaleza – começou a expor pinturas no Beco do Batman, famoso ponto turístico no qual a arte é protagonista.

Lá, passou a obter renda superior àquela que ganhava em Fortaleza, algo muito positivo. No entanto, tão logo chegou a pandemia de Covid-19, precisou recalcular a rota. A ideia para investir nas redes sociais como forma de divulgar o talento nasceu da esposa, Mirela Albuquerque, e nunca mais parou. Hoje, até o fechamento desta reportagem, Iury reúne 530 mil apreciadores de um dom inquieto em abraçar os pormenores do mundo.

Artista autodidata

Tudo para ele vira motivo para criar, não apenas trabalhadores: o casaco pink de uma moça, as listras no vestido de outra, o rapaz com o carrinho de compras. O processo criativo é mostrado na internet do começo ao fim, sobretudo quando consegue entregar o desenho para os modelos. A partir dali, nenhum personagem é anônimo: viram nossos queridos também. 

“Um dos meus grandes presentes é conseguir presentear pessoas que talvez não pudessem comprar meu trabalho”, celebra. Talvez seja porque esses detalhes façam diferença numa trajetória que elege minúcias como bandeiras. Iury se considera artista autodidata, e lembra bem de quando despertou para as artes plásticas, ainda na infância.

Na imagem, um artista barbudo, com expressão alegre e sorriso, sentado em uma cadeira de escritório marrom, atrás de uma mesa em seu estúdio. Ele veste uma camiseta marrom-rosada e calças cáqui largas, e segura um pincel e um celular. O estúdio é bem iluminado, com uma grande janela à direita que mostra a vista de prédios urbanos e folhagem de árvores. A parede atrás do artista está decorada com gráficos de cores, cartazes de misturas de tintas e referências visuais de arte. Uma estante de madeira à esquerda está cheia de livros de arte e um pequeno manequim articulado. A mesa de trabalho contém diversos materiais de arte, como uma paleta de plástico branco, um estojo de madeira, e luminárias articuladas com luz de LED.
Legenda: Entre as referências de Iury Simões, está o também cearense Raimundo Cela.
Foto: Arquivo pessoal.

Aconteceu aos nove anos, quando folheava um livro com obras de arte pertencentes à Fundação Edson Queiroz, motivado por um tio profissional do audiovisual. Na brochura, havia criações, por exemplo, de Raimundo Cela – pintor natural de Sobral, interior cearense, referência automática para ele junto a nomes como o argentino Caribé, o francês Monet e o também brasileiro Candido Portinari.

As cores e o movimento impresso por Cela aos jangadeiros no ato de empurrar a jangada, em preparação para entrar na água, assombraram o menino e conduziram os passos seguintes. Um deles foi a fina percepção de que, no Nordeste do Brasil, a gente enxerga as cores de outra forma. É tudo mais vivo. “Mesmo nas dificuldades da vida, tudo é mais colorido no Nordeste, e eu notei isso a partir do momento em que passei a morar aqui, em São Paulo”.

Na imagem, mão segurando um pequeno bloco de desenho ou caderno aberto, preso por dois clipes. O desenho, feito em aquarela ou guache, retrata um gari de costas, vestido com uniforme de trabalho laranja e marrom, caminhando e segurando duas vassouras nas mãos. Ao fundo, desfocado, vê-se uma rua de paralelepípedos e prédios de cores claras, possivelmente rosa antigo ou pêssego, com janelas e sacadas.
Legenda: Ilustração de Iury Simões em uma das ruas de Salvador.
Foto: Reprodução/Instagram.

O trajeto para evoluir na pintura deu-se naturalmente: perceber e estudar, sempre mediado por livros e revistas. Neles, o contato tanto com imagens quanto com tirinhas como a de Mino Castelo Branco – cartunista fortalezense – cresceram no íntimo o desejo de seguir por aquelas paradas. Assim, aprendeu que o vazio, a página em branco, também é desenho, e que é possível agregar realismo, impressionismo, esboço arquitetônico e poesia na mesma folha.

Falando nela, é quem toma conta de cada contorno no papel, beneficiada pela escuta atenta e o simbolismo de “Construção”. Na canção de Chico Buarque, Iury busca motor para seguir produzindo. “Adoro como ela foi construída, como cada passo vai contando a história e, mesmo que você modifique os versos, ainda se mantém a lógica do poema. Acho que estudar por livros causou esse efeito sonoro de poesia no meu trabalho”.

Registrar mil anônimos

Todos esses caminhos levaram o artista a ser apelidado de “poeta das cores” por quem o acompanha – misto de carinho e de síntese da dúvida que paira, se o trabalho assinado por ele é poesia, arte, pintura ou crônica. Deve ser tudo junto. E é mesmo.

“Tem um equilíbrio. Hoje comercializo minhas obras originais, não trabalho por encomenda, mas imagina ter esse equilíbrio todo em cada obra e, ainda assim, ser comercial. Vivo disso, dependo financeiramente desse ofício, e as pessoas se encantam, querem ter um original meu em casa… É uma realização”, celebra, a entrevista acontecendo no exato dia em que completou 32 anos, no último dia 11 de novembro.

“Meus pais, que não são do mundo da arte – ele é policial, ela trabalhou em banco – também ficam muito felizes com tudo o que está acontecendo comigo. Querendo ou não, todo pai e toda mãe fica preocupado se vai dar certo viver de arte, e confesso que no Brasil não é fácil ser artista plástico. Mas me sinto um felizardo. Tento pegar esse privilégio que tenho de ser reconhecido e, de certa maneira, retribuir o que me dão”.

No momento funcionário de uma empresa de tapeçaria, estudante de Arquitetura e cada vez mais empenhado em aperfeiçoar a presença nas redes sociais, Iury vibra sobretudo por dois grandes feitos. Um deles é a exibição dos próprios desenhos na novela “Três Graças”, da Rede Globo, no escritório do personagem vivido por Miguel Falabella.

Na imagem, um homem barbudo e sorridente, com uma camiseta cor-de-rosa e calças claras, está sentado em uma cadeira de acampamento em um gramado. Ele usa um boné bege. Em sua mão esquerda, ele segura um pequeno caderno de esboços aberto, mostrando uma ilustração de figura humana. Na sua mão direita, ele segura uma caneta ou pincel. Uma bolsa de couro marrom está ao seu lado esquerdo. Ao fundo, há folhagem verde escura e um barranco gramado.
Legenda: Um dos projetos de Iury Simões é "Andarilhos", com mil personagens retratados.
Foto: Reprodução/Instagram.

A outra é a consolidação do projeto “Andarilhos”, cujo objetivo é reunir mil ilustrações de personagens anônimos encontrados em todo o Brasil. No momento, já são 800 – galeria viva com vontade de se tornar exposição e percorrer o país. Quem sabe? A depender de Iury, a travessia está dada. E se você perguntar se as observações pela janela continuam, ele dirá que não deixarão de acontecer.

“Faz muito bem pro Iury artista essa troca de sentimentos com os modelos. Mesmo que eu mude de cidade, ou que volte pra Fortaleza, a ideia é continuar produzindo”, diz. 

“Minha composição preferida sempre será a próxima porque são histórias que vão acontecendo, e é sempre impactante quando isso ocorre. Acho que quando não tiver mais o desafio de produzir uma obra de arte, será entediante demais. Por isso torço para que minha próxima obra seja sempre minha preferida. Então nunca vou cansar de criar”.

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