Pioneiro na periferia, Centro Cultural Bom Jardim já foi terreno desabitado e hoje é espaço que muda vidas

Casa chega aos 18 anos repleta de conquistas na comunidade onde está localizada enquanto continua a sonhar para que outras possibilidades possam chegar a mais gente

Escrito por
Diego Barbosa diego.barbosa@svm.com.br
(Atualizado às 10:11)
Legenda: De crianças a idosos, Centro Cultural Bom Jardim é recanto de aprendizados, trocas e conexões
Foto: Ismael Soares

Antes pedra e areia, hoje paredes coloridas. Outrora vazio e silêncio, agora repleto de gente. Lugares como o Centro Cultural Bom Jardim já nasceram vocacionados à vida. Inaugurada em 2006, a casa chegou à maioridade em dezembro do ano passado com história que aposta na transformação movida à arte e ao fazer coletivo.

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A semente do que viria a ser o recanto – primeiro equipamento cultural do Estado do Ceará sediado na periferia – foi improvável. Aconteceu num terreno desabitado, espécie de depósito com materiais e sobras de construção. A recordação é forte em quem estava nesse início: enormes bancos de areia ocupavam a área, motivo até de brincadeira entre crianças.

“A gente tomava banho neles”, lembra Bilinha, como é conhecida a dona de casa Maria Valdivânia, 37. Moradora da comunidade São Francisco, ela considera o CCBJ o quintal da própria residência. Não à toa, acessa o lugar pelo portão de trás, em ritmo de intimidade. Nunca pensou que o Bom Jardim teria um “lugar maravilhoso” feito esse.

Legenda: Bilinha e a filha, Ana Lia: trajetórias pessoais sempre ao lado do CCBJ
Foto: Ismael Soares

Por outro lado, ao reconhecer que o terreno desabitado também promovia lazer aos habitantes, diz que o centro cultural foi extensão dessa atmosfera, e consegue ir além. Promove diversão, claro, mas também cursos, oficinas, palestras e tantos outros momentos formativos e de diálogo. Cada um, no presente, aponta para um futuro bom.

“Minha filha, Ana Lia, tem paralisia cerebral, algo que afeta a parte motora. Ela não interagia com outras crianças na escola porque não deixavam, ela poderia cair. Minha saída foi um dia largar minhas atividades em casa, pegar ela e brincar aqui. Quando eu vinha, ficava reparando, e percebi que tinha cursos. Matriculei ela no balé e também fiquei”, divide.

Legenda: Galeria de arte é uma das estruturas encontradas no equipamento
Foto: Ismael Soares

De lá até aqui, Ana Lia também estudou Teatro e hoje está envolvida em vários projetos do CCBJ. Bilinha não fica atrás: percebeu que o centro cultural é para todas as idades, logo tratou de se unir a outras mães para formar o Mulheres Criativas, grupo no qual elas se encontram para conversar e pensar em ações. Agora, prospecta também aprender a ler e escrever por meio do Centro. “O CCBJ muda demais minha vida”.

O que encontrar lá

Uma rápida volta no equipamento é capaz de dimensionar a grandiosidade tanto da estrutura quanto do conteúdo. Todo dividido em ruas – nelas, o nome de quem é importante na história do Bom Jardim e adjacências – o local envolve de cara por contar com vários painéis grafitados a partir do cotidiano vivenciado tanto dentro quanto fora do centro cultural.

Na entrada, por exemplo, uma Marielle em grande escala convida para um registro. Mais para dentro, frases como “Eu sempre fui um sonhador e é isso que me mantém vivo” e “Paz na periferia” são espectros do que se vê sendo realizado à vista de todos, seja na pracinha central do recanto, seja nas salas de aula, laboratórios, estúdios e outras instalações.

Legenda: Gestor do equipamento, Marcos Levi Nunes dimensiona importância do CCBJ: "Num mesmo equipamento, reunimos Formação, Fruição e Cidadania Cultural"
Foto: Ismael Soares

“Num mesmo equipamento, reunimos Formação, Fruição e Cidadania Cultural. Logo, os espaços são abarrotados de gente devido a isso”, explica Marcos Levi Nunes, gestor do CCBJ, citando ainda outros cantinhos, a exemplo de biblioteca comunitária, galeria de arte e teatro próprio, com capacidade para 90 pessoas.

Segundo ele, para entender o percurso de um centro cultural nascido e mantido na periferia, é preciso compreender o Grande Bom Jardim. O território, com 220 mil habitantes, corresponde aos bairros Granja Lisboa, Granja Portugal, Canindezinho, Bom Jardim e Siqueira, e sempre teve a trajetória marcada por lutas populares.

Legenda: Além de aconchegar, biblioteca comunitária do CCBJ acolhe anseios de públicos de todas as idades

“Há organizações muito fortes que atuam no território, como o Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza (CDVHS), o Movimento de Saúde Mental, o Instituto Katiana Pena, o Nós de Teatro, fora outras grandes lideranças, como a Elenice, do Quintal Cultural, e dona Regina, da Associação de Moradores”, enumera o gestor.

Tais atores, já no fim dos anos 1990 e início dos anos 2000, começaram a reivindicar uma política pública cultural para o Grande Bom Jardim. Não à toa, organizaram-se e começaram a tensionar o Governo do Estado – que, à época da construção do CCBJ, também pensava em desenvolver algo dessa magnitude na periferia. Em completa sintonia, o projeto aconteceu.

Legenda: Moradores do Grande Bom Jardim são homenageados com nomes de ruas no CCBJ
Foto: Ismael Soares

“Pra gente, esse nascedouro também descreve algumas realidades do próprio CCBJ. Por exemplo: somos o único equipamento do Governo do Estado com uma gestão compartilhada, na qual 12 indivíduos da comunidade compõem o grupo. Além disso, há uma perspectiva da integração da comunidade com o equipamento de cultura, incluindo a parte da gestão. Como o próprio nascedouro é da luta, a lida do cotidiano não poderia ser diferente”.

Resultados

Os frutos são vários. Nos últimos anos, o orçamento destinado à casa saltou de R$7 milhões para quase R$12 milhões, resultado do empenho de toda a equipe e da própria comunidade. Todos comemoram, de crianças na primeira infância a senhoras de 87 anos. Eles interagem por meio de espaços como Escola de Cultura e Arte, cursos técnicos e extensivos, Ação Cultural e NArte, o setor de Cidadania Cultural do equipamento.

O setor de Atenção Social – pioneiro entre as instituições culturais – é outro destaque, uma vez que, para além de pensar em inserir a população em iniciativas artísticas, considera todas as vulnerabilidades históricas que incidem sobre o território. Em suma, promove instantes de reflexão e cuidado por meio de profissionais como psicóloga comunitária, assistente social e educadores sociais a fim de prevenir situações de violação de direitos.

Legenda: Além de momentos de formação e reflexão, CCBJ também é palco de convivências em que a brincadeira entra em ação
Foto: Ismael Soares

“Temos ainda a Cultura Digital – motivo de grande alegria porque acho muito louco pensar que essas crianças do Grande Bom Jardim estão desenvolvendo videogame. Além disso, recentemente os alunos do Curso Básico construíram um espetáculo chamado ‘Favela’, um verdadeiro desbunde; um curta desenvolvido pelos meninos do Audiovisual ganhou prêmios nacionais; e muito mais. Dá orgulho o que temos construído”, festeja Marcos Levi.

Não deixa de considerar, porém, os grandes desafios da empreitada. Um dos principais, conforme reflete, é a necessidade de o equipamento se qualificar estruturalmente para alcançar mais espaços do Grande Bom Jardim e de outras periferias. 

Legenda: Público do CCBJ interage por meio de espaços como Escola de Cultura e Arte, cursos técnicos e extensivos, Ação Cultural e NArte, o setor de Cidadania Cultural do equipamento
Foto: Ismael Soares

“Avançamos muito na perspectiva orçamentária, no modelo de contratação dos profissionais, no entendimento da comunidade de como é nosso modo de trabalho… Mas o maior desafio hoje é estrutural, tendo em vista o que a gente quer e onde queremos chegar. Comunidades como Marrocos e Canindezinho são espaços onde ainda não conseguimos estar porque o território é gigante, mas acho que no futuro estaremos nesses cantos”, torce.

Sonhos e realizações

A esperança está em gente feito Celiane Sousa Alves. Aos 48 anos, dedica a vida ao filho, Abimael, diagnosticado com Transtorno do Espectro Austista. Foi por meio do CCBJ que presenciou transformações acontecerem na vida do rebento, a ponto de ele desenvolver relações com terceiros e conseguir, aos poucos, tocar, ouvir e conviver de forma plena.

“Ele não queria saber de nada, queria viver numa redoma. Encontrei o CCBJ, trouxe ele pra cá e coloquei numa aula de música. Aí ele foi começando a tocar, a abraçar, a sentir... Foi ótimo na minha vida”, divide, emocionada. Nesse movimento, também tornou-se aluna da casa, e do mesmo curso – embora, claro, voltado para adultos.

Legenda: Celiane Sousa Alves e o filho, Abimael Sousa, transformaram os próprios caminhos devido ao contato com CCBJ
Foto: Ismael Soares

Quando testemunhou a evolução do filho e as revoluções no próprio eu, passou a falar para todos que existe um local em que gente pode realmente ser gente. “É a maior alegria do mundo, da minha vida”.

Diego Furtado segue a mesma linha. Engendra outra esperança. Chegou no equipamento em 2018, no posto de estudante, para ingressar no Ateliê de Produção em Audiovisual e Comunicação. De lá para cá, aprendeu muito, passou a fazer parte de um grupo de samba do Grande Bom Jardim, o Sambonja, e credita ao CCBJ o florescimento da veia artística.

“Com ele, levamos o nome do território para outras localidades e, assim, construímos novas percepções sobre o Bom Jardim: algo além do estigma da violência, do perigo. Esse outro lado é o mais bonito de se ver – da arte, da cultura, e que tem uma relação de identidade com o território. O CCBJ tem esse papel, de permitir e fomentar artistas e grupos para floresçam”.

Legenda: Diego Furtado iniciou no equipamento como estudante e hoje colhe os frutos ao trabalhar diretamente para o CCBJ
Foto: Ismael Soares

A transformação foi tanta que o outrora aluno hoje, aos 26 anos, é supervisor do Laboratório de Pesquisa e do Ateliê de Produção, dois eixos formativos da Escola de Cultura e Artes do centro cultural. Conquista que mexe com o coração, apura os sentidos e lhe faz definir o CCBJ como espaço de possibilidades.

“É um equipamento que permite projetar trajetórias. Acho isso muito potente e importante pro Grande Bom Jardim, ter um espaço que contribui para o território construindo caminhos profissionais e artísticos, longe do que durante muito tempo foi pensado sobre esse lugar. É nossa forma de provar o contrário”.


Serviço
Centro Cultural Bom Jardim - CCBJ
Rua 3 Corações, 400, Grande Bom Jardim. Funcionamento: às segundas, de 8h às 21h (funcionamento interno); e de terça a sábado, de 8h às 21h. Mais informações pelo site e pelas redes sociais do equipamento

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