Chafariz histórico do Poço da Draga, feito para driblar falta d’água, recebe intervenção artística e encanta pela beleza

Realizada durante a última edição do Festival Concreto, arte ressignifica o local, considerado patrimônio da comunidade por garantir a sobrevivência de moradores em época desafiadora

Escrito por
Diego Barbosa diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: O antes e depois do Chafariz do Poço da Draga: arte urbana tem chamado moradores e pessoas de outras partes da cidade para mais perto
Foto: Franklin Stein

Ninguém mais passa indiferente ao chafariz do Poço da Draga. Antes decrépita e pouco convidativa, agora a estrutura exibe um forte tom de azul e muita delicadeza nos detalhes: desenhos da Ponte Velha, de pássaros, ondas e frutos do mar – tudo sobre pequenos azulejos aplicados nas paredes para serem vistos de perto. Um pequeno ponto turístico.

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“O Poço da Draga é conhecido pelos pescadores e trabalhadores do porto. Eu quis, com a arte, referenciar as mulheres que também ajudaram na construção da comunidade e que lutam até hoje por melhoria das condições de vida no local”, explica Franklin Stein, artista visual responsável pela intervenção, em novembro do ano passado. 

Além das imagens já citadas, foi criado um desenho lateral formado somente por linhas que retratam uma mulher. Ela está com balde na cabeça e um peixe na mão, caminhando em meio a uma grande onda. São reflexos de anos e anos de vivência no espaço que agora tem possibilidade de enxergar esses espectros também pela lente cultural.

O processo artístico durou cinco dias e misturou referências do design gráfico com a arte popular, valendo-se do conceito aplicado pelo próprio Franklin em outras ações dele na cidade, a exemplo da pintura do Farol do Mucuripe e do Bode Ioiô. “Queria sinalizar o chafariz num bloco de cor viva e forte pra se destacar do entorno e ser chamativo”.

Dito e feito. Ao lado de uma árvore e em meio a casas de teto baixo, está lá a construção, agora batizada de Memorial do Chafariz Poço da Draga em homenagem à nova roupagem, mas sobretudo à história que carrega. Segundo Franklin, o chafariz é um ponto de referência entre os moradores mais antigos porque dialoga com acontecimentos de décadas passadas.

Facilitava o acesso à água numa época em que a comunidade ainda não possuía saneamento básico. “Ou seja, conta um pouco da história do lugar, mas já estava caindo no esquecimento. Acredito que a arte urbana tem esse poder de atrair novos olhares para o que já estava ali, no caminho das pessoas, e que muitas vezes, pela rotina, se torna invisível”.

Contexto histórico do Chafariz

Geógrafo, guia local, articulador comunitário e morador do Poço da Draga há 40 anos, Sérgio Rocha aprofunda detalhes sobre a estrutura. O chafariz se encontra numa bifurcação entre a rua Viaduto Moreira da Rocha e a Caixa Cultural Fortaleza. Essa bifurcação acontece por meio do trilho que saía de um equipamento, a Cidal, de onde partiam trens com carga do porto. A fonte d’água, portanto, foi erguida nesse locus, no início dos anos 1970. 

“Ela foi criado porque no Poço da Draga não havia serviço de abastecimento de água. Então, o padre Tito [Guedes], pároco da Catedral, vendo a situação dos moradores, propôs a seu Valmir Melo – então presidente da Associação do Poço da Draga – a feitura de um chafariz para a captação de água subterrânea”, diz.

Apesar de a água ser salobra – logo, não-apropriada para consumo – pessoas usavam-na para lavar roupas, pratos e outros utensílios. A desativação do chafariz aconteceu somente em 1980, quando o saneamento chegou, o que não impediu de ele continuar na paisagem numa espécie de casinha, de torre, tornada símbolo do patrimônio cultural do Poço.

“Quando dizemos que vai ter uma reunião ou distribuição de algo, logo mencionamos que será lá no chafariz. Tornou-se uma localidade”, situa Sérgio, também indicando que hoje o lugar onde o chafariz fica é chamado Cantinho da Mara em virtude do ponto de venda de lanches mantido pela filha da moradora mais idosa da comunidade: dona Nilce, de 91 anos.

Antes disso, a estrutura chegou a servir inclusive de moradia para um habitante já falecido do Poço da Draga. Lá, ele estendia uma rede no exíguo espaço de dois metros de comprimento e dava outra conotação ao recinto. “A partir da sensibilidade de Franklin Stein, foi notada a importância de o chafariz ter a história contada e validada por meio de uma intervenção”.

O Chafariz e Fortaleza

A relevância do espaço se torna ainda maior quando percebemos que ele sintetiza a trajetória da própria capital cearense. Recorda o panorama de ocupação do litoral de Fortaleza. De acordo com Sérgio Rocha, essa parte da cidade próxima ao mar não era querida antigamente, principalmente pela classe dominante – que via, no cotidiano da área portuária, motivos para ficar longe, tendo em vista a presença de estivadores, pescadores e outros.

“A alta sociedade vivia no Centro, no Benfica e no Jacarecanga. Por outro lado, na praia existiam os chafarizes, tendo em vista que o serviço de distribuição de água não chegava a esses lugares. Para ter acesso a ela, faziam-se, além de chafarizes, bombas e cacimbas. Todos esses elementos tinham uma finalidade coletiva, massiva”.

Legenda: Fotografias do Poço da Draga do começo dos anos 2000: segundo pesquisador, litoral de Fortaleza não era bem quisto pela classe dominante
Foto: André Lima/Sedoc - SVM

Trocando em miúdos, chafarizes eram importantes para a cidade porque em quase todas as residências litorâneas datadas de 90 a 100 anos atrás haviam essas estruturas para driblar a falta d’água e prover algum tipo de sustento ao povo. Dialoga, assim, com o comportamento popular frente às intempéries e com a antiga organização social da cidade.

Quanto àquele ainda sediado no Poço da Draga – outrora camuflado em meio às casas, sem nenhuma sinalização – também reflete a luta centenária de resistência contra a especulação imobiliária e de invisibilidade por parte do poder público. É sinal de preservação da memória por meio dos espaços e das histórias das pessoas. “É importante para fortalecer essa luta”.

Arte para todos

A intervenção aconteceu no ano passado por intermédio do 10º Festival Concreto, o qual contou com intervenções temporárias e permanentes realizadas na comunidade do Poço da Draga. Entre as temporárias, estão duas esculturas eólicas da autoria de Narcélio Grud, idealizador do projeto, e uma instalação do artista paulista Artur Lescher chamada Vagalume.

Houve também instalações do Pequeno Colecionador – coletivo que desenvolveu três bicicletas com traquitanas, nas quais as crianças da comunidade puderam se divertir e interagir – além de ações formativas com oficinas de graffiti para crianças e para terceira idade, visita guiada sobre a história do local, shows musicais e projeções mapeadas.

De caráter permanente, murais de pequena, média e grande escala foram feitos na areninha, no paredão da indústria naval e em algumas casas da comunidade por artistas locais, nacionais e internacionais. Entre eles, está o de Franklin Stein. “A escolha do Poço faz parte da diretriz do Festival de levar arte urbana às comunidades, não só nos centros culturais e nas regiões culturais”, destaca Narcélio.

Paredes desgastadas deram lugar ao Memorial do Chafariz - Poço da Draga, um dos novos pontos de visitação da comunidade
Legenda: Paredes desgastadas deram lugar ao Memorial do Chafariz - Poço da Draga, um dos novos pontos de visitação da comunidade
Foto: Franklin Stein

Legenda: Detalhes do Memorial do Chafariz - Poço da Draga
Foto: Franklin Stein

Para ele, o poder da arte urbana vai além do que podemos imaginar – desde sensibilizar e trazer à tona questões importantes até ressignificar espaços, produzindo vivências mais saudáveis. “A rua se torna lugar de fruição, experimentação e exposição, sem cobrança de ingressos ou estruturas culturais que por vezes têm caráter elitista e afastam as pessoas com menor poder aquisitivo. A arte urbana, assim, está entre as linguagens mais democráticas”.

Sergio Rocha que o diga. Enquanto estudioso e morador do Poço da Draga, conta que a relação da comunidade com a intervenção promovida pelo Festival Concreto foi muito positiva. “Os moradores passaram a relembrar e revisitar, dentro da memória deles, no formato afetivo de identidade local, algo de significação para a cidade, de pertencimento”.

Franklin Stein, por sua vez – tendo realizado pela primeira vez um trabalho na comunidade – comemora o fato de os habitantes se sentirem mais valorizados e orgulhosos com todas as novas artes feitas no local onde vivem. É sinônimo de beleza e possibilidade.

“Todos os moradores queriam ter as casas pintadas pelos artistas durante o Concreto. E um detalhe que diz muito é que, após a finalização do meu mural, as pessoas mudaram o ponto de descarte do lixo. Os murais, assim, viraram locais onde nativos e turistas param para fazer fotos. Foram dias de muito aprendizado sobre essa parte da cidade”.

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