Como Clarice Lispector se tornou hit também em língua inglesa

Cearense lança livro sobre o tema nesta terça-feira (9), dia em que a escritora partiu.

Escrito por
Diego Barbosa diego.barbosa@svm.com.br
Na imagem, retrato em preto e branco e em close-up de Clarice Lispector. A imagem foca no rosto da escritora, em um ângulo que destaca seus olhos grandes e expressivos, um pouco voltados para cima e para a esquerda. A iluminação é dramática, com sombras fortes (chiaroscuro) que acentuam as maçãs do rosto e o contorno do nariz. Ela tem cabelos ondulados e escuros, e seus lábios estão levemente entreabertos, com um toque de batom. A foto transmite uma expressão de intensidade e mistério.
Legenda: A escrita livre de Clarice Lispector, insubmissa a qualquer gênero, é um dos motivos para leitura no exterior.
Foto: Acervo Instituto Moreira Salles.

Parece ontem, mas foi em 2024 que a americana Courtney Henning Novak ganhou as redes sociais ao reagir, emocionada, à leitura de clássicos da literatura brasileira. Após conferir “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, ela não poupou comentários sobre “A Hora da Estrela”: “Como vocês vivem depois de ler Clarice Lispector?”, indagou.

A repercussão está longe de ser isolada. Nos últimos anos, cada vez mais nomes de nossas letras têm chegado ao estrangeiro com reverência e pompa. Descoberto e finalmente explorado, o pote de ouro gera efeitos, e Lispector é constantemente referenciada nesse movimento. É o que justifica o lançamento, nesta terça-feira (9), de um livro sobre o tema.

“Clarice Lispector em língua inglesa - Uma história contada pela tradução”, publicado pela Editora UFC, tem autoria da professora e pesquisadora Antonia Sales, e chega ao público no exato dia de falecimento da ucraniana radicada no Brasil. O livro reforça a dimensão pop de Clarice, sobretudo devido a um projeto de marketing bem-sucedido lá fora.

Veja também

“Nas duas últimas décadas, ela se tornou um cânone literário mundial, alcançando diversos públicos. Nesse momento de divulgação da escritora, há uma ênfase na raiz judaica dela e na qualidade da escrita”, introduz Antonia. 

A pesquisa esmiuçada no livro foca em países de língua inglesa, levando em conta a dificuldade que escritores estrangeiros têm para serem publicados nesses lugares. Nos Estados Unidos, por exemplo, apenas 3% do que é publicado são traduções, conforme levantamento do ano de 2018.

“No mesmo ano desse estudo, quando iniciei o doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina, voltei-me para a ‘Lispectormania’, ou seja, esse período atual da literatura clariceana no exterior. Parte da pesquisa foi feita na Universidade de Alberta, no Canadá, financiado pela Capes, a Coordenação de Pesquisa brasileira”, detalha a autora.

Percurso de Clarice na gringa

Desde o começo, a principal preocupação de Antonia Sales era entender o percurso da literatura de Clarice no estrangeiro – uma vez a escritora mesma não ser brasileira. Nasce na Ucrânia em 1920, chega ao Brasil com dois anos de idade para viver no Recife, vence prêmio na primeira publicação e apenas na década de 2010 alcança o espaço literário internacional. 

“Então, acredito que o ponto forte do livro é a história desse percurso”, opina a pesquisadora. Não sem motivo, os capítulos da obra se subdividem a partir dos contextos de Estados Unidos e Inglaterra, e relacionam o fenômeno da “Lispectormania” a partir desses países.

Na imagem, retrato colorido da escritora Clarice Lispector, tirado por Maureen Bisilliat. Clarice está em primeiro plano, com cabelos curtos e ruivos, vestindo uma roupa escura que contrasta com sua pele clara. Ela segura um ramo de flores com pequenas inflorescências cor-de-rosa, que cobre parte de seu colo e ombro. Ao fundo, há um muro de pedra coberto por musgo escuro e manchas rosa-claro ou lilás. A expressão da escritora é séria e introspectiva.
Legenda: Lispector é a autora brasileira com mais apoio para publicação nos editais do Programa de Apoio à Tradução.
Foto: Maureen Bisilliat/Acervo Instituto Moreira Salles.

Há vários motivos para que Lispector chegue tão forte no exterior quanto nas paragens daqui. A escrita livre, insubmissa a qualquer gênero, atrai. A poesia também pode estar em qualquer texto dela, seja conto, crônica ou romance. “É válido ressaltar que grande parte das personagens dela são mulheres, ou seja, traz diversas facetas do feminino. Vale muito a leitura”, recomenda Antonia Sales.

Entre outras informações, em “Clarice Lispector em língua inglesa - Uma história contada pela tradução”, a estudiosa situa que Lispector é considerada, de acordo com dados da Fundação Biblioteca Nacional, a autora brasileira com mais apoio para publicação nos editais do Programa de Apoio à Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior.

Ela é seguida por outros renomados autores – a exemplo de Machado de Assis e Jorge Amado – e, dos 350 autores contemplados pelos editais, é a escritora mais traduzida, com total de 60 obras, 50 delas publicadas na última década. Números capazes de comprovar o interesse crescente pelos trabalhos assinados por ela.

Na pesquisa de Antonia, também há tensionamentos. Conforme sublinha, o texto de Clarice Lispector demanda esforço extra por parte do profissional tradutor, uma vez que, além de se tratar de literatura, ainda há todas as complicações, dificuldades e idiossincrasias típicos do modo como ela arquiteta a palavra.

Essa complexidade da linguagem da obra clariceana foi um dos entraves da expansão das obras de Clarice além-Brasil. No entanto, time de embaixadores – tradutores e editores, entre outros profissionais – elevou a escritora à categoria de fenômeno literário.

Para alguns pesquisadores, o fracasso das traduções ocorreu em parte pelo esforço para encaixar as obras da escritora no corpus da literatura latino-americana ou na filosofia existencial.

Quanto à circulação de Clarice nos Estados Unidos, obras da escritora brasileira chegam no país devido a dois fatores interconectados. Um deles é acadêmico, marcado pela presença de professores universitários trabalhando em universidades americanas no campo dos estudos brasileiros e pelo número de cursos luso-brasileiros em oferta.

“Outro é o mercado editorial, destacado pelo ‘boom’ da ficção da América Latina, ocorrido nas décadas de 1960 e 1970, quando o governo dos Estados Unidos começou a investir em pesquisa e ensino sobre a América Latina, em reação às repercussões políticas depois da Revolução Cubana de 1959”, completa Antonia no livro.

Quanto mais Clarice, melhor

Farta em referências – de jornais e revistas a citações de outros estudiosos acerca do assunto – não é desejo de Antonia Sales parar de investigar os caminhos de Clarice em outras fronteiras. Quer continuar pesquisando a literatura clariceana no exterior.

Para talvez fazer jus ao que a escritora Thu-Huong Ha teceu sobre Lispector na Atlantic, revista literária de Boston, em 2015. O texto de assinatura dela começa assim:  “A escrita de Clarice, bizarra, desafiadora e deslumbrante, tornou-se parte integrante do cânone literário brasileiro e atraiu um pequeno, mas feroz, culto de seguidores em todo o mundo”.

Alguém duvida?

 

Serviço
Lançamento do livro “Clarice Lispector em língua inglesa - Uma história contada pela tradução”
Nesta terça-feira (9), às 18h, no Auditório José Albano, Centro de Humanidades da Universidade Federal do Ceará (Av. da Universidade, 2762 - Benfica). Mais informações nas redes sociais da Editora UFC

Este conteúdo é útil para você?
Assuntos Relacionados